segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Os novos discursos críticos às identidades e a crise nas universidades

Em que medida os processos de subjetivação que levaram a extrema direita ao poder no Brasil e em outros países contaminaram também os intelectuais do campo da esquerda e progressistas?

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No dia 22 de outubro de 2024, o Le Monde Diplomatique Brasil publicou o texto A crise da hegemonia identitária nas universidades, de autoria do sociólogo Richard Miskolci. A proposta foi a de tentar explicar por que eventos como a performance “Educando com o C*”, de Tertuliana Lustosa, ocorrida na Universidade Federal do Maranhão, deixaram de apenas chocar o público externo das universidades e, “pela primeira vez em muitos anos, alcançaram repercussão e repúdio internos” das instituições de ensino superior.

Pretendo apresentar respostas bem distintas para o questionamento de Miskolci. Mas, antes disso, uma correção (1) e uma (2) informação preliminar:

1.         Tertuliana, ao contrário do que diz o autor, não integra o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), da Universidade Federal da Bahia, grupo que eu ajudei a criar em 2007 e do qual sou um dos coordenadores. O NuCuS, segundo o raciocínio do sociólogo, seria um dos responsáveis pela “hegemonia identitária” que teria se instalado em nossas universidades e que agora estaria em crise. Junto com essa hegemonia, teria vindo o cancelamento de determinadas pessoas, “o monopólio de um suposto ‘local de fala’”, que “se sobrepôs e superou o da pesquisa e seus resultados”, e o rebaixamento da qualidade dos trabalhos acadêmicos porque, afinal, a “força política autoritária” garantiria “a grupos identitários, seus membros e apoiadores o poder de se impor, inclusive sem ter que provar academicamente sua suposta expertise”.

2.       Em 2015, durante a realização do II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizado na UFBA, diversas performances, inclusive com corpos nus, foram realizadas. Na abertura, antes da conferência de Judith Butler, ocorrida no Teatro Castro Alves, em Salvador, diversos cus foram exibidos ao som da música Polka do cu, da trilha sonora do filme Tatuagem. A performance mimetizava cenas do filme sobre o grupo de teatro Vivencial Diversiones. Não registramos reações aquela performance. O que mudou de lá para cá? O que mudou na nossa sociedade em geral, nas universidades e em determinados intelectuais que se dizem do campo da esquerda, progressistas e/ou liberais? No meu entender, enfrentar essa questão é fundamental.

Muitas coisas mudaram de 2015 para cá. Elenco apenas alguns delas: o discurso de uma suposta “ideologia de gênero” se amplificou de forma absurda, acabando com as poucas políticas de respeito à diversidade sexual e de gênero que estavam sendo gestadas, e a extrema direita chegou ao poder. Mas também ocorreu uma brutal transformação nas universidades e, junto com ela, veio também a produção de outros saberes. Esses saberes transformaram o queer (branco, cisgênero, estadunidense e sudestino) em cuir ou kuir (pensado pelo cu do mundo, pelas nossas abjeções e insultos locais) e se misturou com o feminismo negro, o transfeminismo e o decolonial. Aquele queer inicial não existe mais.

Todas essas transformações, ocorridas aqui e em outros países como Estados Unidos, Espanha e França, produziram uma reação também de alguns intelectuais que se identificam como de esquerda, progressistas e/ou liberais. Esses intelectuais, entre os quais está Miskolci, integram o que estou chamando, de forma ainda provisória, de novos discursos críticos às identidades LGBTQIAPN+ e negras. Estou me referindo a recentes obras de intelectuais como Elisabeth Roudinesco, Susan Neiman, John McWhorter, Yascha Mounk, Mark Lilla, Francisco Bosco, Antonio Risério, Wilson Gomes e muitos/as outros/as.

Todos esses autores/as se diferenciam das críticas às identidades realizadas pelos estudos culturais e queer. Nesses estudos, a proposta era a de criticar o essencialismo, o binarismo e apontar as multiplicidades e transformações das identidades. Miskolci fazia isso antes de 2015, assim como eu e muitas outras pessoas. Agora o foco é desqualificar as identidades e seus conhecimentos (especialmente as LGBT, negras e de mulheres), responsabilizá-las pelas vitórias da extrema-direita e evidenciar como elas seriam narcísicas, algo próprio do neoliberalismo e das subjetividades marcadas pelas redes sociais online.

Em Batalhas morais – política identitária na esfera pública técnico-mediatizada, publicado em 2021, Miskolci estudou por que os temas de gênero e sexualidade geraram um pânico moral/sexual na sociedade brasileira desde 2010. Por um lado, ele faz uma análise de como esse pânico foi construído pela direita em torno da ideia de “ideologia de gênero”. No entanto, para ele, “esse pânico foi potencializado pelo avanço do ativismo identitário no Brasil” (Miskolci, 2021, p. 25) que teria alcançado os espaços educacionais e acadêmicos no país. Diversos/as autores/as críticos às identidades destacam o papel que as universidades desempenharam para a criação de novos conflitos identitários que teriam potencializado a vitória da extrema-direita, a polarização e a incapacidade do diálogo em nossa sociedade.

Esse debate identitário nas universidades, para Miskolci, gerou uma confusão entre o que é movimento social e o que é pesquisa científica e produção de conhecimento. “A universidade não pode se tornar instrumento dos interesses das elites ou dos movimentos sociais sem abandonar seu papel crítico, social e político, de intermediação por meio da pesquisa científica e da disseminação do conhecimento” (Miskolci, 2021, p. 25). Para ele, os ativismos identitários usaram o escracho, o cancelamento, a vigilância comportamental e ideológica, repertório, diz ele, que “não colabora para alcançarmos uma sociedade mais democrática e inclusiva. Ao contrário, trouxe-nos um conflito permanente, novas formas de censura e, inclusive, pode ter contribuído para a extrema-direita chegar ao poder” (Miskolci, 2021, p. 26). Ou seja, aqui ele sugere que os ativismos levaram Bolsonaro ao poder. O foco do sociólogo não está no golpe, na prisão ilegal de Lula, nas fake news, no discurso do ódio, mas justamente em quem lutou contra a extrema-direita. Esse é o giro crítico às identidades que fica nítido novamente com a repercussão da performance de Tertuliana Lustosa dentro das universidades brasileiras.

Judith Butler, em Quem tem medo do gênero?, no qual analisa as movimentações em torno da “ideologia de gênero” em vários países, inclusive no Brasil, recorreu à ideia de fantasma para tentar entender por que esses discursos tão falaciosos encontram tantos/as adeptos. Através das reflexões de Laplanche em torno da sintaxe do fantasma, ela consegue explicar a eficácia da “ideologia de gênero” e sugere como poderíamos combatê-la. Por exemplo, ela diz que não adiantaria tentar convencer um adepto do discurso da “ideologia de gênero” porque isso seria praticamente impossível. Seria preciso, assim como fazem os próprios adeptos da “ideologia de gênero”, sensibilizar as pessoas recorrendo também às emoções. Ao invés do pânico e do ódio, sentimentos muito valorizados pela extrema-direita, precisaríamos recuperar os afetos positivos e mais alegres da esquerda. Ou seja, a batalha seria muito mais no campo das subjetividades do que no plano mais racional e objetivo.

As reflexões de Butler são inspiradoras para pensar as diferenças entre os adeptos da “ideologia de gênero” e esses novos discursos críticos às identidades. Mas o livro de Butler também nos dá subsídios para refletir sobre os processos de subjetivação típicos de cada período histórico, que são potentes, penso eu, para entender por que emergiram, nos últimos anos, tantos livros de importantes intelectuais críticos às identidades.

Como eu já disse, essas novas críticas às identidades ocorrem quando importantes políticos de extrema-direita chegam ao poder. Em vários países, as questões identitárias foram decisivas e centrais nas últimas eleições. Elas deixaram de ser laterais para figurar no centro dos debates. Ao invés de entender esse fenômeno como resultado de longas e intensas lutas dos movimentos sociais, determinados analistas desta nova onda crítica às identidades atribuem aos identitários a eleição de políticos de extrema direita e a dificuldade de produzir o debate em nossa sociedade. Por isso, também cabe a pergunta: esses novos livros críticos às identidades, afinal, são escritos para quem? Ou melhor, a quem eles servem?

O discurso de ódio, ao que parece, contaminou a todos, ainda que em graus possivelmente variados e também impacta, em algum nível, os próprios novos discursos críticos às identidades. Ou seja, somos um mal a ser combatido no espectro da extrema direita e do fundamentalismo religioso, através da ideologia de gênero, e um mal a ser combatido no campo progressista. Alguns autores que citei anteriormente equivalem “identitarismo” de esquerda com “identitarismo” de direita, o que considero um grande equívoco que resulta de uma imensa desonestidade intelectual. Os motivos pelos quais a direita recorreu à identidade são opostos aos motivos que fizeram a esquerda se voltar para as identidades. Mas, a rigor, a identidade da direita sequer é entendida por eles como identidade, uma vez que ela é a norma, não é marcada e não se constrói enquanto tal. Por isso, essa equivalência é absurda.

Um dos aspectos muito citados pelos novos críticos às identidades está relacionado ao surgimento de novas identidades de gênero (homens e mulheres trans, pessoas não binárias, agênero etc.) e a criação da categoria cisgênero para identificar as pessoas que se identificam com o gênero designado no seu nascimento. Minha hipótese é de que os ativismos identitários começam a ser entendidos como um novo problema da política e da sociedade como um todo quando eles deixam de apenas afirmar as suas próprias identidades e reivindicar os seus direitos e passam a também questionar a norma, ou seja, a identidade da maioria. E isso não aconteceu apenas nos trabalhos acadêmicos e dentro do ativismo civil mais institucionalizado. A novidade dos últimos anos é o surgimento de uma imensa cena artivista das dissidências raciais, sexuais e de gênero em vários países, um braço artístico de grande visibilidade e ativismo que irá desestabilizar as normas de uma forma nunca vista no Brasil e em vários outros países.

Foi assim, penso eu, que ativistas e/ou intelectuais do campo dos direitos humanos de pessoas negras e LGBTQIAPN+ avançaram para além da macropolítica e desenvolveram estratégias da micropolítica, nos termos de Suely Rolnik. Minha hipótese é que isso gerou uma tamanha desestabilização na produção de conhecimentos e na própria sociedade, em particular nas disputas eleitorais dos últimos anos, que fizeram emergir também esses novos discursos críticos às identidades. O mesmo parece ocorrer no tocante aos ativismos e estudos étnico-raciais a partir do momento da criação do conceito de branquitude, que aponta que as pessoas brancas também possuem identidade racial e que ela confere privilégio a elas.

Suely Rolnik explica que o que diferencia a macropolítica da micropolítica não é a escala da política. A micropolítica é aquela capaz de produzir outros processos de subjetivação. “Macropolítica atua via recognição identitária para construir movimentos organizados e/ou partidos políticos) (…) Micropolítica atua via ressonância entre frequências de afetos para a construção do “comum”) (Rolnik, 2018, p. 140). A psicanalista cartografou os processos de subjetivação do Brasil nas últimas duas décadas no livro Esferas da insurreição – notas para uma vida não cafetinada. Segundo ela, a aliança entre os neoliberais e os neoconservadores com vistas a levar o projeto colonial às últimas consequências apostou em subjetividades rudes e perversas para chegar ao poder.

Além de produzir graves crises institucionais, com golpes, disseminação de informações falsas e a demonização das esquerdas, se produziu uma certa política de subjetivação. Essa política teria como “elemento fundamental o abuso da vida enquanto força de criação e transmutação”, “com uma ânsia de massacrar todos aqueles que não são o seu espelho. É quando irrompe mais violentamente o surto conservador. (…) Toma-se como alvo a cultura em seu sentido amplo: das práticas artísticas, educacionais, terapêuticas e religiosas (não cristãs) aos modos de existência que não se encaixam nas categorias machistas, heteronormativas, homofóbicas, transfóbicas, racistas, classistas e xenófobas”. (Rolnik, 2018, p. 166) Rolnik estava se referindo ao processo de subjetivação que acabou por eleger Jair Bolsonaro. A minha pergunta é: em que medida esses processos de subjetivação que levaram a extrema direita ao poder no Brasil e em outros países contaminaram também os intelectuais do campo da esquerda e progressistas?

 

Fonte: Por Leandro Colling, no Le Monde

 

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