Os novos discursos críticos às identidades
e a crise nas universidades
Em que medida os
processos de subjetivação que levaram a extrema direita ao poder no Brasil e em
outros países contaminaram também os intelectuais do campo da esquerda e
progressistas?
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No dia 22 de outubro
de 2024, o Le Monde Diplomatique Brasil publicou o texto A crise da hegemonia
identitária nas universidades, de autoria do sociólogo Richard Miskolci. A
proposta foi a de tentar explicar por que eventos como a performance “Educando
com o C*”, de Tertuliana Lustosa, ocorrida na Universidade Federal do Maranhão,
deixaram de apenas chocar o público externo das universidades e, “pela primeira
vez em muitos anos, alcançaram repercussão e repúdio internos” das instituições
de ensino superior.
Pretendo apresentar
respostas bem distintas para o questionamento de Miskolci. Mas, antes disso,
uma correção (1) e uma (2) informação preliminar:
1.
Tertuliana, ao contrário do que diz o autor, não integra o Núcleo de
Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), da
Universidade Federal da Bahia, grupo que eu ajudei a criar em 2007 e do qual sou
um dos coordenadores. O NuCuS, segundo o raciocínio do sociólogo, seria um dos
responsáveis pela “hegemonia identitária” que teria se instalado em nossas
universidades e que agora estaria em crise. Junto com essa hegemonia, teria
vindo o cancelamento de determinadas pessoas, “o monopólio de um suposto ‘local
de fala’”, que “se sobrepôs e superou o da pesquisa e seus resultados”, e o
rebaixamento da qualidade dos trabalhos acadêmicos porque, afinal, a “força
política autoritária” garantiria “a grupos identitários, seus membros e
apoiadores o poder de se impor, inclusive sem ter que provar academicamente sua
suposta expertise”.
2. Em 2015, durante a realização do II
Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizado na UFBA, diversas
performances, inclusive com corpos nus, foram realizadas. Na abertura, antes da
conferência de Judith Butler, ocorrida no Teatro Castro Alves, em Salvador,
diversos cus foram exibidos ao som da música Polka do cu, da trilha sonora do
filme Tatuagem. A performance mimetizava cenas do filme sobre o grupo de teatro
Vivencial Diversiones. Não registramos reações aquela performance. O que mudou
de lá para cá? O que mudou na nossa sociedade em geral, nas universidades e em
determinados intelectuais que se dizem do campo da esquerda, progressistas e/ou
liberais? No meu entender, enfrentar essa questão é fundamental.
Muitas coisas mudaram
de 2015 para cá. Elenco apenas alguns delas: o discurso de uma suposta
“ideologia de gênero” se amplificou de forma absurda, acabando com as poucas
políticas de respeito à diversidade sexual e de gênero que estavam sendo
gestadas, e a extrema direita chegou ao poder. Mas também ocorreu uma brutal
transformação nas universidades e, junto com ela, veio também a produção de
outros saberes. Esses saberes transformaram o queer (branco, cisgênero,
estadunidense e sudestino) em cuir ou kuir (pensado pelo cu do mundo, pelas
nossas abjeções e insultos locais) e se misturou com o feminismo negro, o
transfeminismo e o decolonial. Aquele queer inicial não existe mais.
Todas essas
transformações, ocorridas aqui e em outros países como Estados Unidos, Espanha
e França, produziram uma reação também de alguns intelectuais que se
identificam como de esquerda, progressistas e/ou liberais. Esses intelectuais,
entre os quais está Miskolci, integram o que estou chamando, de forma ainda
provisória, de novos discursos críticos às identidades LGBTQIAPN+ e negras.
Estou me referindo a recentes obras de intelectuais como Elisabeth Roudinesco,
Susan Neiman, John McWhorter, Yascha Mounk, Mark Lilla, Francisco Bosco,
Antonio Risério, Wilson Gomes e muitos/as outros/as.
Todos esses autores/as
se diferenciam das críticas às identidades realizadas pelos estudos culturais e
queer. Nesses estudos, a proposta era a de criticar o essencialismo, o
binarismo e apontar as multiplicidades e transformações das identidades.
Miskolci fazia isso antes de 2015, assim como eu e muitas outras pessoas. Agora
o foco é desqualificar as identidades e seus conhecimentos (especialmente as
LGBT, negras e de mulheres), responsabilizá-las pelas vitórias da
extrema-direita e evidenciar como elas seriam narcísicas, algo próprio do
neoliberalismo e das subjetividades marcadas pelas redes sociais online.
Em Batalhas morais –
política identitária na esfera pública técnico-mediatizada, publicado em 2021,
Miskolci estudou por que os temas de gênero e sexualidade geraram um pânico
moral/sexual na sociedade brasileira desde 2010. Por um lado, ele faz uma análise
de como esse pânico foi construído pela direita em torno da ideia de “ideologia
de gênero”. No entanto, para ele, “esse pânico foi potencializado pelo avanço
do ativismo identitário no Brasil” (Miskolci, 2021, p. 25) que teria alcançado
os espaços educacionais e acadêmicos no país. Diversos/as autores/as críticos
às identidades destacam o papel que as universidades desempenharam para a
criação de novos conflitos identitários que teriam potencializado a vitória da
extrema-direita, a polarização e a incapacidade do diálogo em nossa sociedade.
Esse debate
identitário nas universidades, para Miskolci, gerou uma confusão entre o que é
movimento social e o que é pesquisa científica e produção de conhecimento. “A
universidade não pode se tornar instrumento dos interesses das elites ou dos
movimentos sociais sem abandonar seu papel crítico, social e político, de
intermediação por meio da pesquisa científica e da disseminação do
conhecimento” (Miskolci, 2021, p. 25). Para ele, os ativismos identitários
usaram o escracho, o cancelamento, a vigilância comportamental e ideológica,
repertório, diz ele, que “não colabora para alcançarmos uma sociedade mais
democrática e inclusiva. Ao contrário, trouxe-nos um conflito permanente, novas
formas de censura e, inclusive, pode ter contribuído para a extrema-direita
chegar ao poder” (Miskolci, 2021, p. 26). Ou seja, aqui ele sugere que os
ativismos levaram Bolsonaro ao poder. O foco do sociólogo não está no golpe, na
prisão ilegal de Lula, nas fake news, no discurso do ódio, mas justamente em
quem lutou contra a extrema-direita. Esse é o giro crítico às identidades que
fica nítido novamente com a repercussão da performance de Tertuliana Lustosa
dentro das universidades brasileiras.
Judith Butler, em Quem
tem medo do gênero?, no qual analisa as movimentações em torno da “ideologia de
gênero” em vários países, inclusive no Brasil, recorreu à ideia de fantasma
para tentar entender por que esses discursos tão falaciosos encontram tantos/as
adeptos. Através das reflexões de Laplanche em torno da sintaxe do fantasma,
ela consegue explicar a eficácia da “ideologia de gênero” e sugere como
poderíamos combatê-la. Por exemplo, ela diz que não adiantaria tentar convencer
um adepto do discurso da “ideologia de gênero” porque isso seria praticamente
impossível. Seria preciso, assim como fazem os próprios adeptos da “ideologia
de gênero”, sensibilizar as pessoas recorrendo também às emoções. Ao invés do
pânico e do ódio, sentimentos muito valorizados pela extrema-direita,
precisaríamos recuperar os afetos positivos e mais alegres da esquerda. Ou
seja, a batalha seria muito mais no campo das subjetividades do que no plano
mais racional e objetivo.
As reflexões de Butler
são inspiradoras para pensar as diferenças entre os adeptos da “ideologia de
gênero” e esses novos discursos críticos às identidades. Mas o livro de Butler
também nos dá subsídios para refletir sobre os processos de subjetivação típicos
de cada período histórico, que são potentes, penso eu, para entender por que
emergiram, nos últimos anos, tantos livros de importantes intelectuais críticos
às identidades.
Como eu já disse,
essas novas críticas às identidades ocorrem quando importantes políticos de
extrema-direita chegam ao poder. Em vários países, as questões identitárias
foram decisivas e centrais nas últimas eleições. Elas deixaram de ser laterais
para figurar no centro dos debates. Ao invés de entender esse fenômeno como
resultado de longas e intensas lutas dos movimentos sociais, determinados
analistas desta nova onda crítica às identidades atribuem aos identitários a
eleição de políticos de extrema direita e a dificuldade de produzir o debate em
nossa sociedade. Por isso, também cabe a pergunta: esses novos livros críticos
às identidades, afinal, são escritos para quem? Ou melhor, a quem eles servem?
O discurso de ódio, ao
que parece, contaminou a todos, ainda que em graus possivelmente variados e
também impacta, em algum nível, os próprios novos discursos críticos às
identidades. Ou seja, somos um mal a ser combatido no espectro da extrema
direita e do fundamentalismo religioso, através da ideologia de gênero, e um
mal a ser combatido no campo progressista. Alguns autores que citei
anteriormente equivalem “identitarismo” de esquerda com “identitarismo” de
direita, o que considero um grande equívoco que resulta de uma imensa
desonestidade intelectual. Os motivos pelos quais a direita recorreu à
identidade são opostos aos motivos que fizeram a esquerda se voltar para as
identidades. Mas, a rigor, a identidade da direita sequer é entendida por eles
como identidade, uma vez que ela é a norma, não é marcada e não se constrói
enquanto tal. Por isso, essa equivalência é absurda.
Um dos aspectos muito
citados pelos novos críticos às identidades está relacionado ao surgimento de
novas identidades de gênero (homens e mulheres trans, pessoas não binárias,
agênero etc.) e a criação da categoria cisgênero para identificar as pessoas que
se identificam com o gênero designado no seu nascimento. Minha hipótese é de
que os ativismos identitários começam a ser entendidos como um novo problema da
política e da sociedade como um todo quando eles deixam de apenas afirmar as
suas próprias identidades e reivindicar os seus direitos e passam a também
questionar a norma, ou seja, a identidade da maioria. E isso não aconteceu
apenas nos trabalhos acadêmicos e dentro do ativismo civil mais
institucionalizado. A novidade dos últimos anos é o surgimento de uma imensa
cena artivista das dissidências raciais, sexuais e de gênero em vários países,
um braço artístico de grande visibilidade e ativismo que irá desestabilizar as
normas de uma forma nunca vista no Brasil e em vários outros países.
Foi assim, penso eu,
que ativistas e/ou intelectuais do campo dos direitos humanos de pessoas negras
e LGBTQIAPN+ avançaram para além da macropolítica e desenvolveram estratégias
da micropolítica, nos termos de Suely Rolnik. Minha hipótese é que isso gerou
uma tamanha desestabilização na produção de conhecimentos e na própria
sociedade, em particular nas disputas eleitorais dos últimos anos, que fizeram
emergir também esses novos discursos críticos às identidades. O mesmo parece
ocorrer no tocante aos ativismos e estudos étnico-raciais a partir do momento
da criação do conceito de branquitude, que aponta que as pessoas brancas também
possuem identidade racial e que ela confere privilégio a elas.
Suely Rolnik explica
que o que diferencia a macropolítica da micropolítica não é a escala da
política. A micropolítica é aquela capaz de produzir outros processos de
subjetivação. “Macropolítica atua via recognição identitária para construir
movimentos organizados e/ou partidos políticos) (…) Micropolítica atua via
ressonância entre frequências de afetos para a construção do “comum”) (Rolnik,
2018, p. 140). A psicanalista cartografou os processos de subjetivação do
Brasil nas últimas duas décadas no livro Esferas da insurreição – notas para
uma vida não cafetinada. Segundo ela, a aliança entre os neoliberais e os
neoconservadores com vistas a levar o projeto colonial às últimas consequências
apostou em subjetividades rudes e perversas para chegar ao poder.
Além de produzir
graves crises institucionais, com golpes, disseminação de informações falsas e
a demonização das esquerdas, se produziu uma certa política de subjetivação.
Essa política teria como “elemento fundamental o abuso da vida enquanto força
de criação e transmutação”, “com uma ânsia de massacrar todos aqueles que não
são o seu espelho. É quando irrompe mais violentamente o surto conservador. (…)
Toma-se como alvo a cultura em seu sentido amplo: das práticas artísticas,
educacionais, terapêuticas e religiosas (não cristãs) aos modos de existência
que não se encaixam nas categorias machistas, heteronormativas, homofóbicas,
transfóbicas, racistas, classistas e xenófobas”. (Rolnik, 2018, p. 166) Rolnik
estava se referindo ao processo de subjetivação que acabou por eleger Jair
Bolsonaro. A minha pergunta é: em que medida esses processos de subjetivação
que levaram a extrema direita ao poder no Brasil e em outros países
contaminaram também os intelectuais do campo da esquerda e progressistas?
Fonte: Por Leandro
Colling, no Le Monde
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