segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Os Gigantes: com apoio de prefeitos, projetos de carbono violam direitos de comunidades tradicionais

Publicado em setembro pelo De Olho nos Ruralistas, o dossiê “Os Gigantes” mostra que a corrida eleitoral nos cem maiores municípios brasileiros não é um assunto meramente local. Em meio às acomodações político-partidárias e o lobby de empresários e fazendeiros, existem interesses que ultrapassam as fronteiras nacionais e conectam os Gigantes aos principais centros do capitalismo global.

Donos de 37% do território nacional e de amplas áreas de vegetação nativa, esses municípios são o laboratório perfeito para o setor financeiro testar meios de lucrar com a preservação das florestas, das águas e do solo. Os operadores da “economia verde” precisam de grandes extensões de terra para capturar carbono da atmosfera e vender créditos de compensação para os grandes poluidores do planeta. Muitas vezes, com o incentivo do poder público e de autoridades locais.

O observatório identificou a existência de 76 projetos de créditos de carbono distribuídos em 37 dos cem municípios que compõem a lista dos Gigantes. O levantamento foi realizado a partir de dados da plataforma Verra, que opera o Verified Carbon Standard (VCS), principal programa de certificação nessa área.

Boa parte das iniciativas opera na modalidade REDD (sigla em inglês para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), que implica na remuneração de proprietários rurais ou de comunidades tradicionais que mantêm suas florestas em pé, evitando as emissões de gases de efeito estufa. Cada tonelada de dióxido de carbono (CO²) sequestrada da atmosfera gera um crédito. Por meio de empresas intermediárias, esses títulos são vendidos a governos e empresas que desejam compensar suas emissões. Na teoria, as comercializadoras garantem a boa procedência dos créditos, assegurando que estejam lastreados em áreas preservadas e que não violem direitos humanos. Na prática, é bem diferente.

Das 76 iniciativas mapeadas pelo De Olho nos Ruralistas, pelo menos 23 possuem irregularidades socioambientais relacionadas aos imóveis — no caso de projetos circunscritos a áreas privadas — ou proponentes denunciados por desmatamento e grilagem. Em três deles, há participação direta de prefeitos agindo em prol das empresas.

PREFEITURA PARAENSE É INVESTIGADA POR BENEFICIAR EMPRESÁRIO ESTADUNIDENSE

Localizado no arquipélago do Marajó, Portel (PA) tornou-se um caso emblemático. Com oito projetos ativos, é o município com maior número de contratos de créditos de carbono. Em 2023, a Defensoria Pública do Estado do Pará ajuizou cinco ações contra a prefeitura e as oito empresas responsáveis — cinco delas, ligadas ao mesmo empresário, o estadunidense Michael Greene. A suspeita de beneficiamento teve início depois que o município publicou, em 2022, uma lei autorizando o funcionamento de projetos de crédito de carbono em glebas e assentamentos estaduais, pertencentes ao governo do Pará e em posse de comunidades tradicionais.

Uma das ações ajuizadas é referente ao projeto Rio Anapu-Pacajá REDD, sobreposto aos assentamentos Deus é Fiel, Joana Peres II – Dorothy Stang, Joana Peres II – Rio Pacajá, Rio Piarim e Jacaré Puru, na zona rural de Portel. “O projeto é ilegal e se pautou em contrato de compra e venda de terras públicas, em registros imobiliários inválidos sobrepostos aos assentamentos e Cadastros Ambientais Rurais ilegais”, informa o documento.

Além das irregularidades fundiárias, essas iniciativas costumam envolver contratos pouco transparentes, com cláusulas draconianas que afetam diretamente o modo de vida das comunidades. A duração dos acordos varia entre 30 e 50 anos, período em que o uso da terra fica restrito. Em muitos casos, as condições não são devidamente expostas aos moradores, como o De Olho nos Ruralistas reportou em fevereiro, em projeto vinculado à empresa Jari Celulose: “Projeto Jari de créditos de carbono engana comunidades e invade terras públicas no Pará“.

“Os projetos de carbono trazem limitações ao uso do território”, explica Herena Corrêa de Melo, promotora de Justiça da Vara Agrária de Santarém (PA). “O que eu tenho observado nas minhas investigações é, por exemplo, a proibição de pesca, a proibição de plantio, a proibição de roçado, a proibição de utilização da terra”.

Alvo do processo, o prefeito portelense Paulo Ferreira (MDB) disputa a reeleição no domingo.

EM BORBA (AM), PREFEITO FAZENDEIRO ATUA EM PARCERIA COM EMPRESA IRLANDESA

O caso de Portel não é o único. Em 2017, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou à prefeitura de Borba (AM) a suspensão do projeto Trocano Araretama, desenvolvido pela empresa irlandesa Celestial Green Ventures (Go Balance). Entre as irregularidades investigadas pelo MPF estavam a falta de clareza do contrato e descumprimento das condicionantes, resultando em violações às propostas de compensação e redução de emissões. O projeto é fruto de uma parceria com a prefeitura e a ONG Iakira, conforme divulgado pela própria empresa.

De acordo com o MPF, o procedimento está em andamento, na fase de investigações. “Para que possam ser tomadas as medidas jurídicas cabíveis visando a proteção dos interesses dos povos e comunidades tradicionais envolvidos”, informa o ministério, por meio de nota encaminhada pela assessoria de imprensa.

O prefeito Simão Peixoto (MDB) é um apoiador do garimpo no Rio Madeira. Em novembro de 2021, após a Operação Uiara queimar 165 balsas ilegais, o político montou uma estrutura para abrigar os garimpeiros que fugiram da Polícia Federal e anunciou que tinha conseguido suspender a operação. “Quero dizer que a partir de hoje a operação foi cancelada”, afirmou. “Consegui falar com a assessoria do ministro da Justiça. Estou indo amanhã para Brasília”.

O ministro em questão era o bolsonarista Anderson Torres, que depois seria exonerado da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal por facilitar a ação dos golpistas do 8 de Janeiro. Na época, as imagens de longos cordões de balsas subindo o Rio Madeira causaram indignação internacional e levantaram preocupação quanto ao povo Mura, vítima direta da contaminação dos rios da região pela lavra garimpeira.

Pró-garimpo e lutador de MMA nas horas vagas, Simão Peixoto é também fazendeiro. Em 2018, ele desmatou uma área de 52,58 hectares de floresta nativa dentro do Projeto de Assentamento Agroextrativista Trocanã, em Borba. O prefeito confessou o crime durante audiência conciliatória realizada em setembro de 2022 e aceitou recuperar a área degradada. Pagou uma multa de R$ 26 mil.

Peixoto foi eleito para um segundo mandato em 2020, quando declarou patrimônio de R$ 2,2 milhões. Ele tenta emplacar a sucessão de seu vice, Zé Pedro Graça (PSD).

Além do município amazonense, em Corumbá (MS) a prefeitura concede incentivos fiscais e tributários para empresas que tenham participação formal em ações de proteção ao ambiente, com destaque para programas de crédito de carbono. Atualmente, há três projetos incidindo sobre as terras do município — dois deles ainda em fase de desenvolvimento e um já em operação.

O município é um dos destaques do dossiê: “Os Gigantes: em Corumbá (MS), prefeito faz lobby por hidrovia que ameaça áreas protegidas do Pantanal“.

 

•                                         Em Corumbá (MS), prefeito faz lobby por hidrovia que ameaça áreas protegidas do Pantanal

Acostumados à vida perto da água, os moradores da comunidade de Barra do São Lourenço, no município de Corumbá (MS), observam o Rio Paraguai se afastar cada vez mais das casas. “Em 2018 ele chegou até aqui na barranca e desceu”, lembra a artesã Leonida Aires de Souza, moradora da comunidade. “Daí pra cá, nada mais”.

Ali vivem 22 famílias que se dedicam à pesca e ao cultivo de alimentos. “A gente só planta o que a gente quer comer: mandioca, banana, cebolinha, salsa, coentro”, conta Leonida. “Melancia hoje a gente nem tá conseguindo mais produzir, com a seca”.

De Barra do São Lourenço até a cidade de Corumbá são 205 quilômetros rio acima. O deslocamento pode levar de sete horas a três dias, a depender do tipo de embarcação. O caminho é feito pelos rios, principal via de deslocamento dos moradores da comunidade. Mas, com a seca, as viagens de barco ficaram mais arriscadas. Em vários trechos, a navegação se tornou inviável devido ao nível do Rio Paraguai — o menor em 51 anos.

A seca histórica não impediu que a qualificação do tramo norte da Hidrovia Paraguai/Paraná entrasse no Novo PAC. O projeto prevê a dragagem de 680 quilômetros no trecho que vai de Corumbá até Cáceres, no Mato Grosso, permitindo a navegação de navios de calado mais fundo, como já acontece no tramo sul da hidrovia, que desce até a foz do Rio Apa, suportando comboios de transporte de grãos e minérios.

As obras começaram neste ano: até agosto, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) informou que foram removidos 110 mil metros cúbicos de sedimentos em sete dos 25 pontos críticos identificados. Nem as queimadas que assolam a região foram capazes de paralisar as máquinas.

O projeto impacta um trecho estratégico para conservação do Pantanal por ser um dos mais preservados do bioma. No caminho da hidrovia estão três unidades de conservação: o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, o Parque Estadual do Guirá e a Estação Ecológica de Taiamã, que possui a maior incidência de onças-pintadas do continente. Além delas, as obras afetam diretamente a Terra Indígena Guató.

O prefeito de Corumbá, Marcelo Iunes, é um dos principais defensores do projeto. “A Hidrovia do Paraguai não é apenas uma rota fluvial, é uma artéria vital para o desenvolvimento econômico, social e ambiental da nossa região”, afirmou durante encontro do Circuito Nacional dos Diálogos Hidroviáveis, em novembro de 2023. O evento foi sediado pelo Sindicato Rural de Corumbá.

O município é destaque no dossiê “Os Gigantes”, publicado em setembro pelo De Olho nos Ruralistas. Durante quatro meses, nosso núcleo de pesquisa analisou as políticas ambientais e climáticas nas prefeituras dos cem maiores municípios brasileiros. Juntos, eles compõem 37% do território nacional.

Na 11ª posição entre os Gigantes — o tamanho da Letônia — Corumbá é líder em queimadas em 2024. De janeiro a agosto, o município perdeu 617 mil hectares de vegetação pantaneira, segundo dados do MapBiomas. A área é quatro vezes maior que São Paulo. Maior que todo o Distrito Federal.

LISTADA NO NOVO PAC, FERROVIA CAUSOU INCÊNDIO EM 17 MIL HECTARES

O prefeito Marcelo Iunes é um aliado próximo do governador Eduardo Riedel (PSDB), de quem era colega de partido até poucos meses atrás. Ele se licenciou em abril para apoiar a eleição de seu sucessor, o secretário de governo Luiz Antônio Pardal, do PP, que aparece em segundo lugar nas pesquisas. Quem lidera é o candidato da oposição, Dr. Gabriel (PSB), que tem como vice a tucana Bia Cavassa, ex-deputada federal e membro importante da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) durante seu período no Congresso.

Nos últimos meses de seu mandato, Iunes tenta desbloquear outro projeto listado no Novo PAC. Trata-se da relicitação e requalificação da Ferrovia Malha Oeste, que conecta o Mato Grosso do Sul ao Porto de Santos (SP). “Precisamos, o mais rápido possível, colocar em prática esse processo para que Corumbá deixe de ser o início ou o fim da linha ferroviária para tornar-se o meio da rota bioceânica”, defendeu o prefeito durante uma audiência pública realizada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em Campo Grande.

A rota bioceânica à qual Iunes se refere é o Corredor de Capricórnio, um eixo rodoviário que liga Antofagasta, no Chile, até Paranaguá, no litoral brasileiro. No caminho estão regiões produtoras de grãos e carne bovina, como a província de Jujuy, no norte da Argentina, o Chaco paraguaio e o Mato Grosso do Sul. Uma das principais obras do corredor é uma ponte sobre o Rio Paraguai, ligando Porto Murtinho a Carmelo Peralta. O projeto está em construção e deve ser entregue em novembro de 2025.

Apesar do foco no modal rodoviário, existem estudos para criar uma segunda opção, conectando as ferrovias da Empresa Ferroviaria Oriental, na Bolívia, com a Malha Oeste, administrada pela Rumo Logística. A ligação se daria justamente na fronteira entre Corumbá e Puerto Quijarro, cujos centros urbanos estão separados por menos de 10 quilômetros.

Em agosto, a Rumo Logística foi multada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em R$ 57 milhões após uma faísca — gerada durante a manutenção dos trilhos — iniciar um incêndio florestal que consumiu 17,8 mil hectares do Pantanal. A queimada ocorreu precisamente em Corumbá. Segundo o órgão ambiental, a empresa descumpriu condicionantes do licenciamento ambiental e não possuía equipamento adequado para conter as chamas.

Principal operadora de modal ferroviário no Brasil, a Rumo pertence ao grupo sucroenergético Cosan, do bilionário Rubens Ometto — o maior doador individual de campanhas políticas nas últimas três eleições. Até julho, a operadora ferroviária era dirigida pelo executivo João Alberto Fernandez de Abreu, que deixou a Rumo para assumir o cargo de CEO da Suzano, dona de um megaprojeto de celulose no estado e uma das principais lobistas pela relicitação da Malha Oeste: “Os Gigantes: em Ribas do Rio Pardo (MS), Suzano participa até do ordenamento territorial“.

O trecho sul-mato-grossense da ferrovia está sob contrato de operação com a Rumo até 2025, mas a empresa solicitou à ANTT a devolução da concessão.

 

Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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