A esquerda na corda bamba
Lula vai ter de
abandonar a ambivalência na política externa e escolher um lado. Se não fizer,
não vai durar. E se capitular definitivamente para o imperialismo, tampouco
terá algum sucesso
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O Brasil não precisava
ter vetado a entrada da Venezuela como parceiro do BRICS. É sabido que essa
decisão foi tomada para não ficar mal com os Estados Unidos. Mas poderia muito
bem ter se abstido e justificado que seria errado ir contra a vontade de todos
os outros membros. Não era difícil ter deixado passar a decisão da maioria.
Lula demonstrou fraqueza e isso é o pior que um chefe de Estado pode fazer. O
inimigo viu que Lula fraquejou e isso vai animá-lo a aumentar as pressões. Essa
é uma síndrome da esquerda nacionalista e reformista. Só que a fraqueza que
Lula demonstrou foi muita – foi uma capitulação totalmente desnecessária.
Ao lado da Fazenda e
Defesa, o Itamaraty é um dos três principais ministérios do governo brasileiro.
Como tratam o Brasil como uma colônia, os EUA precisam ter o controle sobre
esses três ministérios-chave. É inadmissível que algum deles seja independente
do controle imperialista. A composição social do Itamaraty é perfeita para a
penetração da influência imperialista: uma casta burocrática e familiar formada
pela burguesia e os extratos superiores da pequena burguesia. Sempre foi assim.
Como uma entidade
extremamente tradicional e de elite, ela é inerentemente conservadora, mesmo
reacionária, que visa manter o status quo e seus privilégios absolutamente
inalterados. O imperialismo americano se aproveita disso e já há mais de cem
anos, quando começou a dominar a política brasileira, cooptou e colocou em sua
folha de pagamentos senão toda a estrutura desse ministério, ao menos uma parte
importante dos seus integrantes.
Como em tudo, o PT não
conseguiu (se é que tentou) mudar o quadro da instituição. Os embaixadores e
diplomatas de primeiro escalão colocados por Lula e Dilma foram rifados logo
quando Jair Bolsonaro assumiu o governo. Trocou muitos “petistas” por olavistas
ou semi-olavistas. Dividiram o controle com os burocratas tradicionais da
corporação, deixando os poucos “esquerdistas” de canto. Agora que Lula voltou,
ao invés de fazer a mesma limpeza que Jair Bolsonaro fez e retirar os
bolsonaristas e direitistas de cena, praticamente não mexeu no Itamaraty. O
Itamaraty não está sob o controle do presidente da República – como deveria
estar, sendo um dos principais ministérios e, portanto, devendo obedecer
fielmente o presidente.
• O esgotamento da política de conciliação
A vida política
institucional de Lula já está indo para o seu desfecho e ele tem a chance de
deixar um legado positivo histórico, conduzindo o Brasil para um caminho
soberano em relação ao jugo imperialista. Não há sucessor na esquerda e, se
Lula falhar na tarefa (que ele talvez almeje e a qual seus apoiadores acreditam
que ele é capaz de realizar) de abrir as portas do Brasil para a nossa
soberania, a esquerda pagará um preço enorme. Haverá uma crise histórica de
lideranças absolutamente adaptadas à submissão imperial, que só não se abateu
com toda a força porque Lula ainda existe.
O veto do Brasil à
Venezuela no BRICS é consequência da insistência da esquerda em manter a
política não apenas de conciliação, mas de colaboração com a direita
tradicional, vendida como a “menos pior” – que se expressa, novamente, no apoio
aos candidatos dessa direita contra os “mais piores” bolsonaristas no segundo
turno das eleições municipais.
As eleições municipais
consolidaram a ressurreição dessa direita (o centrão). Depois da débâcle
histórica de 2018, a centro-direita conseguiu se recuperar aos poucos, graças
ao resgate proporcionado pela esquerda. As eleições de 2022, com a formação de
uma frente ampla desnecessária para eleger Lula levaram este à presidência, mas
ao custo de que essa direita tradicional se apoderasse do governo.
Na verdade, o centrão
nunca saiu do poder. É a grande chaga que mantém o Brasil como uma semicolônia
do imperialismo desde a proclamação da república. Nenhuma revolução ou
contrarrevolução o tirou do poder – no máximo reduziu ou fortaleceu o seu
domínio, mas nunca o erradicou. A maior parte do tempo do governo Jair
Bolsonaro já havia sido, de fato, de um governo do centrão.
A direita tradicional
conseguiu neutralizar a força avassaladora da extrema-direita ao longo da
primeira metade do governo de Jair Bolsonaro, e foi ainda mais rápida em
neutralizar o governo Lula. Há mais de um ano o presidente não passa de um
refém do centrão, da direita oligárquica e dependente do imperialismo
americano.
O último bastião da
resistência de Lula dentro do governo – a política externa – já está sendo
conquistado pela direita. O imperialismo não pode tolerar uma política
brasileira na cena mundial que apoie a resistência palestina e tampouco o
fortalecimento de Rússia, China e do enfrentamento ao seu domínio, representado
pelo BRICS. As engrenagens pró-imperialistas do Itamaraty já foram ativadas a
fim de completar o cerco do próprio aparelho do Estado brasileiro ao presidente
Lula e àquilo que ele representa.
Há, ainda, um problema
crucial: a extrema direita, apesar de suas contradições internas, está com sua
força e popularidade praticamente intactas já há uma década. E, como sempre, é
favorecida pela sabotagem e propaganda da direita tradicional (centrão, imprensa,
bancos e grandes capitalistas) contra Lula. Além do mais, a forte presença da
extrema-direita influenciou a política da própria direita tradicional, agora
ainda mais reacionária.
• A política de não-alinhamento é inviável
para o Brasil
O presidente, assim,
vive uma situação muito delicada. Há quem acredite que ele está certo em buscar
uma suposta equidistância tanto dos Estados Unidos quanto da China. Mas um país
como o Brasil, uma semicolônia do imperialismo americano submetida atualmente a
uma crescente pressão de Washington, não pode se dar ao luxo de buscar uma
pretensa neutralidade, ao contrário de outros, como Índia ou Turquia, que são
geograficamente distantes dos EUA e vizinhas de China e Rússia e cuja
dependência política e econômica do imperialismo americano (embora ainda seja
grande) não é tanta quanto a nossa.
Mesmo países
fronteiriços com a Rússia não suportaram as pressões contra a aplicação de uma
política não-alinhada e tiveram seus governos derrubados por golpes de Estado
promovidos pelo imperialismo. Foi o caso da Ucrânia, em 2014, e é o que tende a
ocorrer na Geórgia novamente. Essa também é a tendência do Brasil, se Lula
continuar cedendo e não tomar um rumo verdadeiramente soberano, o que significa
se aliar com China e Rússia e deixar de depender dos Estados Unidos.
O imperialismo
americano quer o controle do Brasil. Tanto o centrão quanto a extrema direita
são seus aliados contra Lula. Ainda que tenham desavenças (às vezes
encarniçadas), na hora H eles deixarão essas discordâncias de lado e lutarão
juntos contra o inimigo comum, como a história já demonstrou em incontáveis
ocasiões. E os aparelhos burocráticos do Estado, como o Judiciário – principal
ferramenta do imperialismo no Brasil, junto com a grande imprensa burguesa –,
marcharão ao seu lado.
Aparece com crescente
saliência, novamente, a falência histórica da política de colaboração de
classes. Sua estabilização já não é mais viável desde que foi rompida com o
golpe de 2016 e a ascensão da extrema-direita por obra da burguesia e do
imperialismo. O que temos hoje é um monstrengo: a ala pretensamente
nacionalista da burguesia, a quem Lula e o PT insistem em se apegar, sente-se
ainda mais pressionada pelo imperialismo do que Lula – e cede muito mais
facilmente e com muito menos hesitação do que o presidente.
Quaisquer
coincidências de interesses com a classe operária e as demais classes populares
que ainda possam existir se esvaem em uma situação de polarização política
continuada e que volta a crescer, elevando particularmente as contradições das
camadas populares com o imperialismo americano.
A burguesia
“nacional”, os aliados civilizados, democráticos e progressistas de Lula vão
pular fora do barco (mesmo que não o façam abertamente) porque sabem que não há
futuro nenhum dentro dessa aliança anti-histórica, na expressão usada por Mário
Pedrosa ao analisar um cenário parecido, a crise do PTB de Jango com o PSD
poucos anos antes do golpe de 1964.
Lula também vai ter de
abandonar essa ambivalência na política externa e escolher um lado. Se não
fizer, não vai durar. E se capitular definitivamente para o imperialismo,
tampouco terá algum sucesso. O problema é que não dá para adotar uma política
externa e uma política interna antagônicas. Para adotar uma política externa
independente e, portanto, oposta ao controle do imperialismo, ele vai ter de se
voltar contra os agentes do imperialismo dentro do próprio país, começando por
aqueles que infestam o governo mesmo.
Mas, se na política
externa Lula sofre a pressão positiva do BRICS ampliado em contraposição à
pressão negativa dos Estados Unidos, no cenário interno a pressão popular – a
única que poderia contrapor a pressão da direita – quase não existe, ao menos
de forma organizada. Daí também a parcela de culpa da esquerda, dos partidos (a
começar pelo próprio PT), dos sindicatos e da imprensa progressista na política
capituladora de Lula com relação ao BRICS e à América Latina. Na realidade, as
posições de Lula, em geral, ainda são mais acertadas do que as da maioria da
esquerda.
Não é Lula, somente,
quem está na corda bamba. É toda a direção da esquerda brasileira. Sua política
medíocre e rebaixada é a grande responsável pelos erros cometidos por Lula e
pelo governo. Os movimentos populares precisam dar um giro de 180 graus em sua
política e começar a combater de fato os inimigos de Lula, ou seja, os agentes
do imperialismo no Brasil, pressionando o presidente e as suas próprias
direções. Porque as pressões do outro lado da corda são cada vez mais fortes e
Lula não vai conseguir se equilibrar por muito tempo.
Fonte: Por Eduardo
Vasco, em A Terra é Redonda
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