Como o Bixiga se tornou o bunker vermelho
no coração de São Paulo
O Bixiga não existe. É
o que você vai ler em boa parte dos relatos sobre ele. Formalmente, este que é
o bairro síntese de São Paulo não existe mesmo – ou teria por nome oficial Bela
Vista, que é praticamente uma gêmea e antagonista. Mas poucos lugares existem –
e resistem – tanto quanto o Bixiga, incrustado no coração de São Paulo, bem no
meio do caminho entre o Centro Velho e a Avenida Paulista.
Basicamente, o Bixiga
foi a maior votação de Guilherme Boulos, entre as três únicas zonas eleitorais
nas quais ele venceu Ricardo Nunes no segundo turno – já no primeiro turno, foi
a maior votação de Boulos e a única zona eleitoral vencida por mais de 40% dos
votos por qualquer um dos candidatos. A avaliação que se segue, no entanto, não
é sobre eleição apenas, mas como esse resultado é sintoma de um outro fenômeno
mais abrangente.
Bem no centro da
cidade que é a maior de todas nas Américas e uma das maiores do mundo, perdendo
para pouquíssimas cidades fora da Ásia, o Bixiga se tornou um bunker vermelho
nas últimas duas eleições. Apesar da sua composição social, de trabalhadores e não
brancos, o cenário não era bem esse há poucos anos, nos quais o predomínio da
direita era quase sempre certo.
A mudança de ventos
eleitorais é apenas um dos reflexos de uma transformação. Nos últimos anos,
espaços culturais, movimentos sociais, livrarias e diversas iniciativas de
esquerda se somaram ao terreno fértil do bairro, que enfrenta desafios como
nunca, trazidos pelo avanço da especulação imobiliária que vem junto da
construção – atrasada e duvidosa – da linha laranja do metrô. Diferentemente de
uma militância de tempos de eleição, o caldo cultural e militante cotidiano no
bairro tem gerado efeitos sólidos nas eleições.
Enquanto boa parte da
esquerda fala sobre as ondas da direita como “falha de comunicação”, de
partidos ou candidatos, “traição dos mais pobres” ou, simplesmente, alienação
dos desfavorecidos, a verdade é que o tal trabalho de base é contínuo e
permanente – e a extrema direita atual sabe muito bem disso, e justamente por
isso ela tem bases sociais reais e militantes, como as igrejas evangélicas.
• Muito além de um bairro italiano
Embora tenha sido
nomeado em razão do loteamento de Antônio Bexiga no século XIX, o que hoje é o
bairro consistia em uma trilha indígena, um dos chamados peabirus, como muitas
outras regiões ou avenidas em São Paulo. O povoamento pelos portugueses começou
ainda em 1559, e a criação do sítio do Capão, que funcionou como uma espécie de
zona rural em um encontro de nascentes e rios, muito antes de haver avenida
Paulista.
No meio tempo entre o
sítio do Capão, depois sítio das Jaboticabeiras, e nascimento do Bixiga
propriamente dito, a região foi um lugar de refúgio da população negra da
cidade, um dos primeiros quilombos urbanos situado às margens do rio Saracura –
próximo de onde era a escola de samba Vai-Vai, uma memória que foi mantida pela
tradição oral, embora apagada sistematicamente pelas narrativas oficiais.
Essa comunidade
consiste na ocupação negra mais antiga e contínua de São Paulo. Com a
construção da Avenida Paulista no século XIX, onde era uma grande mata, e a
chegada dos barões do café para morar nos seus casarões e a chegada de levas
imensas de imigrantes italianos à cidade, o centro nevrálgico paulistano é
deslocado – e a cidade vê um novo surto de crescimento que altera o equilíbrio
das imediações do Saracura.
O loteamento da região
do Saracura é batizada de Bexiga, depois Bixiga, por conta de Antônio Bexiga e
terá relação imediata com a nova São Paulo que nasce – no lugar de uma cidade
basicamente pequena, longe do litoral e sujeita às grandes cidades do interior.
A estrada de ferro e a economia do café são centrais nesse deslocamento do
centro de gravidade de São Paulo e, praticamente, sua refundação.
Contudo, o bairro
ganhou o nome oficial de Bela Vista no começo do século XX, pois isso se
referia à perspectiva que se tinha do centro da cidade desde a avenida
Paulista. Mas ainda se manteve como uma zona de intersecção entre imigrantes do
sul da Itália e negros, produzindo o samba paulistano – cuja expressão maior é
a figura de Adoniram Barbosa. Tudo isso aconteceu antes da chegada dos
trabalhadores nordestinos nas pensões e cortiços.
Apesar da construção
que busca apresentar o Bixiga como “bairro italiano”, muitas das ruas do bairro
guardam a memória da abolição da escravatura. Para além de referências óbvias
ao fim da escravidão como as ruas Treze de Maio, Abolição e Rui Barbosa, outras
ruas como a Conselheiro Ramalho e Almirante Marques Leão homenageiam,
respectivamente, um abolicionista e um crítico tardio do racismo institucional.
Inclusive, o samba
nunca foi a única forma de música negra a conseguir espaço no Bixiga. O bairro
também se desctaca como celeiro do rap nacional, abrigando nomes como o Região
Abissal (primeira banda a lançar um álgum de hip hop no Brasil) e Potencial 3,
além de abrigar festas como a seminal Clube do Rap, que inclusive voltou a
funcionar mensalmente dentro do Rap Hour do DJ Roger, uma quinta-feira por mês
no Sol y Sombra 2.
A aclamação da
italianidade do bairro, por sua vez, sempre se esquivou de contar a verdadeira
história do que essa parte da conversa quer dizer: não só que o bairro não é
apenas italiano, mas que essa imigração, exaltada pelo viés da branquitude e do
apagamento negro, na verdade consistiu na vinda de trabalhadores pobres do sul
da Itália, que se integraram e coexistiram com a população negra já presente.
Isso se soma ao
mega-crescimento de São Paulo na segunda metade do século XX, as muitas pensões
e cortiços superlotados, que serviram como habitação precária para operários
nordestinos, principalmente da construção civil e serviços. Isso produziu uma
síntese multirracial, cosmopolita, capaz de abraçar o Brasil e o mundo, muito
além da construção de uma “nação brasileira” pensada apenas para incluir os
brancos.
Nas muitas fases de
destruição e renascimento do Bixiga, inclusive sediando a cultura gastronômica
ítalo-paulistana das cantinas e recepcionando inúmeros teatros, mas também
terreiros de religiões de matriz africana e lugares alternativos, a hegemonia
política, contudo, sempre esteve à direita – por diversos fatores, o que
resultou na marginalização da sua própria população originária e o domínio de
oligarquias locais.
• O Bixiga contemporâneo
Se no ciclo da
primeira década do século XXI há um renascimento da rua na vida paulistana,
depois das viradas culturais, o Bixiga alcança isso na segunda metade da década
de 2010. E aí aparecem a formação de espaços como o Ateliê do Bixiga, em 2015,
congregando mídias, editoras e até academia antifascista; a chegada do centro
cultural palestino Al Janiah em 2017, a explosão de movimentos como o Bloco do
Fuá, o Saracura Resiste e o Bixiga sem Medo em 2018.
Há uma enormidade de
iniciativas como bares, como a Canhota, Sol y Sombra, e livrarias como a
Simples, Rizoma e a antiga livraria da Expressão Popular, além de editoras como
Autonomia Literária e Alameda, os quais se somam a um território que já tinha,
historicamente, o bar de cultura latina ECLA, a União Municipal dos Estudantes
Secundaristas (UMES), a casa do Mestre Ananias, o Teatro Oficina e o Vai-Vai.
Vale destacar também
que esse ano a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI), um
dos maiores eventos de esquerda do país, realizou sua 7ª edição no Bixiga e a
Cozinha Popular Vegana também se mudou para bairro.
O radialista e
militante Marco Ribeiro, que é uma das principais figuras na organização do
Bloco do Fuá, que já tem 12 anos no Bixiga, além de mais dois anos de
mobilização Saracura Vai-Vai, lembra da Iniciativa do Bixiga sem Fome, um feito
central durante a pandemia, que foi marcada pela mistura de trabalho
assistencial de emergência com politização das comunidades pobres do bairro:
O Bixiga sem Fome
formamos no início da pandemia, em março de 2020, e tinha duas frentes: na
primeira cozinhávamos duas vezes por semana aos sábados e quartas fazendo 100
alimentações por dia. Na segunda distribuímos, mensalmente, cestas básicas para
250 mães de família mediante uma roda de conversa em que conversávamos sobre
moradia digna, saúde, cultura popular, eleições… fazendo conscientização social
e política.
O cenário do Bixiga,
portanto, não é só de boemia. O avanço tardio da linha laranja do metrô levou
ao desalojamento da sede do Vai-Vai e trouxe junto um fluxo de especulação
imobiliária. Sinais do tempo, e da política de “verticalização” em torno das
estações de metrô, o que não se mostrou bem-sucedido – ao contrário do que
prometia a gestão Haddad, ainda em 2014, e só foi, nesse sentido, radicalizado
por Ricardo Nunes.
Pior ainda, mudanças
recentes na lei municipal feitas por Ricardo Nunes, basicamente destruíram a
proteção ao patrimônio histórico, ameaçando casarões que ainda resistem e podem
virar espigões. É nesse sentido que essa nova onda no Bixiga tem se mobilizado
e gerado inúmeras iniciativas de contestação.
• Resultado eleitoral
Se no primeiro turno
da eleição municipal chamou a atenção que, entre as 58 zonas eleitorais de São
Paulo, a Bela Vista foi a que deu mais votos a favor do candidato que
representava a esquerda, conferindo 43,65% dos votos válidos a Guilherme
Boulos, o segundo turno confirmou isso com uma vitória na casa de 55,24%.
Na eleição de 2020,
Boulos com Luiza Erundina de vice já tinham iniciado a virada na Zona
Eleitoral, com uma grande votação. Em 2022, na eleição para presidência e
governador, Lula e Haddad venceram na Bela Vista, na primeira vitória da
esquerda desde Marta Suplicy, em 2000. Antes, apesar de toda sua tecitura
social, apenas Fernando Henrique Cardoso, candidato a prefeito de “centro
esquerda”, em 1985, havia vencido Jânio Quadros.
Em 2018, num discurso
polêmico mas que até hoje é usado como referência para entender a atual crise
da esquerda, Mano Brown antecipou a derrota e lembrou que as forças
progressistas precisam voltar para a base. Onde estão os sindicatos, partidos,
CEBs, pontos de cultura e etc. no dia-a-dia do povo durante os períodos não
eleitorais? Será que eles foram substituídos por igrejas evangélicas, redes
sociais e festas de caridade?
Como lembrou o
sociólogo e jornalista André Takahashi sobre o resultado do primeiro turno:
O controle territorial
na política não vem de panfletagem poucos meses antes da eleição. Ele é fruto
de enraizamento de agentes na região, estabelecimento de espaços de
socialização e acolhimentos, instalação de alternativas econômicas, de meios de
comunicação próprios e ocupação dos espaços locais de poder como conselhos e
até mesmo [do cargo] de síndicos de prédio.
Se a esquerda quer se
reconectar com o povo, ela precisa estar presente no seu cotidiano. Além de
querer apresentar uma alternativa de futuro, ela precisa se materializar no
presente. Votos não brotam em árvore e panfletos antes da eleição não mudam
resultado eleitoral. A presença digital é importante, mas ela não substitui o
poder territorial.
Tampouco, fenômenos
espontâneos se sustentam sem a construção de instrumentos políticos maiores,
que lhes serviam de guarda-chuva. O que exige e demanda atenção dos assim
chamados partidos de esquerda, cuja votação expressiva não veio do nada, nem
exclusivamente da força de suas campanhas, que não foi, por sinal, suficiente
na maior parte do município, inclusive em zonas eleitorais até mais à esquerda
pela história.
O território é central
na disputa política, não à toa o objetivo de qualquer guerra é conquistá-lo.
Igualmente, uma realidade social “ideal” como o Bixiga – com desigualdade
social visível –, diversidade racial, história de luta e etc., não é por si só
suficiente para a garantia do voto. É necessário resgatar e conectar a luta do
passado com as ações do presente. A esquerda precisa entender isso ou
continuará perdendo terreno para aventureiros de última hora.
Fonte: Por Hugo
Albuquerque e Cauê Seignemartin Ameni, em Jacobin Brasil
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