Os
Gigantes: com apoio de prefeitos, projetos de carbono violam direitos de
comunidades tradicionais
Publicado
em setembro pelo De Olho nos Ruralistas, o dossiê “Os Gigantes” mostra que a
corrida eleitoral nos cem maiores municípios brasileiros não é um assunto
meramente local. Em meio às acomodações político-partidárias e o lobby de
empresários e fazendeiros, existem interesses que ultrapassam as fronteiras
nacionais e conectam os Gigantes aos principais centros do capitalismo global.
Donos
de 37% do território nacional e de amplas áreas de vegetação nativa, esses
municípios são o laboratório perfeito para o setor financeiro testar meios de
lucrar com a preservação das florestas, das águas e do solo. Os operadores da
“economia verde” precisam de grandes extensões de terra para capturar carbono
da atmosfera e vender créditos de compensação para os grandes poluidores do
planeta. Muitas vezes, com o incentivo do poder público e de autoridades
locais.
O
observatório identificou a existência de 76 projetos de créditos de carbono
distribuídos em 37 dos cem municípios que compõem a lista dos Gigantes. O
levantamento foi realizado a partir de dados da plataforma Verra, que opera o
Verified Carbon Standard (VCS), principal programa de certificação nessa área.
Boa
parte das iniciativas opera na modalidade REDD (sigla em inglês para Redução de
Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), que implica na remuneração
de proprietários rurais ou de comunidades tradicionais que mantêm suas
florestas em pé, evitando as emissões de gases de efeito estufa. Cada tonelada
de dióxido de carbono (CO²) sequestrada da atmosfera gera um crédito. Por meio
de empresas intermediárias, esses títulos são vendidos a governos e empresas
que desejam compensar suas emissões. Na teoria, as comercializadoras garantem a
boa procedência dos créditos, assegurando que estejam lastreados em áreas
preservadas e que não violem direitos humanos. Na prática, é bem diferente.
Das
76 iniciativas mapeadas pelo De Olho nos Ruralistas, pelo menos 23 possuem
irregularidades socioambientais relacionadas aos imóveis — no caso de projetos
circunscritos a áreas privadas — ou proponentes denunciados por desmatamento e
grilagem. Em três deles, há participação direta de prefeitos agindo em prol das
empresas.
PREFEITURA
PARAENSE É INVESTIGADA POR BENEFICIAR EMPRESÁRIO ESTADUNIDENSE
Localizado
no arquipélago do Marajó, Portel (PA) tornou-se um caso emblemático. Com oito
projetos ativos, é o município com maior número de contratos de créditos de
carbono. Em 2023, a Defensoria Pública do Estado do Pará ajuizou cinco ações
contra a prefeitura e as oito empresas responsáveis — cinco delas, ligadas ao
mesmo empresário, o estadunidense Michael Greene. A suspeita de beneficiamento
teve início depois que o município publicou, em 2022, uma lei autorizando o
funcionamento de projetos de crédito de carbono em glebas e assentamentos
estaduais, pertencentes ao governo do Pará e em posse de comunidades
tradicionais.
Uma
das ações ajuizadas é referente ao projeto Rio Anapu-Pacajá REDD, sobreposto
aos assentamentos Deus é Fiel, Joana Peres II – Dorothy Stang, Joana Peres II –
Rio Pacajá, Rio Piarim e Jacaré Puru, na zona rural de Portel. “O projeto é
ilegal e se pautou em contrato de compra e venda de terras públicas, em
registros imobiliários inválidos sobrepostos aos assentamentos e Cadastros
Ambientais Rurais ilegais”, informa o documento.
Além
das irregularidades fundiárias, essas iniciativas costumam envolver contratos
pouco transparentes, com cláusulas draconianas que afetam diretamente o modo de
vida das comunidades. A duração dos acordos varia entre 30 e 50 anos, período
em que o uso da terra fica restrito. Em muitos casos, as condições não são
devidamente expostas aos moradores, como o De Olho nos Ruralistas reportou em
fevereiro, em projeto vinculado à empresa Jari Celulose: “Projeto Jari de
créditos de carbono engana comunidades e invade terras públicas no Pará“.
“Os
projetos de carbono trazem limitações ao uso do território”, explica Herena
Corrêa de Melo, promotora de Justiça da Vara Agrária de Santarém (PA). “O que
eu tenho observado nas minhas investigações é, por exemplo, a proibição de
pesca, a proibição de plantio, a proibição de roçado, a proibição de utilização
da terra”.
Alvo
do processo, o prefeito portelense Paulo Ferreira (MDB) disputa a reeleição no
domingo.
EM
BORBA (AM), PREFEITO FAZENDEIRO ATUA EM PARCERIA COM EMPRESA IRLANDESA
O
caso de Portel não é o único. Em 2017, o Ministério Público Federal (MPF)
recomendou à prefeitura de Borba (AM) a suspensão do projeto Trocano Araretama,
desenvolvido pela empresa irlandesa Celestial Green Ventures (Go Balance).
Entre as irregularidades investigadas pelo MPF estavam a falta de clareza do
contrato e descumprimento das condicionantes, resultando em violações às
propostas de compensação e redução de emissões. O projeto é fruto de uma
parceria com a prefeitura e a ONG Iakira, conforme divulgado pela própria
empresa.
De
acordo com o MPF, o procedimento está em andamento, na fase de investigações.
“Para que possam ser tomadas as medidas jurídicas cabíveis visando a proteção
dos interesses dos povos e comunidades tradicionais envolvidos”, informa o
ministério, por meio de nota encaminhada pela assessoria de imprensa.
O
prefeito Simão Peixoto (MDB) é um apoiador do garimpo no Rio Madeira. Em
novembro de 2021, após a Operação Uiara queimar 165 balsas ilegais, o político
montou uma estrutura para abrigar os garimpeiros que fugiram da Polícia Federal
e anunciou que tinha conseguido suspender a operação. “Quero dizer que a partir
de hoje a operação foi cancelada”, afirmou. “Consegui falar com a assessoria do
ministro da Justiça. Estou indo amanhã para Brasília”.
O
ministro em questão era o bolsonarista Anderson Torres, que depois seria
exonerado da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal por facilitar
a ação dos golpistas do 8 de Janeiro. Na época, as imagens de longos cordões de
balsas subindo o Rio Madeira causaram indignação internacional e levantaram
preocupação quanto ao povo Mura, vítima direta da contaminação dos rios da
região pela lavra garimpeira.
Pró-garimpo
e lutador de MMA nas horas vagas, Simão Peixoto é também fazendeiro. Em 2018,
ele desmatou uma área de 52,58 hectares de floresta nativa dentro do Projeto de
Assentamento Agroextrativista Trocanã, em Borba. O prefeito confessou o crime
durante audiência conciliatória realizada em setembro de 2022 e aceitou
recuperar a área degradada. Pagou uma multa de R$ 26 mil.
Peixoto
foi eleito para um segundo mandato em 2020, quando declarou patrimônio de R$
2,2 milhões. Ele tenta emplacar a sucessão de seu vice, Zé Pedro Graça (PSD).
Além
do município amazonense, em Corumbá (MS) a prefeitura concede incentivos
fiscais e tributários para empresas que tenham participação formal em ações de
proteção ao ambiente, com destaque para programas de crédito de carbono.
Atualmente, há três projetos incidindo sobre as terras do município — dois
deles ainda em fase de desenvolvimento e um já em operação.
O
município é um dos destaques do dossiê: “Os Gigantes: em Corumbá (MS), prefeito
faz lobby por hidrovia que ameaça áreas protegidas do Pantanal“.
• Em
Corumbá (MS), prefeito faz lobby por hidrovia que ameaça áreas protegidas do
Pantanal
Acostumados
à vida perto da água, os moradores da comunidade de Barra do São Lourenço, no
município de Corumbá (MS), observam o Rio Paraguai se afastar cada vez mais das
casas. “Em 2018 ele chegou até aqui na barranca e desceu”, lembra a artesã
Leonida Aires de Souza, moradora da comunidade. “Daí pra cá, nada mais”.
Ali
vivem 22 famílias que se dedicam à pesca e ao cultivo de alimentos. “A gente só
planta o que a gente quer comer: mandioca, banana, cebolinha, salsa, coentro”,
conta Leonida. “Melancia hoje a gente nem tá conseguindo mais produzir, com a
seca”.
De
Barra do São Lourenço até a cidade de Corumbá são 205 quilômetros rio acima. O
deslocamento pode levar de sete horas a três dias, a depender do tipo de
embarcação. O caminho é feito pelos rios, principal via de deslocamento dos
moradores da comunidade. Mas, com a seca, as viagens de barco ficaram mais
arriscadas. Em vários trechos, a navegação se tornou inviável devido ao nível
do Rio Paraguai — o menor em 51 anos.
A
seca histórica não impediu que a qualificação do tramo norte da Hidrovia
Paraguai/Paraná entrasse no Novo PAC. O projeto prevê a dragagem de 680
quilômetros no trecho que vai de Corumbá até Cáceres, no Mato Grosso,
permitindo a navegação de navios de calado mais fundo, como já acontece no
tramo sul da hidrovia, que desce até a foz do Rio Apa, suportando comboios de
transporte de grãos e minérios.
As
obras começaram neste ano: até agosto, o Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (Dnit) informou que foram removidos 110 mil
metros cúbicos de sedimentos em sete dos 25 pontos críticos identificados. Nem
as queimadas que assolam a região foram capazes de paralisar as máquinas.
O
projeto impacta um trecho estratégico para conservação do Pantanal por ser um
dos mais preservados do bioma. No caminho da hidrovia estão três unidades de
conservação: o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, o Parque Estadual do
Guirá e a Estação Ecológica de Taiamã, que possui a maior incidência de
onças-pintadas do continente. Além delas, as obras afetam diretamente a Terra
Indígena Guató.
O
prefeito de Corumbá, Marcelo Iunes, é um dos principais defensores do projeto.
“A Hidrovia do Paraguai não é apenas uma rota fluvial, é uma artéria vital para
o desenvolvimento econômico, social e ambiental da nossa região”, afirmou
durante encontro do Circuito Nacional dos Diálogos Hidroviáveis, em novembro de
2023. O evento foi sediado pelo Sindicato Rural de Corumbá.
O
município é destaque no dossiê “Os Gigantes”, publicado em setembro pelo De
Olho nos Ruralistas. Durante quatro meses, nosso núcleo de pesquisa analisou as
políticas ambientais e climáticas nas prefeituras dos cem maiores municípios
brasileiros. Juntos, eles compõem 37% do território nacional.
Na
11ª posição entre os Gigantes — o tamanho da Letônia — Corumbá é líder em
queimadas em 2024. De janeiro a agosto, o município perdeu 617 mil hectares de
vegetação pantaneira, segundo dados do MapBiomas. A área é quatro vezes maior
que São Paulo. Maior que todo o Distrito Federal.
LISTADA
NO NOVO PAC, FERROVIA CAUSOU INCÊNDIO EM 17 MIL HECTARES
O
prefeito Marcelo Iunes é um aliado próximo do governador Eduardo Riedel (PSDB),
de quem era colega de partido até poucos meses atrás. Ele se licenciou em abril
para apoiar a eleição de seu sucessor, o secretário de governo Luiz Antônio
Pardal, do PP, que aparece em segundo lugar nas pesquisas. Quem lidera é o
candidato da oposição, Dr. Gabriel (PSB), que tem como vice a tucana Bia
Cavassa, ex-deputada federal e membro importante da Frente Parlamentar da
Agropecuária (FPA) durante seu período no Congresso.
Nos
últimos meses de seu mandato, Iunes tenta desbloquear outro projeto listado no
Novo PAC. Trata-se da relicitação e requalificação da Ferrovia Malha Oeste, que
conecta o Mato Grosso do Sul ao Porto de Santos (SP). “Precisamos, o mais
rápido possível, colocar em prática esse processo para que Corumbá deixe de ser
o início ou o fim da linha ferroviária para tornar-se o meio da rota
bioceânica”, defendeu o prefeito durante uma audiência pública realizada pela
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em Campo Grande.
A
rota bioceânica à qual Iunes se refere é o Corredor de Capricórnio, um eixo
rodoviário que liga Antofagasta, no Chile, até Paranaguá, no litoral
brasileiro. No caminho estão regiões produtoras de grãos e carne bovina, como a
província de Jujuy, no norte da Argentina, o Chaco paraguaio e o Mato Grosso do
Sul. Uma das principais obras do corredor é uma ponte sobre o Rio Paraguai,
ligando Porto Murtinho a Carmelo Peralta. O projeto está em construção e deve
ser entregue em novembro de 2025.
Apesar
do foco no modal rodoviário, existem estudos para criar uma segunda opção,
conectando as ferrovias da Empresa Ferroviaria Oriental, na Bolívia, com a
Malha Oeste, administrada pela Rumo Logística. A ligação se daria justamente na
fronteira entre Corumbá e Puerto Quijarro, cujos centros urbanos estão
separados por menos de 10 quilômetros.
Em
agosto, a Rumo Logística foi multada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em R$ 57 milhões após uma faísca —
gerada durante a manutenção dos trilhos — iniciar um incêndio florestal que
consumiu 17,8 mil hectares do Pantanal. A queimada ocorreu precisamente em
Corumbá. Segundo o órgão ambiental, a empresa descumpriu condicionantes do
licenciamento ambiental e não possuía equipamento adequado para conter as
chamas.
Principal
operadora de modal ferroviário no Brasil, a Rumo pertence ao grupo
sucroenergético Cosan, do bilionário Rubens Ometto — o maior doador individual
de campanhas políticas nas últimas três eleições. Até julho, a operadora
ferroviária era dirigida pelo executivo João Alberto Fernandez de Abreu, que
deixou a Rumo para assumir o cargo de CEO da Suzano, dona de um megaprojeto de
celulose no estado e uma das principais lobistas pela relicitação da Malha
Oeste: “Os Gigantes: em Ribas do Rio Pardo (MS), Suzano participa até do
ordenamento territorial“.
O
trecho sul-mato-grossense da ferrovia está sob contrato de operação com a Rumo
até 2025, mas a empresa solicitou à ANTT a devolução da concessão.
Fonte:
De Olho nos Ruralistas
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