Como o
Brasil já controlou o desmatamento na Amazônia
Foi
como silenciar a motosserra: de 2004 a 2012 o Brasil conseguiu reduzir o
desmatamento na Amazônia em 83%. No entendimento de especialistas, este empenho
conjunto de governos, iniciativas privadas e sociedade civil precisa ser
retomado — e aprimorado — para que o desflorestamento siga reduzindo, depois de
nova alta nos últimos anos. E o país consiga cumprir a meta de zerar
completamente o desmatamento até 2030, conforme o presidente Luís Inácio Lula
da Silva afirmou em seu discurso recente na Assembleia Geral da Organização das
Nações Unidas (ONU).
Para
entender o caso é preciso voltar aos números. A série histórica da aferição
feita pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espacial (Inpe) no bioma indica um
cenário de hiperdesflorestamento que só foi controlado a partir de 2004. Os
piores anos registraram uma perda de floresta de 29 mil quilômetros quadrados
em 1995 e quase 28 mil em 2004 — para efeitos de comparação, isso significa uma
área maior do que o estado de Alagoas. Em outras palavras, o mundo perdeu cerca
o equivalente a mais de 11 mil campos de futebol por dia de Amazônia nesses
dois anos.
Depois
de iniciativas de aprimoramento de monitoramento, aumento de fiscalização e de
punição, entre outras, a Amazônia Legal teve o menor desmatamento registrado em
2012 — 4,5 mil quilômetros quadrados. Ficou relativamente estável, sempre
inferior a 8 mil quilômetros quadrados até 2019. Quando novamente saltou para a
faixa dos cinco dígitos.
"Isso
ocorreu por conta de três Ds: determinação, detecção e dissuasão", avalia
o jornalista Claudio Angelo, coordenador de comunicação e política climática do
Observatório do Clima e autor do recém-lançado livro O Silêncio da Motosserra:
Quando o Brasil Decidiu Salvar a Amazônia, feito em parceria com o engenheiro
florestal Tasso Azevedo. "Antes o Brasil era visto como um lugar onde era
impossível controlar de forma sistemática e permanente o desmatamento."
• Conjunção
de fatores
A
determinação veio no início do governo Lula, com Marina Silva assumindo o
Ministério do Meio Ambiente e contando, explica Angelo, "com uma ampla
coalisão de atores da sociedade civil, da ciência e da imprensa" afirmando
que era possível deter o avanço do desmate. "Querer reduzir foi
fundamental", diz ele.
"Houve
de fato uma preocupação real sobre os números e o que eles significavam para a
imagem do Brasil globalmente", analisa a bióloga Mariana Napolitano,
diretora de estratégia do World Wildlife Fund (WWF) Brasil. Para ela, a grande
diferença do plano feito no primeiro governo Lula para as iniciativas
anteriores foi que "era da responsabilidade de coordenação da Casa
Civil", o que implicava em "tocar em várias áreas do governo".
Houve
uma conjunção de interesses. Angelo lembra que além das ações de governo,
contribuíram para o movimento fatores de câmbio e flutuação de preço de
commodities agrícolas, entre outros fatores. "E Lula […] que nunca foi um
cara que se preocupou com a Amazônia, pois era um sindicalista urbano […],
estava aberto, por conta de marketing político e de imagem internacional, a dar
um banho de progressismo, civilidade […] e fazer diferente no meio
ambiente".
"Foi
um misto de visão de parte do governo e de um oportunismo político, aliado a
uma certa simpatia. Um casamento muito feliz", diz o jornalista, que
concorda que houve um "oportunismo político" da gestão petista.
Quanto
à detecção, foi iniciado em 2004 um novo sistema do Inpe, chamado Deter, capaz
de alertar em tempo real os casos de desmatamento. Isso fez com que equipes de
fiscalização passassem a poder ser enviadas para focos imediatamente, e não com
um atraso que chegava a dois anos. "É impossível ter helicópteros e aviões
para monitorar toda a Amazônia o tempo todo, então satélite que dá alerta é
fundamental", compara Angelo.
A
dissuasão veio por meio de operações como a Boi Pirata, que retirou gado de
áreas protegidas da Amazônia, e o corte de crédito para regiões embargadas.
"Isso deixou desmatadores com medo o suficiente", diz. "Quando o
setor criminoso entendeu que o governo estava determinado a fazer o que ele
dizia que ia fazer, quando viram que a impunidade havia acabado, eles se
sentiram dissuadidos de continuar cometendo
Napolitano
acrescenta a este rol ainda a moratória da soja, pacto firmado em 2006 entre
produtores agrícolas e organizações não governamentais, depois com a
participação também do governo, que "inibiu bastante a abertura de novas
áreas desmatadas da floresta".
"A
postura de combate ao desmatamento foi muito mais do que marketing. Foi
realmente uma proposta de outro modelo de desenvolvimento possível para o
Brasil, um modelo que se baseia e se beneficia da floresta em pé",
acredita a relações internacionais Gabriela Russo Lopes, pesquisadora do Centro
de América Latina da Universidade de Amsterdã, na Holanda.
Ela
lembra que houve "uma tomada de consciência" e "as ações foram
tomadas" em um contexto político doméstico e internacional que permitiu
isso. "Havia abertura à questão ambiental. O negacionismo [climático] não
estava tão forte ainda. E houve um protagonismo dentro do governo",
contextualiza, enfatizando que a ministra Marina Silva, no primeiro mandato
Lula, teve autonomia para implementar as medidas.
• Retrocesso
Sob
o governo de Jair Bolsonaro, quando houve o afrouxamento das medidas de
contenção e repressão do desmatamento e um discurso negacionista do impacto
disto no aquecimento global, a situação voltou a ficar fora de controle. Em
2021, no auge de sua gestão, foram perdidos mais de 13 mil quilômetros
quadrados de Amazônia, recorde em 15 anos.
"Obviamente
não são as mesmas taxas observadas no início dos anos 2000, mas elas passam de
5 mil para 10 mil quilômetros quadrados, em um cenário já de degradação
acumulada [do bioma], isso nos exige uma redução muito mais ambiciosa.
Precisamos de fato caminhar para o desmatamento zero", pontua Napolitano.
Ela
não acha que o sistema construído a partir de 2004 seja frágil e que isso tenha
permitido o aumento recente. "A questão é que houve a entrada de um
governo [a gestão Bolsonaro] que estimulou uma abordagem de desenvolvimento
predatório do bioma, [propiciando] o retorno de coisas como grilagem de terra,
invasões de áreas protegidas e crescimento do garimpo ilegal."
Por
isso, a bióloga afirma que o desmatamento recente "está muito mais
associado a ações ilegais, criminosas", enquanto o que ocorria antes de
2004 era consequência do aumento da fronteira agrícola ou de obras de
infraestrutura.
Os
dados voltaram a cair após a volta de Lula ao poder e o reajuste da pauta
ambiental como prioritária. Dados do mais recente período são de 9 mil
quilômetros quadrados — ainda muito, mas novamente abaixo dos cinco dígitos.
• E
agora?
Na
análise de Angelo, "ninguém esperava que a queda fosse desse tamanho"
em relativo curto período de tempo e isso indica que há uma espécie de
"memória muscular" nos mecanismos de controle. "A questão agora
é o quanto conseguimos avançar", comenta o jornalista. Para isso, ele
acredita que é preciso criar incentivos econômicos para "mudar de fato a
economia da região".
"Criar
gado e plantar soja têm de deixar de ser as opções econômicas mais atrativas
nessa região. É preciso desenvolver outras cadeias produtivas, de economia
baseada na floresta", afirma ele.
Napolitano
concorda que a situação vem melhorando, com redução significativa do
desflorestamento amazônico e expectativas de aumento na tendência de queda.
"Mas temos um bioma degradado e uma floresta que sofre bastante com a
combinação de desmatamento histórico, degradação, o fogo e os efeitos das
mudanças climáticas. Neste cenário, a Amazônia vive uma seca histórica, com
queimadas [decorrentes] de fogo iniciado por criminosos", afirma a
bióloga. "Isso vai exigir uma série de novas políticas."
Ela
ressalta que é preciso aprimorar a inteligência no monitoramento e criar
incentivos à bioeconomia, além de melhorias nos mecanismos de fortalecimento às
áreas protegidas, ao papel dos indígenas e das comunidades tradicionais.
Lopes
acrescenta uma nova dificuldade neste caldo contemporâneo: a polarização
política, com sua guerra de narrativas. De um lado, houve a ascensão de um
discurso de que "o desenvolvimento do Brasil depende do desmatamento, para
aumentar a fronteira agrícola, exportar mais e melhorar a balança
comercial". De outro, há o posicionamento científico e ambientalista de
que estamos vivendo uma catástrofe climática sem precedentes. "Ainda falta
muito para conciliar esses dois paradigmas", afirma ela. "E isso
diminui a margem de manobra [do governo]."
"O
controle do desmatamento é uma conquista da sociedade brasileira. Como o
controle da inflação: mesmo que tenhamos governos irresponsáveis, não volta
mais a hiperinflação", diz Angelo. "Acho que nunca mais teremos o
hiperdesmatamento. Pelo contrário, temos condições de zerar o desmatamento. E
há empenho presidencial para conseguirmos isso até 2030."
¨
Como o Brasil combate
incêndios florestais
O
poder e a duração das chamas desafiam o planejamento de combate aos incêndios
na Floresta
Amazônica nesta temporada. Sem previsão de chuva consistente no
horizonte, a operação contra o fogo em várias regiões, que costumava ser
encerrada no início de outubro, não tem data para acabar neste ano de seca recorde com
sinais de agravamento da crise
climática.
"Este
tem sido o pior ano para
o combate, para as operações. O comportamento do fogo está muito extremo, tem
rajadas de vento muito fortes e as chamas mudam de direção toda hora",
afirma Ana Canut, chefe de operações do Prevfogo, do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama).
Canut
falou com a DW direto da Terra Indígena do Xingu, Mato Grosso (MT). A missão
dela é estabelecer as prioridades da operação, mobilizar as equipes e manter
estratégia e tática de acordo com o planejado. No Xingu, pelo menos dois
grandes incêndios estão ativos há quase um mês e o mais importante no momento é
proteger as aldeias, já que existe o risco de elas serem atingidas.
É
praticamente impossível apagar o fogo na Amazônia com trabalho humano direto. A
alta temperatura impede que brigadistas cheguem
muito perto, e despejar água da aeronave é pouco eficiente. A copa das árvores
impede que água chegue em grande quantidade sobre as chamas de forma eficaz.
Segundo
o Ministério do Meio Ambiente, estão mobilizados 3.518 profissionais em campo
neste momento. A maior parte deles, 2.728, são do Ibama e Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), os demais integram as Forças
Armadas e Força Nacional. Dão apoio às operações 29 aeronaves.
<><>
Linha de defesa na Amazônia
Numa
floresta úmida, como é o caso da Amazônia, o fogo consome o que está mais perto
do solo. Ele é alimentado principalmente pelas folhas caídas no chão – material
chamado de serrapilheira –, e pela vegetação rasteira. As chamas dificilmente
chegam a consumir a copa das árvores por completo.
Quando
o incêndio já está instalado, a estratégia mais usada de combate é a abertura
de linhas de defesa na floresta. A técnica prevê a remoção da vegetação em
volta da área crítica para "cortar" o combustível que mantém o
incêndio.
"A
gente chega, faz um reconhecimento e analisa o comportamento do fogo. Se ele
está ‘pequeno', a gente faz o combate direto. Quando ele está muito intenso, a
gente fica mais longe e faz as linhas de defesa", detalha Macsuel Juruna,
brigadista em ação na Terra Indígena Capoto Jarina (MT), no baixo Xingu.
A
linha de defesa interrompe a ligação entre o material seco disponível – folhas,
galhos, vegetação seca – e o fogo. "Se o fogo chegar ali, ele não vai
passar. E se passar, o brigadista está ali cuidando e vai combater. Por isso é
fundamental a vigilância na linha de defesa", detalha Marivaldo Gonçalves,
combatente do Prevfogo de Rondônia com 13 anos de experiência.
Depois
que o fogo é confinado numa área, o trabalho é de controlar o perímetro do
incêndio, extinguir as chamas menores e monitorar a área até que não haja mais
possibilidade de reignição.
Quando
há tempo para planejar ações, a estratégia é construir aceiros, que é a
"limpeza" da vegetação seca que alimenta o fogo. "Ela é feita
antes do incêndio, quando se quer proteger uma área. A largura do aceiro é
feita na proporção dos incêndios na região: pode ter um dois, quatro
metros", explica Marcio Yule, que atua no Prevfogo desde 1995.
<><>
O uso da água
Aquela
cena de aviões ou helicópteros despejando água nas chamas não é comum no
Brasil. As aeronaves, um recurso caro, são mais usadas para transportar
brigadistas e equipamentos até as zonas afetadas, afirma Calut.
A
água é importante para abastecer as bombas que as equipes carregam nas costas
durante o combate. Esses equipamentos armazenam vinte litros de água e disparam
jatos manuais com o objetivo de resfriar a temperatura. Desta forma, os
brigadistas conseguem chegar mais perto do fogo com um outro equipamento-chave:
o soprador.
"O
soprador foi um equipamento revolucionário no combate. Ele tira o oxigênio do
lugar que está queimado e varre o material que está queimando para a parte já
queimada. Ele é equivalente ao trabalho de até oito pessoas com abafador",
comenta Amilton Sá, brigadista voluntário e coordenador-executivo da Rede
Contra o Fogo, que atua no Cerrado.
Em
várias partes do país, os incêndios já chegaram a regiões remotas, de difícil
acesso por terra ou rio. O transporte em aeronaves poupa esforço dos
combatentes e melhora o tempo de resposta, dizem os especialistas ouvidos pela
DW.
"Cada
caso é avaliado com cuidado. A gente despeja água da aeronave quando as chamas
estão muito altas na floresta para baixar as chamas e o brigadista conseguir
chegar mais perto do fogo. Aeronave jogando água sem o brigadista estar na
linha de defesa não tem eficiência. Ele precisa estar embaixo para fazer o
trabalho de extinção", explica Gonçalves.
Sempre
que possível, motobombas portáteis são usadas. Esse equipamento precisa ser
instalado perto de um rio, de onde a água é retirada e despejada sob pressão
direto nas chamas por meio de mangueiras. Mas com a seca, o acesso à água em
algumas regiões está mais difícil.
"Uma
brigada comum quase nunca tem helicóptero, quase nunca tem motobomba. O
trabalho essencial é do brigadista, que carrega a bomba manual nas costas, o
soprador e o abafador", diz Yule.
<><>
Fogo antes do tempo
Da
base de Corumbá, Márcio Yule diz que a situação no Pantanal de Mato Grosso do
Sul está mais tranquila neste começo de outubro. A preocupação é com o fogo
ardendo no estado vizinho, Mato Grosso, e nos países que estão na fronteira,
Paraguai e Bolívia.
A
temporada de incêndios começou mais cedo em 2024. Em junho, mês em que
brigadistas são contratados para ações de prevenção, segundo o calendário
oficial, o cenário já estava crítico. Não deu tempo para nada: pela primeira
vez na história, os ingressantes já começaram o trabalho fazendo combate, diz
Yule.
No Pantanal, há um perigo
extra trazido pelo fogo de turfa – subterrâneo e de difícil combate. A
estratégia para extingui-lo é construção de trincheiras até o solo mineral para
que não haja passagem do combustível da área que está ardendo para a que ainda
não queimou.
"Este
é o fogo que mais degrada pois consome matéria orgânica do subsolo, queima
raízes, plantas, microrganismos, causa grandes danos e degrada o solo",
lamenta Yule, lembrando que o Pantanal enfrenta diminuição de área alagada
histórica.
Um
levantamento prévio ainda não concluído indica que cinco grandes incêndios no
Pantanal foram os responsáveis pela maior parte destruição. Até o início de
outubro, a área queimada chegou a 21 mil km², o equivalente a 14% do bioma. Em
2020, que registrou uma temporada de fogo severa, foram queimados 29 mil km².
"A
responsabilização de quem iniciou o fogo é extremamente importante para
combater isso. É preciso identificar e punir", defende Yule.
No
fim de setembro, donos de uma fazenda localizada em Corumbá foram multados em
R$ 100 milhões. Segundo o Ibama, eles são responsáveis por incêndios de grandes
proporções que destruíram uma área equivalente ao dobro da cidade de São Paulo.
Fonte:
DW Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário