O centro ganhou? Especialistas discordam de
principais análises sobre as eleições de 2024
Após o resultado do
segundo turno, os principais portais brasileiros publicaram suas análises das
eleições municipais: a maioria é unânime em declarar a vitória do centro
político. Contudo, a situação política do país não é tão transparente assim.
Ao Jabuticaba Sem
Caroço, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Arthur Neto e
Thaiana de Oliveira, especialistas mostram suas reticências quanto a uma
análise pouco aprofundada feita por grande parte dos veículos brasileiros.
Vitória do centro?
Ao todo, o Brasil
possui 5.570 cidades e, de fato, partidos considerados de esquerda como PT, PV,
Rede, PCdoB, PDT, PSB, PSOL e PSTU obtiveram 752 prefeituras. Já os demais
4.817 municípios restantes foram divididos entre partidos considerados de
centro e de direita.
Tamanha disparidade
deixa evidente a derrota eleitoral sofrida pelo chamado setor progressista,
tendência iniciada em 2016, quando, em meio aos escândalos da Lava Jato, o
Congresso decidiu pelou impeachment da então presidente Dilma Rousseff, acusada
de editar decretos de créditos suplementares sem autorização do parlamento e de
ter atrasado repasses de recursos para equilibrar as contas e bancar programas
como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida.
O leitor atento, que
fizer a conta, perceberá que a soma resulta em 5.569. Isso se deve ao fato de
que o gestor de Brasília, DF, não é considerado um município e, portanto, não
tem nem prefeito nem vereadores.
A partir disso, a
análise são apenas dados. O que cada portal noticioso difere é no
posicionamento dos demais partidos dentro de um espectro político. Poder 360 e
UOL, por exemplo, discordam em como categorizar partidos como PP, Avante, Rede,
Cidadania e outros.
Com isso, uma
avaliação de vitoriosos e derrotados se torna mais difícil.
Ao programa, Rosemary
Segurado, cientista política e professora do Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
explica que a definição de centro é contenciosa.
Para ambos os portais,
o Partido Social Democrático (PSD), de Gilberto Kassab, é definido como um
partido ao centro. A especialista, no entanto, discorda, afirmando que esta e
outras legendas são referidas assim devido às suas participações no centrão, arranjo
no Congresso Nacional de partidos que negociam apoio com o Poder Executivo.
"Mas,
ideologicamente, são partidos de direita […]. Não acho que dê para chamar o MDB
ou o partido do Kassab de centro."
Da mesma forma, ainda
que se fale em derrota da esquerda, o maior partido progressista do país viu
seu número de prefeituras aumentar, ainda que de maneira "tímida".
"Aquém, inclusive, do que o partido projetava nesse momento."
Em Natal, por exemplo,
cidade onde o PT não colocava um candidato no segundo turno há 28 anos, a
aposta, a deputada federal Natália Bonavides, quase desbancou Paulinho Freire
(União) em uma disputa apertada, que terminou em 55,3% contra 44,7% da petista.
Robson Carvalho,
pesquisador do Instituto de Ciência Política (Ipol) da Universidade de Brasília
(UnB), destaca, por sua vez, que embora não seja possível apontar um vencedor
de maneira clara, há um grande derrotado: o bolsonarismo.
Segundo o
especialista, candidatos que se utilizaram de um radicalismo e um extremismo em
seu discurso foram preteridos por aqueles que se mostraram mais moderados. A
única exceção foi Cuiabá, onde um "bolsonarista raiz", Abilio Brunini
(PL), foi eleito.
"É caso da
eleição do [Eduardo] Leitão (PT) em Fortaleza. Sem dúvida, ele foi eleito na
reta final pelo radicalismo muito forte e pelo comportamento de violência
política muito expressivo adotado pelo outro candidato."
Da mesma forma, a
vitória de Ricardo Nunes (MDB) pode ser vista sob esse ângulo. O candidato à
reeleição usou Pablo Marçal (PRTB) para diminuir sua própria figura direitista
e se apresentar como um moderado frente a Marçal e Guilherme Boulos (PSOL).
A disputa paulistana
também demonstrou o efeito limitado dos apoios presidenciais. Por um lado,
Bolsonaro mal participou da campanha de Nunes. Do outro, a votação deste ano de
Boulos praticamente não se ampliou em relação a 2020. Este ano, mesmo com um leque
de alianças por trás, o candidato psolista obteve 40,65% dos votos válidos,
enquanto no pleito anterior foram 40,62%.
Nesse sentido,
Carvalho lembra que há monitoramentos e pesquisas que indicam que há eleitores
de Lula que votam em Ricardo Nunes, por exemplo. "Uma coisa é votar em
Lula, outra coisa é votar em Guilherme Boulos."
Da mesma forma, o
pesquisador da UnB destaca que não se pode extrapolar o resultado municipal
para a corrida presidencial. "Mas, em relação ao Congresso Nacional,
pode-se esperar um reflexo."
"Essas eleições
municipais são base para a projeção de deputados federais, senadores e
deputados estaduais."
• Aprender com a derrota. Por Luis Felipe
Miguel
O segundo turno das
eleições não trouxe surpresas. Os principais vitoriosos foram políticos dos
partidos oportunistas tradicionais, que se apresentaram com um discurso à
direita. Para a esquerda, sobrou um consolo de comemorar a derrota de alguns
bolsonaristas raivosos e, no mais, chorar as pitangas.
Era uma derrota
anunciada, mas nem por isso foi menos sofrida. Na capital paulista, a eleição
mais importante do país pelo peso que tem na política nacional, o fracasso de
Boulos sintetiza o esgotamento de uma fórmula que já apresentava problemas há
muito tempo. A questão é saber se há força e disposição para virar a chave.
No discurso em que
admitiu a derrota diante de seus apoiadores, Guilherme Boulos disse que sua
campanha recuperou “a dignidade da esquerda brasileira”. Não é possível
concordar com este veredito.
Sim, a campanha foi
dura. O efeito do domínio do Centrão sobre o orçamento se fez sentir no Brasil
todo, inclusive em São Paulo. As máquinas da prefeitura e do governo estadual
operaram sem limites – bem como a máquina de desinformação da extrema-direita.
A cereja do bolo foi a mentira criminosa lançada pelo governador Tarcísio de
Freitas na manhã de ontem.
Seria caso de cassação
de mandato. Mas ele está tranquilo, porque sabe que não terá consequências.
Afinal, em 2022, a encenação que montou em Paraisópolis teve até um morto – e
todos continuam impunes. A democracia que lutamos tanto para reconstruir depois
do golpe de 2016 sempre teve limites – e, sobretudo, sempre teve lado.
O problema não é a
derrota nas urnas. Ela faz parte do esperado, uma vez que a esquerda disputa
sempre em condições de inferioridade. O problema é que a campanha de 2024 não
levou a nenhum acúmulo para o campo da esquerda. Na verdade, o saldo parece ter
sido negativo.
Boulos não foi apenas
derrotado nas urnas. Por conta da campanha errática e sem fibra, sofreu um
desgaste importante em sua imagem como liderança política e desperdiçou uma
oportunidade de ouro para tentar reapresentar um projeto de esquerda no Brasil.
O desempenho do
candidato do PSOL foi praticamente igual ao de 2020: na proporção de votos
válidos no segundo turno, a diferença é vista apenas na segunda casa depois da
vírgula. Mas ele estava disputando com o adversário muito mais fraco, Ricardo
Nunes, desprovido de qualquer charme, sem o peso político ou o sobrenome de
Bruno Covas, pilotando uma administração considerada medíocre por todos e com
uma coleção de telhados de vidro que iam do roubo de dinheiro de merendas à
violência contra a mulher.
Talvez ainda mais
importante, Boulos fez uma campanha muito rica, com orçamento superior aos 80
milhões de reais – algo que um candidato à esquerda nunca teve numa eleição
municipal no Brasil. Com todo esse dinheiro, não foi capaz nem de vencer a
eleição, nem de promover uma ampliação do nível do debate político que
permitisse incrementar a consciência crítica do eleitorado. Seu discurso foi
marcado pela capitulação permanente diante do senso comum mais rebaixado, já
que nunca havia um momento de educação política.
Boulos foi derrotado,
segundo as análises correntes, por sua taxa de rejeição. Há verdade nesse
veredito. Por isso, sua campanha identificou como alvo principal reduzir a
rejeição do candidato. O caminho escolhido foi tentar modular sua imagem, em
vez de questionar as formulações ideológicas que geravam a rejeição a alguém
que vinha do movimento popular e tinha um histórico de embates contra as
estruturas vigentes de opressão.
Não é uma questão que
se resolve no curso de uma campanha eleitoral, é claro. À medida em que se
rendeu completamente à política eleitoral, tornada o alfa e o ômega de suas
principais organizações, a esquerda brasileira viu diminuir a capilaridade de
seus canais próprios de comunicação, vinculados ao trabalho de base, e passou a
depender cada vez mais de burocracia, mídia e publicidade. Mas, sem resolver, a
campanha proporciona uma importante janela de visibilidade, para disputar
representações da realidade e oferecer projetos diversos para a construção de
novas vontades coletivas. Essa oportunidade foi desperdiçada.
A diferença da
candidatura de Boulos não era um discurso de esquerda, mas o lulismo – isto é,
um programa de mudanças tímidas (mas nem por isso desimportantes), com recusa a
qualquer enfrentamento, esperançoso de seduzir as classes dominantes para um
projeto civilizatório. A capacidade de transferência de votos de Lula se
mostrou muito menor do que o esperado, mas a campanha ficou presa à defesa
incondicional do governo federal, assumindo os ônus tanto de sua rejeição
visceral por parte de um eleitorado ideologizado (o “antipetismo”) quanto dos
limites impostos por suas políticas de ajuste fiscal e acomodação com o
privatismo.
Faz tempo, aliás, que
a esquerda partidária brasileira está pronta a recuar em tudo, com medo de
enfrentamento. Nada de discurso anticapitalista, mal se fala de imperialismo,
luta de classes sumiu, o “empreendedorismo” e a “inovação” tomaram conta do vocabulário,
direito ao aborto é tabu, assim por diante. A rendição do PSOL ao lulismo, que
Boulos encarna como ninguém, retirou o último elemento significativo de tensão
na adesão a essa estratégia.
A única exceção é a
lacração identitária, que na campanha de Boulos surgiu no triste episódio do
“hine nacionale”. Tanto esforço para evitar discussões urgentes e necessárias –
para depois abraçar o desgaste de uma polêmica inútil. Lacração, convém sempre
lembrar, não tem nada a ver com educação política. É uma ferramenta a serviço
exclusivamente do narcisismo inconsequente de uns poucos.
Depois de um primeiro
turno dominado por fofurices, em que parecia falar mais de Taylor Swift do que
de especulação imobiliária e em que passou de favorito a azarão, conquistando a
vaga no segundo turno no olho mecânico, Boulos teve que mudar de postura.
Ainda assim, nunca
apostou na politização. Tentou se aproximar do eleitor de Marçal, mas
mimetizando os acenos ao “empreendedorismo”. Quando o apagão lhe entregou de
mão beijada um tema capaz de sacudir a campanha, optou por reduzi-lo à gestão
da prefeitura (poda de árvores) deixando em segundo plano a questão da
privatização. E assim por diante.
O desespero do final
da campanha fez Boulos aceitar participar da “sabatina” de Marçal. Uma decisão
– reconheço – difícil. Por um lado, seria a chance de falar a uma fatia
importante do eleitorado, normalmente refratária a ele. Por outro, seria violar
um necessário cordão sanitário, aceitando como interlocutor legítimo um
bandido, alguém que tinha se utilizado das piores baixarias, culminando na
infame falsificação de um laudo médico contra o próprio Boulos.
Ao participar da
“sabatina” sem sequer confrontar Marçal, Boulos aceitou, como disse o
ex-deputado federal Milton Temer, posar de “figurante em lançamento de campanha
para presidente em 2026”. É difícil saber se ganhou algum voto com isso. Mas
deu seu aval a mais uma volta na espiral de degradação da política brasileira.
Já faz bastante tempo
que é evidente que o projeto de Boulos é repetir a trajetória de Lula: do
movimento social para a política eleitoral, das margens para o mainstream, da
derrota para a vitória. Tudo isso em fast track, claro, percorrendo em três ou
quatro anos aquilo que, com Lula, demorou uma década e meia.
Não está dando certo.
Talvez porque faltem o carisma e a autenticidade do original. Certamente porque
as circunstâncias mudaram. A fórmula lulista está desgastada e precisamos não é
de quem a imite, mas de quem ajude a encontrar caminhos para superá-la.
O discurso após a
derrota, mostra que a ficha ainda não caiu para Boulos. Mas, se não mudar de
rumo, ele não vai ser Lula – vai ser Freixo.
Fonte: Sputnik
Brasil/Blog da Boitempo
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