Sofrimento
e luta das prostitutas na pandemia
Um
estudo mostra a realidade dessas trabalhadoras que não puderam aderir ao “fique
em casa”. Relatam sofrimento mental, piora nos atendimentos do SUS e aumento da
violência. Mas sua auto-organização foi importante para proteção coletiva
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A
pandemia de covid-19 escancarou desigualdades estruturais em todo o mundo, mas
seus impactos foram sentidos de forma ainda mais acentuada entre populações
marginalizadas. Um grupo especialmente afetado no Brasil foi o das
trabalhadoras sexuais, como revela o estudo “Eu Quero é Mais! A Vida de
Profissionais do Sexo Durante a Pandemia da COVID-19”.
Realizado
pelo programa de investigação comunitária EPIC, o estudo analisou as
experiências de trabalhadoras sexuais cis, trans e travestis em 11 cidades
brasileiras e nove estados ao longo de 2020 e 2021. Seu artigo foi publicado na
Cadernos de Saúde Pública, parceira editorial de Outra Saúde. A pesquisa
revelou que a pandemia agravou as já precárias condições de trabalho e saúde
dessa população, ao mesmo tempo que evidenciou sua força organizativa e sua
resistência.
Os
dados qualitativos, baseados em entrevistas com 43 trabalhadoras sexuais,
traçam um cenário de adoecimento físico e mental, vulnerabilidade econômica e
social, e, sobretudo, a falta de respostas adequadas das políticas públicas.
Grande parte das entrevistadas relatou dificuldades no acesso a serviços
básicos de saúde, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS), que sofreu com
a sobrecarga causada pela pandemia. Para muitas, a escolha era entre adoecer de
covid-19 ou passar fome, uma realidade cruel que demonstra a falta de suporte
econômico para trabalhadoras que foram obrigadas a continuar atuando nas ruas.
O
isolamento social, recomendado como principal medida de prevenção contra a
covid-19, não podia ser praticado pela grande maioria das trabalhadoras
sexuais. Sem um auxílio emergencial suficiente e com a queda drástica na
demanda por programas, muitas continuaram a trabalhar, apesar dos riscos. O
estudo destaca que, para esse grupo “a rua afirma-se como um espaço
privilegiado de encontros e de relativa ‘liberdade’, enquanto ‘ficar em casa’
significa isolar-se, flagrando-se como ameaça”. O confinamento em casa, quando
possível, trouxe às prostitutas um aumento nas tensões familiares, violências
domésticas e impactos à saúde mental.
A
saúde mental foi um dos temas mais presentes nas entrevistas – há muitos
relatos de aumento de depressão, ansiedade e aumento no uso de álcool. O medo
de contrair covid-19, associado à insegurança financeira e ao isolamento,
agravou esses quadros. Para trabalhadoras trans e travestis, o impacto foi
ainda mais profundo, já que muitas precisaram voltar às casas de suas famílias,
onde enfrentam transfobia e rejeição. Ao mesmo tempo, as ruas, onde trabalham,
também se tornaram espaços mais violentos: em 2020 “foi observado um aumento de
40% na violência e assassinato de pessoas trans no país, em relação ao ano
anterior”.
Diante
da omissão do Estado, as trabalhadoras sexuais ativistas mobilizaram redes de
solidariedade para sobreviver. Organizações como a APROSMIG (Associação das
Prostitutas de Minas Gerais) e o Coletivo Mulheres da Luz, em São Paulo,
organizaram campanhas de arrecadação de alimentos, máscaras e kits de higiene.
Essas redes comunitárias, baseadas em um ativismo de décadas, foram
fundamentais para garantir cuidados básicos para as profissionais durante a
pandemia.
Um
ponto importante do estudo é a discussão sobre o acesso à vacinação. Apesar de
sua atuação e das condições precárias de saúde, as trabalhadoras sexuais não
foram incluídas nos grupos prioritários de vacinação. Apenas aquelas que
atuavam também como agentes de prevenção em saúde pública conseguiram se
vacinar mais cedo. As organizações criaram estratégias como a gestão de “xepas”
de vacinas – doses remanescentes – para vacinar o maior número possível de
trabalhadoras.
Outro
aspecto levantado pela pesquisa é o racismo estrutural que atravessa a vida
dessas mulheres. A maioria das trabalhadoras sexuais entrevistadas era
autodeclarada parda ou preta, e o estudo mostra como o impacto da pandemia foi
mais severo para essas mulheres, tanto em termos de saúde quanto de
vulnerabilidade econômica. O debate sobre raça, somado às questões de gênero e
classe, foi essencial para entender como essas múltiplas camadas de opressão se
manifestaram durante a crise sanitária.
As
narrativas das trabalhadoras sexuais, contudo, não se resumem a histórias de
sofrimento. Elas também falam de resistência e criação de novos caminhos para
lidar com a pandemia. A pesquisa destaca que, mesmo sem o apoio do Estado,
essas profissionais encontraram formas de adaptar seus trabalhos às novas
condições impostas pela pandemia, com estratégias de prevenção de contágio,
como acordos com clientes antigos e atendimento por videochamadas.
O
estudo “Eu Quero é Mais!” reforça a importância de posicionar o trabalho sexual
na interface entre saúde pública e direitos humanos. As ações coletivas das
trabalhadoras sexuais durante a pandemia evidenciam a urgência de um
reposicionamento político que reconheça seu trabalho e suas demandas de saúde.
A marginalização histórica e a falta de políticas específicas para essa
categoria mostram que é necessário um diálogo contínuo sobre seus direitos e
sobre a necessidade de proteção social e sanitária.
“Mesmo
com o fim da pandemia, os danos causados ainda marcam os territórios de
prostituição, demandando ações continuadas nas organizações de trabalhadoras
sexuais”, escrevem os pesquisadores. Esse é um debate que deve ser feito
evitando moralismos – comuns também em parte do campo progressista. As vozes
das prostitutas, como a de outros trabalhadores, é importante para formular
políticas públicas de saúde que incluam populações historicamente
marginalizadas. O estudo conclui: “[As trabalhadoras] reclamam um
reposicionamento que articule prostituição, saúde e direitos humanos, tomando
como princípio o poder de decisão sobre seus corpos, a preservação da vida e as
relações sociais desde as bases coletivas de ação”.
Fonte:
Por Gabriela Leite, em Outra Saúde
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