terça-feira, 8 de outubro de 2024

Como o Brasil já controlou o desmatamento na Amazônia

Foi como silenciar a motosserra: de 2004 a 2012 o Brasil conseguiu reduzir o desmatamento na Amazônia em 83%. No entendimento de especialistas, este empenho conjunto de governos, iniciativas privadas e sociedade civil precisa ser retomado — e aprimorado — para que o desflorestamento siga reduzindo, depois de nova alta nos últimos anos. E o país consiga cumprir a meta de zerar completamente o desmatamento até 2030, conforme o presidente Luís Inácio Lula da Silva afirmou em seu discurso recente na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

Para entender o caso é preciso voltar aos números. A série histórica da aferição feita pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espacial (Inpe) no bioma indica um cenário de hiperdesflorestamento que só foi controlado a partir de 2004. Os piores anos registraram uma perda de floresta de 29 mil quilômetros quadrados em 1995 e quase 28 mil em 2004 — para efeitos de comparação, isso significa uma área maior do que o estado de Alagoas. Em outras palavras, o mundo perdeu cerca o equivalente a mais de 11 mil campos de futebol por dia de Amazônia nesses dois anos.

Depois de iniciativas de aprimoramento de monitoramento, aumento de fiscalização e de punição, entre outras, a Amazônia Legal teve o menor desmatamento registrado em 2012 — 4,5 mil quilômetros quadrados. Ficou relativamente estável, sempre inferior a 8 mil quilômetros quadrados até 2019. Quando novamente saltou para a faixa dos cinco dígitos.

"Isso ocorreu por conta de três Ds: determinação, detecção e dissuasão", avalia o jornalista Claudio Angelo, coordenador de comunicação e política climática do Observatório do Clima e autor do recém-lançado livro O Silêncio da Motosserra: Quando o Brasil Decidiu Salvar a Amazônia, feito em parceria com o engenheiro florestal Tasso Azevedo. "Antes o Brasil era visto como um lugar onde era impossível controlar de forma sistemática e permanente o desmatamento."

•                                         Conjunção de fatores

A determinação veio no início do governo Lula, com Marina Silva assumindo o Ministério do Meio Ambiente e contando, explica Angelo, "com uma ampla coalisão de atores da sociedade civil, da ciência e da imprensa" afirmando que era possível deter o avanço do desmate. "Querer reduzir foi fundamental", diz ele.

"Houve de fato uma preocupação real sobre os números e o que eles significavam para a imagem do Brasil globalmente", analisa a bióloga Mariana Napolitano, diretora de estratégia do World Wildlife Fund (WWF) Brasil. Para ela, a grande diferença do plano feito no primeiro governo Lula para as iniciativas anteriores foi que "era da responsabilidade de coordenação da Casa Civil", o que implicava em "tocar em várias áreas do governo".

Houve uma conjunção de interesses. Angelo lembra que além das ações de governo, contribuíram para o movimento fatores de câmbio e flutuação de preço de commodities agrícolas, entre outros fatores. "E Lula […] que nunca foi um cara que se preocupou com a Amazônia, pois era um sindicalista urbano […], estava aberto, por conta de marketing político e de imagem internacional, a dar um banho de progressismo, civilidade […] e fazer diferente no meio ambiente".

"Foi um misto de visão de parte do governo e de um oportunismo político, aliado a uma certa simpatia. Um casamento muito feliz", diz o jornalista, que concorda que houve um "oportunismo político" da gestão petista.

Quanto à detecção, foi iniciado em 2004 um novo sistema do Inpe, chamado Deter, capaz de alertar em tempo real os casos de desmatamento. Isso fez com que equipes de fiscalização passassem a poder ser enviadas para focos imediatamente, e não com um atraso que chegava a dois anos. "É impossível ter helicópteros e aviões para monitorar toda a Amazônia o tempo todo, então satélite que dá alerta é fundamental", compara Angelo.

A dissuasão veio por meio de operações como a Boi Pirata, que retirou gado de áreas protegidas da Amazônia, e o corte de crédito para regiões embargadas. "Isso deixou desmatadores com medo o suficiente", diz. "Quando o setor criminoso entendeu que o governo estava determinado a fazer o que ele dizia que ia fazer, quando viram que a impunidade havia acabado, eles se sentiram dissuadidos de continuar cometendo

Napolitano acrescenta a este rol ainda a moratória da soja, pacto firmado em 2006 entre produtores agrícolas e organizações não governamentais, depois com a participação também do governo, que "inibiu bastante a abertura de novas áreas desmatadas da floresta".

"A postura de combate ao desmatamento foi muito mais do que marketing. Foi realmente uma proposta de outro modelo de desenvolvimento possível para o Brasil, um modelo que se baseia e se beneficia da floresta em pé", acredita a relações internacionais Gabriela Russo Lopes, pesquisadora do Centro de América Latina da Universidade de Amsterdã, na Holanda.

Ela lembra que houve "uma tomada de consciência" e "as ações foram tomadas" em um contexto político doméstico e internacional que permitiu isso. "Havia abertura à questão ambiental. O negacionismo [climático] não estava tão forte ainda. E houve um protagonismo dentro do governo", contextualiza, enfatizando que a ministra Marina Silva, no primeiro mandato Lula, teve autonomia para implementar as medidas.

•                                         Retrocesso

Sob o governo de Jair Bolsonaro, quando houve o afrouxamento das medidas de contenção e repressão do desmatamento e um discurso negacionista do impacto disto no aquecimento global, a situação voltou a ficar fora de controle. Em 2021, no auge de sua gestão, foram perdidos mais de 13 mil quilômetros quadrados de Amazônia, recorde em 15 anos.

"Obviamente não são as mesmas taxas observadas no início dos anos 2000, mas elas passam de 5 mil para 10 mil quilômetros quadrados, em um cenário já de degradação acumulada [do bioma], isso nos exige uma redução muito mais ambiciosa. Precisamos de fato caminhar para o desmatamento zero", pontua Napolitano.

Ela não acha que o sistema construído a partir de 2004 seja frágil e que isso tenha permitido o aumento recente. "A questão é que houve a entrada de um governo [a gestão Bolsonaro] que estimulou uma abordagem de desenvolvimento predatório do bioma, [propiciando] o retorno de coisas como grilagem de terra, invasões de áreas protegidas e crescimento do garimpo ilegal."

Por isso, a bióloga afirma que o desmatamento recente "está muito mais associado a ações ilegais, criminosas", enquanto o que ocorria antes de 2004 era consequência do aumento da fronteira agrícola ou de obras de infraestrutura.

Os dados voltaram a cair após a volta de Lula ao poder e o reajuste da pauta ambiental como prioritária. Dados do mais recente período são de 9 mil quilômetros quadrados — ainda muito, mas novamente abaixo dos cinco dígitos.

•                                         E agora?

Na análise de Angelo, "ninguém esperava que a queda fosse desse tamanho" em relativo curto período de tempo e isso indica que há uma espécie de "memória muscular" nos mecanismos de controle. "A questão agora é o quanto conseguimos avançar", comenta o jornalista. Para isso, ele acredita que é preciso criar incentivos econômicos para "mudar de fato a economia da região".

"Criar gado e plantar soja têm de deixar de ser as opções econômicas mais atrativas nessa região. É preciso desenvolver outras cadeias produtivas, de economia baseada na floresta", afirma ele.

Napolitano concorda que a situação vem melhorando, com redução significativa do desflorestamento amazônico e expectativas de aumento na tendência de queda. "Mas temos um bioma degradado e uma floresta que sofre bastante com a combinação de desmatamento histórico, degradação, o fogo e os efeitos das mudanças climáticas. Neste cenário, a Amazônia vive uma seca histórica, com queimadas [decorrentes] de fogo iniciado por criminosos", afirma a bióloga. "Isso vai exigir uma série de novas políticas."

Ela ressalta que é preciso aprimorar a inteligência no monitoramento e criar incentivos à bioeconomia, além de melhorias nos mecanismos de fortalecimento às áreas protegidas, ao papel dos indígenas e das comunidades tradicionais.

Lopes acrescenta uma nova dificuldade neste caldo contemporâneo: a polarização política, com sua guerra de narrativas. De um lado, houve a ascensão de um discurso de que "o desenvolvimento do Brasil depende do desmatamento, para aumentar a fronteira agrícola, exportar mais e melhorar a balança comercial". De outro, há o posicionamento científico e ambientalista de que estamos vivendo uma catástrofe climática sem precedentes. "Ainda falta muito para conciliar esses dois paradigmas", afirma ela. "E isso diminui a margem de manobra [do governo]."

"O controle do desmatamento é uma conquista da sociedade brasileira. Como o controle da inflação: mesmo que tenhamos governos irresponsáveis, não volta mais a hiperinflação", diz Angelo. "Acho que nunca mais teremos o hiperdesmatamento. Pelo contrário, temos condições de zerar o desmatamento. E há empenho presidencial para conseguirmos isso até 2030."

 

¨      Como o Brasil combate incêndios florestais

O poder e a duração das chamas desafiam o planejamento de combate aos incêndios na Floresta Amazônica nesta temporada. Sem previsão de chuva consistente no horizonte, a operação contra o fogo em várias regiões, que costumava ser encerrada no início de outubro, não tem data para acabar neste ano de seca recorde com sinais de agravamento da crise climática.

"Este tem sido o pior ano para o combate, para as operações. O comportamento do fogo está muito extremo, tem rajadas de vento muito fortes e as chamas mudam de direção toda hora", afirma Ana Canut, chefe de operações do Prevfogo, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama).

Canut falou com a DW direto da Terra Indígena do Xingu, Mato Grosso (MT). A missão dela é estabelecer as prioridades da operação, mobilizar as equipes e manter estratégia e tática de acordo com o planejado. No Xingu, pelo menos dois grandes incêndios estão ativos há quase um mês e o mais importante no momento é proteger as aldeias, já que existe o risco de elas serem atingidas.

É praticamente impossível apagar o fogo na Amazônia com trabalho humano direto. A alta temperatura impede que brigadistas cheguem muito perto, e despejar água da aeronave é pouco eficiente. A copa das árvores impede que água chegue em grande quantidade sobre as chamas de forma eficaz.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente, estão mobilizados 3.518 profissionais em campo neste momento. A maior parte deles, 2.728, são do Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), os demais integram as Forças Armadas e Força Nacional. Dão apoio às operações 29 aeronaves. 

<><> Linha de defesa na Amazônia

Numa floresta úmida, como é o caso da Amazônia, o fogo consome o que está mais perto do solo. Ele é alimentado principalmente pelas folhas caídas no chão – material chamado de serrapilheira –, e pela vegetação rasteira. As chamas dificilmente chegam a consumir a copa das árvores por completo.

Quando o incêndio já está instalado, a estratégia mais usada de combate é a abertura de linhas de defesa na floresta. A técnica prevê a remoção da vegetação em volta da área crítica para "cortar" o combustível que mantém o incêndio.

"A gente chega, faz um reconhecimento e analisa o comportamento do fogo. Se ele está ‘pequeno', a gente faz o combate direto. Quando ele está muito intenso, a gente fica mais longe e faz as linhas de defesa", detalha Macsuel Juruna, brigadista em ação na Terra Indígena Capoto Jarina (MT), no baixo Xingu.

A linha de defesa interrompe a ligação entre o material seco disponível – folhas, galhos, vegetação seca – e o fogo. "Se o fogo chegar ali, ele não vai passar. E se passar, o brigadista está ali cuidando e vai combater. Por isso é fundamental a vigilância na linha de defesa", detalha Marivaldo Gonçalves, combatente do Prevfogo de Rondônia com 13 anos de experiência.

Depois que o fogo é confinado numa área, o trabalho é de controlar o perímetro do incêndio, extinguir as chamas menores e monitorar a área até que não haja mais possibilidade de reignição.

Quando há tempo para planejar ações, a estratégia é construir aceiros, que é a "limpeza" da vegetação seca que alimenta o fogo. "Ela é feita antes do incêndio, quando se quer proteger uma área. A largura do aceiro é feita na proporção dos incêndios na região: pode ter um dois, quatro metros", explica Marcio Yule, que atua no Prevfogo desde 1995.

<><> O uso da água

Aquela cena de aviões ou helicópteros despejando água nas chamas não é comum no Brasil. As aeronaves, um recurso caro, são mais usadas para transportar brigadistas e equipamentos até as zonas afetadas, afirma Calut.

A água é importante para abastecer as bombas que as equipes carregam nas costas durante o combate. Esses equipamentos armazenam vinte litros de água e disparam jatos manuais com o objetivo de resfriar a temperatura. Desta forma, os brigadistas conseguem chegar mais perto do fogo com um outro equipamento-chave: o soprador.

"O soprador foi um equipamento revolucionário no combate. Ele tira o oxigênio do lugar que está queimado e varre o material que está queimando para a parte já queimada. Ele é equivalente ao trabalho de até oito pessoas com abafador", comenta Amilton Sá, brigadista voluntário e coordenador-executivo da Rede Contra o Fogo, que atua no Cerrado.

Em várias partes do país, os incêndios já chegaram a regiões remotas, de difícil acesso por terra ou rio. O transporte em aeronaves poupa esforço dos combatentes e melhora o tempo de resposta, dizem os especialistas ouvidos pela DW.

"Cada caso é avaliado com cuidado. A gente despeja água da aeronave quando as chamas estão muito altas na floresta para baixar as chamas e o brigadista conseguir chegar mais perto do fogo. Aeronave jogando água sem o brigadista estar na linha de defesa não tem eficiência. Ele precisa estar embaixo para fazer o trabalho de extinção", explica Gonçalves.

Sempre que possível, motobombas portáteis são usadas. Esse equipamento precisa ser instalado perto de um rio, de onde a água é retirada e despejada sob pressão direto nas chamas por meio de mangueiras. Mas com a seca, o acesso à água em algumas regiões está mais difícil.

"Uma brigada comum quase nunca tem helicóptero, quase nunca tem motobomba. O trabalho essencial é do brigadista, que carrega a bomba manual nas costas, o soprador e o abafador", diz Yule.

<><> Fogo antes do tempo

Da base de Corumbá, Márcio Yule diz que a situação no Pantanal de Mato Grosso do Sul está mais tranquila neste começo de outubro. A preocupação é com o fogo ardendo no estado vizinho, Mato Grosso, e nos países que estão na fronteira, Paraguai e Bolívia.

A temporada de incêndios começou mais cedo em 2024. Em junho, mês em que brigadistas são contratados para ações de prevenção, segundo o calendário oficial, o cenário já estava crítico. Não deu tempo para nada: pela primeira vez na história, os ingressantes já começaram o trabalho fazendo combate, diz Yule.

No Pantanal, há um perigo extra trazido pelo fogo de turfa – subterrâneo e de difícil combate. A estratégia para extingui-lo é construção de trincheiras até o solo mineral para que não haja passagem do combustível da área que está ardendo para a que ainda não queimou.

"Este é o fogo que mais degrada pois consome matéria orgânica do subsolo, queima raízes, plantas, microrganismos, causa grandes danos e degrada o solo", lamenta Yule, lembrando que o Pantanal enfrenta diminuição de área alagada histórica.

Um levantamento prévio ainda não concluído indica que cinco grandes incêndios no Pantanal foram os responsáveis pela maior parte destruição. Até o início de outubro, a área queimada chegou a 21 mil km², o equivalente a 14% do bioma. Em 2020, que registrou uma temporada de fogo severa, foram queimados 29 mil km².

"A responsabilização de quem iniciou o fogo é extremamente importante para combater isso. É preciso identificar e punir", defende Yule.

No fim de setembro, donos de uma fazenda localizada em Corumbá foram multados em R$ 100 milhões. Segundo o Ibama, eles são responsáveis por incêndios de grandes proporções que destruíram uma área equivalente ao dobro da cidade de São Paulo.

 

Fonte: DW Brasil

 

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