Coluna Prestes, 100 anos: o que foi o
movimento militar que queria 'corrigir' a política brasileira
O clima de
descontentamento com suas próprias condições de trabalho e com os rumos
políticos do Brasil dominava os quartéis naquele início de anos 1920.
Eventos causados por
essa revolta se somavam, dentro daquilo que ficou conhecido como movimento
tenentista: o Levante do Forte de Copacabana, em 1922, e a Revolta Paulista de
1924 haviam sido os principais.
Em 28 de outubro de
1924, um grupo de militares se organizou para nova mobilização. Na Região das
Missões, noroeste do Rio Grande do Sul, o capitão Luís Carlos Prestes
(1898-1990), que comandava o 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, mobilizou
batalhões e cavalarias para uma marcha até o oeste paranaense, com o objetivo
de encontrarem-se com os remanescentes do recente conflito paulista.
Germinava ali a Coluna
Prestes, também chamada de Coluna Miguel Costa-Prestes, oficialmente batizada
como 1ª Divisão Revolucionária.
“A Coluna Prestes se
constituiu como uma parte importante, com certeza a maior expressão, do
descontentamento e aversão em relação ao organismo político vigente da
República Velha”, define o historiador Rafael Policeno de Souza, pesquisador na
Universidade Federal do Paraná, em artigo publicado na Revista Historiador.
Os integrantes do
movimento tinham entre suas bandeiras a insatisfação com o governo federal de
Artur Bernardes (1875-1955) e com o modelo que ficou conhecido como “café com
leite”, em que o comando da nação era revezado ora por um oligarca paulista,
ora por um mineiro.
Eles também pediam a
instituição do voto secreto e defendiam o ensino público para todos.
Também aglutinavam
pautas difusas, como o clamor pelo fim da miséria e da injustiça social no
Brasil.
“Queriam corrigir a
política brasileira”, define à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique
Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Corrigir a
partir da ordem e da disciplina férrea, do pensamento positivista e da doutrina
militar, ambas de um autoritarismo sem igual.”
“Esperavam assentar a
política em valores republicanos que seus líderes e adeptos consideravam
esquecidos, rejeitados e abandonados, ao longo de trinta anos do regime
instalado em 1889 e definido na Constituição de 1891”, acrescenta ele.
O sociólogo Paulo
Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo
(FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), acrescenta à
reportagem que o movimento tinha, em suas raízes, uma “grande crítica às
péssimas condições de vida dos militares”.
“Com o tempo, o
movimento foi adquirindo outras proporções, com a exigência do ensino básico
obrigatório, a solução da fome, o voto secreto, e até mesmo a ideia de que era
preciso moralizar a política brasileira, vista como excessivamente corrupta”,
diz Ramirez.
“A insatisfação nos
quartéis e a autoproclamação dos militares como redentores e regeneradores da
República no Brasil foram as notas dominantes. Quiseram encarnar, falar e agir
em nome de toda a ‘nação brasileira’”, enfatiza o professor Martinez.
Ele acrescenta que “a
este imaginário político místico e mítico de uma sociedade em perigo e
ameaçada” acabou se somando o “fantasma do comunismo”.
“Foram abertos
caminhos para discursos e a ressureição de símbolos, personagens e atitudes de
novos messias, ‘salvadores da pátria’, quase sempre fardados. Estes fantasmas
rondam a política brasileira ainda no século 21”, compara.
Pesquisador na Unesp e
professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor
Missiato ressalta à BBC News Brasil que as bandeiras carregadas pelos
revoltosos “eram diferentes entre si”, mas “no caso dos tenentistas,
evidentemente que havia a intenção de uma modernização radical do Estado, no
que diz respeito à educação e à formação política”.
• 25 mil quilômetros
Ao longo de dois anos,
a coluna percorreu cerca de 25 mil quilômetros pelo país.
Chegou a reunir 1,5
mil militantes — dentre eles, cerca de 50 mulheres.
Embora não tenham
conseguido derrubar o governo de Bernardes, pesquisadores apontam que o papel
dos revoltosos foi crucial para o enfraquecimento da política do café com
leite, abrindo caminho para a Revolução de 1930 — o golpe de Estado que
permitiu a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder.
Além de Prestes, o
outro principal líder do movimento foi o também militar Miguel Costa
(1885-1959). Este trazia na bagagem a experiência de ter participado da Revolta
Paulista ocorrida em julho de 1924.
Policeno de Souza
contextualiza essa junção entre os movimentos paulista e gaúcho, lembrando que
“desde o levante” ocorrido em São Paulo “os quartéis conspiravam”.
“Em 28 de outubro de
1924, na região missioneira do Rio Grande do Sul se levantou, com objetivo de
abrir outro foco de luta, em consideração aos revoltosos paulistas, mais um
levante. Este liderado por Prestes, até então não reconhecido como grande
comandante”, escreve o historiador.
“Com o desenrolar da
luta e a necessária ‘guerra de movimento’, Prestes liderou os revolucionários
até o oeste parananese, objetivando encontrar os remanescentes das lutas do
sudeste.”
Esse encontro ocorreu
em Foz do Iguaçu. Segundo Souza, a partir daí “se passou a dar voz ao maior
ícone desta empreitada”: Prestes.
Isto porque naquele
momento parte dos militantes defendia o exílio para a Argentina. O líder,
contudo, advogava pela continuidade da luta. “Prestes ganhou o debate e
conseguiu […] motivar os rebeldes a marchar para o interior inóspito do
território brasileiro, levando consigo toda a inconformidade e crença na
derrubada de Artur Bernardes, o grande objetivo inicial da coluna”, narra o
historiador.
Souza conta que a
marcha pelos confins brasileiros não estava no plano inicial dos revoltosos.
Isto ocorreu meio por acaso. Por conta dessa interiorização da marcha, no
entanto, “os revolucionários passaram a se organizar para, a partir dos
contatos com as populações rurais, passarem a estabelecer simpatia e adesões de
novos combatentes”.
Ele relata que há
registros de ações dos militantes em favor dos mais pobres, como destruição e
queimada de “processos que os coronéis moviam contra os pequenos agricultores”,
soltura de presos e doações de “medicamentos aos mais necessitados”.
Tais gestos eram
vistos não só como solidariedade diante das mazelas encontradas pelos
militares, mas também como uma tentativa de diluir a propaganda governista, que
buscava retratá-los como inimigos. “Fazia-se um ‘filme de horrores’ da coluna”,
diz o pesquisador.
• Fim da coluna
O movimento chegou ao
fim pelo desgaste de seus integrantes.
“A coluna percorreu
muitos dos Estados brasileiros até encontrar sua derrocada. Eles queriam a
deposição, em um primeiro momento, do governo de Artur Bernardes. Já em final
de mandato [encerrado em novembro de 1926], não fazia mais sentido a manutenção
da coluna”, avalia Ramirez.
Em seu artigo, Souza
diz que “é preciso reconhecer que não havia na coluna um projeto de agitação
para que o povo aderisse”. “Estavam todos ainda imaturos em termos de
organização de uma política pragmática”, analisa ele.
“[Eles] não
conseguiram”, crava o historiador Martinez. “O êxito político foi terem
colocado em evidência as fragilidades e a instrumentalização dos meios
jurídicos e políticos, das instituições públicas e do eleitorado, no
favorecimento dos interesses do grande capital agrário, mercantil, financeiro e
industrial, nacional e estrangeiro.”
Os integrantes
acabaram quase todos exilados na Bolívia e na Argentina.
Se não houve a
derrubada do governo conforme planejada por eles, é fato que houve um
enfraquecimento do status quo político nacional que acabaria abrindo caminho
para a chegada de Vargas ao poder, sacramentando o fim da chamada República
Velha.
“O fim da coluna não
significou o fim do movimento tenentista. Tanto que ele acabou influenciando de
alguma forma a ascensão do Vargas com o golpe de Estado contra o que foi
chamado por ele mesmo de República Velha”, explica Ramirez.
“De alguma forma, essa
ideia de uma organização mais forte, militar, dentro do Estado, isso remete à
coluna e talvez seja uma das grandes influências”, complementa o sociólogo,
lembrando que o próprio Vargas depois acabou neutralizando o tenentismo e “centralizando
o poder em suas mãos”.
O historiador Martinez
comenta ainda que o movimento acabou influenciando a República “na tutela
política da sociedade”.
“De um lado, esta
tutela segue hospedada, até os nossos dias, na ação do Estado e de sua suprema
direção: a presidência da República. De outro lado, esta tutela é voltada
diretamente para a reprodução e a concentração da renda, da terra, da cultura e
do poder político nas mãos de famílias e grupos econômicos”, explica.
“Estes são
abastecidos, ininterruptamente, com recursos, investimentos, cargos,
informações e decisões estatais em benefício próprio. A tutela política da
sociedade alimenta carreiras de clãs e dinastias políticas, consagradas em
sobrenomes, que se repetem no âmbito dos três Poderes, das Forças Armadas e nas
diferentes escalas da vida nacional, de vereadores a presidentes”, completa
ele.
• Na esquerda e na direita
Os principais nomes do
movimento tiveram destinos distintos.
Prestes se revelou
ativista de esquerda e filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi
perseguido e preso pela ditadura do Estado Novo implementada por Vargas.
Sua companheira, a
militante comunista Olga Benário (1908-1942), foi entregue pelo governo
brasileiro aos nazistas e acabaria executada em câmara de gás.
Até o fim da vida,
Prestes defendeu a revolução comunista. Em 1942, ganhou uma biografia
romanceada escrita por Jorge Amado (1912-2001), chamada de O Cavaleiro da
Esperança — que consolidaria aí seu epíteto.
Foi eleito senador,
ocupando o cargo de 1946 a 1948. Durante a ditadura cívico-militar instituída
com o golpe de 1964, teve seus direitos políticos cassados e exilou-se na União
Soviética. Dirigiu o PCB de 1943 a 1980.
Em artigo publicado em
1993 no periódico Lua Nova: Revista de Cultura e Política, o professor
universitário e escritor Ottaviano de Fiori di Cropano (1931-2016) afirma que
“houve dois partidos comunistas bem diversos no Brasil”. “Um antes de Prestes,
outro depois dele”, diz.
“O primeiro, fundado
em 1922 por anarquistas, rebeldes e intelectuais, não teve importância. Era
pequeno demais e não tinha raízes na sociedade”, afirma. “O segundo, que começa
em 1935 com a entrada dos jacobinos prestistas, que seguem seu comandante para
fora do tenentismo e para dentro do comunismo, é o Partido Comunista que
conhecemos”, prossegue o texto.
“O partido que,
enfrentando sozinho getulistas, liberais, coronéis e meios de comunicação,
usando apenas o prestígio da dobradinha Prestes-URSS, obteve 10% dos votos
nacionais nas eleições de 1946 e tornou-se uma força viva na história
brasileira.”
Miguel Costa combateu
na Revolução de 1930 e atuou no movimento que daria origem à Revolução de 1932,
em São Paulo — não participou ativamente porque foi preso antes do início das
batalhas.
“Miguel Costa
continuou na cena política, desempenhando, na década de 1930, certo
protagonismo, sobretudo, em São Paulo. A construção do mito do ‘cavaleiro da
esperança’, em torno de Prestes, na década de 1940, a vida atribulada que teve
e os nove anos na prisão, até o fim do Estado Novo, engoliu a figura de Miguel
Costa”, diz Martinez.
“Embora este
mantivesse posições críticas e insubmissas, até socialistas, não havia espaço
para outros heróis-míticos no imaginário da política brasileira após 1945.
Prestes e o próprio Vargas ocuparam este espaço com presença, estruturas
políticas, propaganda e apoio massivos.”
Para Fiore di Cropani,
“neste novo mundo”, Prestes, Olga, Vargas e outros “adquirem a tez
fantasmagórica das velhas fotografias”, posto que “tornaram-se história”. “Mas
as paixões que os moveram, o objetivo profundamente moderno de mudar o mundo e
o eterno desejo de justiça e poder, não morrerão”, escreve ele.
Outros integrantes do
primeiro escalão da coluna se tornaram extremistas de direita. “Rapidamente,
muitos deles foram cooptados e engajaram-se, por conta e interesse próprios, em
outras sedições e composições políticas de inspiração fascista e mesmo nazista”,
diz Martinez.
Ele cita o caso de
Filinto Müller (1900-1973). “Foi um dos integrantes da coluna, [depois]
tornou-se chefe de Polícia do Estado Novo, exercendo o sadismo de visitar
Prestes na cadeia e afrontar-lhe a derrota política e ideológica, além de
tripudiar o destino pessoal deste”, comenta o historiador.
Quando morreu, nos
anos 1970, Müller era senador pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), o
partido que dava sustentação à ditadura — “que ele apoiava entusiasticamente”,
ressalta Martinez.
O historiador lembra
ainda de outros “que abraçaram ideias e práticas ditatoriais” como o militar
Juarez Távora (1898-1975), que chefiou dois ministérios na Era Vargas e,
durante a ditadura pós-1964, foi ministro de Viação e Obras Públicas no governo
de Humberto Castello Branco (1897-1967).
O quarto presidente da
ditadura brasileira, Ernesto Geisel (1907-1996), estudava na Escola Militar de
Realengo na época da coluna Prestes e era um admirador do movimento.
Fonte: BBC News Brasil
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