segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Sofrimento e luta das prostitutas na pandemia

Um estudo mostra a realidade dessas trabalhadoras que não puderam aderir ao “fique em casa”. Relatam sofrimento mental, piora nos atendimentos do SUS e aumento da violência. Mas sua auto-organização foi importante para proteção coletiva

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A pandemia de covid-19 escancarou desigualdades estruturais em todo o mundo, mas seus impactos foram sentidos de forma ainda mais acentuada entre populações marginalizadas. Um grupo especialmente afetado no Brasil foi o das trabalhadoras sexuais, como revela o estudo “Eu Quero é Mais! A Vida de Profissionais do Sexo Durante a Pandemia da COVID-19”.

Realizado pelo programa de investigação comunitária EPIC, o estudo analisou as experiências de trabalhadoras sexuais cis, trans e travestis em 11 cidades brasileiras e nove estados ao longo de 2020 e 2021. Seu artigo foi publicado na Cadernos de Saúde Pública, parceira editorial de Outra Saúde. A pesquisa revelou que a pandemia agravou as já precárias condições de trabalho e saúde dessa população, ao mesmo tempo que evidenciou sua força organizativa e sua resistência.

Os dados qualitativos, baseados em entrevistas com 43 trabalhadoras sexuais, traçam um cenário de adoecimento físico e mental, vulnerabilidade econômica e social, e, sobretudo, a falta de respostas adequadas das políticas públicas. Grande parte das entrevistadas relatou dificuldades no acesso a serviços básicos de saúde, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS), que sofreu com a sobrecarga causada pela pandemia. Para muitas, a escolha era entre adoecer de covid-19 ou passar fome, uma realidade cruel que demonstra a falta de suporte econômico para trabalhadoras que foram obrigadas a continuar atuando nas ruas.

O isolamento social, recomendado como principal medida de prevenção contra a covid-19, não podia ser praticado pela grande maioria das trabalhadoras sexuais. Sem um auxílio emergencial suficiente e com a queda drástica na demanda por programas, muitas continuaram a trabalhar, apesar dos riscos. O estudo destaca que, para esse grupo “a rua afirma-se como um espaço privilegiado de encontros e de relativa ‘liberdade’, enquanto ‘ficar em casa’ significa isolar-se, flagrando-se como ameaça”. O confinamento em casa, quando possível, trouxe às prostitutas um aumento nas tensões familiares, violências domésticas e impactos à saúde mental.

A saúde mental foi um dos temas mais presentes nas entrevistas – há muitos relatos de aumento de depressão, ansiedade e aumento no uso de álcool. O medo de contrair covid-19, associado à insegurança financeira e ao isolamento, agravou esses quadros. Para trabalhadoras trans e travestis, o impacto foi ainda mais profundo, já que muitas precisaram voltar às casas de suas famílias, onde enfrentam transfobia e rejeição. Ao mesmo tempo, as ruas, onde trabalham, também se tornaram espaços mais violentos: em 2020 “foi observado um aumento de 40% na violência e assassinato de pessoas trans no país, em relação ao ano anterior”.

Diante da omissão do Estado, as trabalhadoras sexuais ativistas mobilizaram redes de solidariedade para sobreviver. Organizações como a APROSMIG (Associação das Prostitutas de Minas Gerais) e o Coletivo Mulheres da Luz, em São Paulo, organizaram campanhas de arrecadação de alimentos, máscaras e kits de higiene. Essas redes comunitárias, baseadas em um ativismo de décadas, foram fundamentais para garantir cuidados básicos para as profissionais durante a pandemia.

Um ponto importante do estudo é a discussão sobre o acesso à vacinação. Apesar de sua atuação e das condições precárias de saúde, as trabalhadoras sexuais não foram incluídas nos grupos prioritários de vacinação. Apenas aquelas que atuavam também como agentes de prevenção em saúde pública conseguiram se vacinar mais cedo. As organizações criaram estratégias como a gestão de “xepas” de vacinas – doses remanescentes – para vacinar o maior número possível de trabalhadoras.

Outro aspecto levantado pela pesquisa é o racismo estrutural que atravessa a vida dessas mulheres. A maioria das trabalhadoras sexuais entrevistadas era autodeclarada parda ou preta, e o estudo mostra como o impacto da pandemia foi mais severo para essas mulheres, tanto em termos de saúde quanto de vulnerabilidade econômica. O debate sobre raça, somado às questões de gênero e classe, foi essencial para entender como essas múltiplas camadas de opressão se manifestaram durante a crise sanitária.

As narrativas das trabalhadoras sexuais, contudo, não se resumem a histórias de sofrimento. Elas também falam de resistência e criação de novos caminhos para lidar com a pandemia. A pesquisa destaca que, mesmo sem o apoio do Estado, essas profissionais encontraram formas de adaptar seus trabalhos às novas condições impostas pela pandemia, com estratégias de prevenção de contágio, como acordos com clientes antigos e atendimento por videochamadas.

O estudo “Eu Quero é Mais!” reforça a importância de posicionar o trabalho sexual na interface entre saúde pública e direitos humanos. As ações coletivas das trabalhadoras sexuais durante a pandemia evidenciam a urgência de um reposicionamento político que reconheça seu trabalho e suas demandas de saúde. A marginalização histórica e a falta de políticas específicas para essa categoria mostram que é necessário um diálogo contínuo sobre seus direitos e sobre a necessidade de proteção social e sanitária.

“Mesmo com o fim da pandemia, os danos causados ainda marcam os territórios de prostituição, demandando ações continuadas nas organizações de trabalhadoras sexuais”, escrevem os pesquisadores. Esse é um debate que deve ser feito evitando moralismos – comuns também em parte do campo progressista. As vozes das prostitutas, como a de outros trabalhadores, é importante para formular políticas públicas de saúde que incluam populações historicamente marginalizadas. O estudo conclui: “[As trabalhadoras] reclamam um reposicionamento que articule prostituição, saúde e direitos humanos, tomando como princípio o poder de decisão sobre seus corpos, a preservação da vida e as relações sociais desde as bases coletivas de ação”.

 

Fonte: Por Gabriela Leite, em Outra Saúde

 

 

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