Proibição
de celulares nas escolas
O
que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as
tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base
científica é bastante expressiva a respeito
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Políticas
públicas sérias apoiam-se em fatos sociais, não em experiências locais, sejam
elas exitosas ou não. O êxito e o fracasso, aliás, são sempre questões
localizadas dentro de um contexto específico. Demandam reflexão e exercício de
crítica, algo que se distancia da “febre histórica” e do entusiasmo que costuma
acompanhar o fetiche da novidade.
O
conceito de “fato social”, de Émile Durkheim, diz respeito aos modos de agir,
pensar e sentir localizados fora do indivíduo, já que são impostos socialmente,
de modo coercitivo, sobre eles. Daí a ingenuidade de esperar respostas
individuais a tais problemas. Apoiar-se nelas implica não enxergar os sentidos
sociais que orientam nossas trajetórias e determinam, parafraseando a
formulação irônica de Pierre Bourdieu, nossa própria “escolha do destino”.
O
anúncio recém-publicado pelo Ministério da Educação acerca do projeto de lei
que prevê a proibição dos aparelhos celulares nas escolas é um sinal de que seu
uso, no ambiente escolar, tem se tornado mais problemático do que exitoso. É o
que apontam diversos estudos em várias regiões do planeta, que vem
regulamentando ou mesmo proibindo seu uso na escola, como França, Espanha,
Grécia, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Itália, Suíça etc.
Nestes
estudos, de modo genérico, não faltam exemplos dos efeitos perniciosos que
estes aparelhos causam no desenvolvimento intelectual de crianças e
adolescentes. Citamos alguns: o cyberbullying, a nomofobia (abreviação de no
mobile phone phobia) ou medo extremo de ficar sem acesso ao celular ou a
serviços digitais, como internet e redes sociais, o aumento da ansiedade, a
precarização do sono, a desinformação, a dessubjetivação, a desinformação, a
esmagadora predominância do uso para entretenimento, o hikomori (termo japonês
usado para descrever pessoas, geralmente jovens, que se isolam socialmente por
longos períodos muitas vezes vivendo reclusos em seus quartos ou casas e
evitando qualquer tipo de interação presencial com a sociedade), a
desintegração da memória, a fadiga cognitiva, dentre outros.
Um
belo livro, rico em fontes de estudos sérios acerca de cada um destes aspectos
é o do neurocientista francês Michel Desmurget – A fábrica de cretinos
digitais.
Mas
há outro problema, central, a meu ver, que é o mais profundo de todos eles. O
que o uso intensivo do celular tem produzido (uso intensivo, aqui, é o que
costuma-se chamar de “novo normal”) e que tem se apresentado como fato social,
é a perda da capacidade de atenção.
O
que o frenesi do uso do smartphone e ecrãs (telas) de modo geral tem produzido
como efeito colateral ao entretenimento ininterrupto, é a depauperação da
capacidade de atenção. Para isto é fundamental a compreensão do que é que
estamos perdendo em troca do magnetismo presente das telas. Segundo o filósofo
alemão Christoph Türcke, a atenção seria o ponto fulcral da constituição do
próprio fundamento da humanidade, do homo sapiens tal como o conhecemos, de um
processo de aproximadamente 300 mil anos de evolução.
Segundo
o filósofo, “nos primórdios da humanidade (a atenção) estava entre as coisas
mais difíceis. Era algo que não existia ainda em parte alguma na natureza.
Apenas coletivamente podia entrar em andamento: quando a repetição compulsiva
(termo cunhado por Freud em Além do princípio de prazer), ritualizada do horror
vivido se direcionava a algo mais elevado – a um destinatário comum. Sua
imaginação foi equivalente tanto à inauguração do espaço mental quanto à
constituição da atenção humana”.
Foi
por meio da reprodução do horror (os rituais de sacrifício) pela própria
imaginação como “mecanismo de legítima defesa” que o homem conseguiu controlar
o horror natural. Por meio da produção de uma descarga capaz de produzir um
refúgio da experiência em face do horror. Foi por meio da busca pela redenção,
do alívio contra tais experiências produzidas pela natureza: ameaças naturais,
tempestades, catástrofes, invasões de tribos inimigas, etc. que teria se dado à
hominização. “Buscava-se a redenção, encontrou-se a cultura”, escreve Christoph
Türcke. A atenção, portanto, não pode ficar restrita ao conjunto de disposições
sociais como civismo, solidariedade e empatia.
A
atenção diz respeito ao berço de toda cultura. Trata-se do ponto decisivo que
nos permitiu, após milênios de evolução, chegar até as civilizações modernas.
Interessante é a ideia que Christoph Türcke recupera de Malebranche sobre a
atenção. Segundo este, a atenção seria uma “oração natural”. Decorre da atenção
o desenvolvimento da imaginação. A imaginação nasce do tédio profundo, do ócio,
da contemplação desinteressada. É a partir desse aparente vazio, desse espaço
intersticial e amorfo que a imaginação encontra sua verdadeira vocação.
Ora,
o que ocorre na atmosfera digital é a captura total desta função. E,
finalmente, chegamos à intencionalidade política desta condição, cuja principal
característica é a desintegração da mentalidade. A alma é o último recurso
natural a ser explorado pela selvageria capitalista. Mas essa é a mesma
história desde a colonização pela Companhia de Jesus, alguém poderia observar.
Sim e não. A diferença daquele para o modelo atual de colonização neoliberal
movida pelas forças de um oligopólio avassalador e apocalíptico é que, ao invés
de operar pelo método da inculcação, o faz através de algo que aqui chamamos de
uma “descompressão cognitiva” como resultado da lógica behaviorista subjacente
aos artefatos digitais.
Observados
estes pontos, ainda que de modo grosseiramente resumidos, constatamos que as
tecnologias digitais ultrapassam de longe o significado de “ferramentas” quando
incorporadas ao ambiente escolar. Todavia, ainda que elas o sejam, e é preciso
admitir seu enorme potencial em favor do ensino nas mais variadas áreas do
conhecimento, deve-se olhar também para seus efeitos mais nocivos, como o
cyberbullying, a depauperação da ética, a concorrência desleal de atenção entre
conteúdos da escola e o maravilhoso mundo das redes sociais, etc. É preciso
mudar de perspectiva para a compreensão do que quer que seja a noção de
ferramentas.
Herbert
Marcuse, no livro Tecnologias, guerra e fascismo, reflete sobre o uso das
tecnologias, especialmente por meio da propaganda nazista e de técnicas de
instauração do medo coletivo como elementos-chave para a formação de uma “nova
mentalidade alemã”. Elas (as tecnologias) são, portanto, ferramentas. Mas são
esmagadoramente ferramentas à serviço do capital. Daí que sua incorporação à
sala de aula e à escola deve-se precaver contra a ingenuidade de tratá-las como
ferramentas neutras.
Por
último, é em razão da ambiguidade inerente às tecnologias que o projeto de lei
que está em curso tende à polêmica. O momento exige um debate de natureza
essencialmente ética. Não se trata de localizar o aspecto nuclear quanto ao uso
ou não de celulares no espaço escolar, justamente porque não há núcleo: a
ambiguidade é sua principal característica.
Neste
sentido, a mensagem histórica que o tema nos provoca a pensar diz respeito a
uma decisão digna de um dos célebres diálogos socráticos. “Deve-se ou não banir
o celular no ambiente escolar?” – é uma dessas questões implicadas no
enfrentamento, de um lado, da febre histórica que promove a disseminação
desenfreada de tecnologias digitais em tantos espaços da vida quanto for
possível e, de outro, da ideologia embutida por meio de algoritmos nas
plataformas digitais.
O
que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as
tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base
científica é bastante expressiva a respeito. O peso da decisão sugere uma
reflexão sobre qual dos pratos da balança mais tem cedido para, a partir daí, e
mesmo que para o atual momento isso signifique o afastamento total destes
aparelhos no espaço escolar, tome-se a decisão balizada pela ética e pela
ciência, e sobretudo orientada para a garantia do próprio futuro das novas
gerações.
Fonte:
Por Fernando Lionel Quiroga, em A Terra é Redonda
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