terça-feira, 1 de outubro de 2024

Eleição no Brasil e EUA na semana decisiva

Neste final de semana, o Brasil realiza eleições em seus 5.570 municípios. O maior deles, a capital paulista, com 11 milhões 450 mil e 999 habitantes, tem o terceiro maior orçamento do país. Só perde para a União e para o Estado de São Paulo. Por sinal, que o estado mais rico do Brasil tem entre seus 645 municípios o 2º com a menor população: Borá, com 907 habitantes - informa o Censo do IBGE - que também vai fazer eleição para prefeito e vereador. São menos eleitores do que em algumas reuniões de condomínio da maior cidade da América do Sul. O menor município brasileiro é o mineiro Serra da Saudade, com 939 habitantes, menos que o total de 853 municípios de Minas Gerais. Em 3º lugar no pódio está o goiano Anhanguera, com 904 habitantes.

Duvido que nestes recantos bucólicos a segurança seja a primeira das preocupações do eleitor, como parece indicar uma pesquisa feita nos grandes centros urbanos, à qual faço restrições. Certamente os efeitos da estiagem, que facilita a propagação de incêndios, criminosos ou espontâneos, afligem mais os moradores, porque está afetando o abastecimento de água, a produção de alimentos nos quintais e começa a pesar na conta de luz, que simplesmente vai quadruplicar em relação à bandeira verde (normal que vigorou até junho) a partir de terça-feira, 1º de outubro, quando entra em vigor em todo o país a bandeira vermelha 2. O impacto é progressivo para quem consome acima de 100 quilowatts-hora. Em condições normais, com a bandeira verde, para cada 100 KWh extra consumido, a tarifa é de R$ 1,85 KWh; pois na bandeira vermelha 2 salta para R$ 7,87 por KWh, multiplicado por 4,25!

E, como o calor está só começando (teremos calor da primavera e do verão até março), os consumidores terão de controlar o uso do ar-condicionado e dos aparelhos elétricos pelos próximos seis meses, sob pena de estouro no orçamento. Como os aparelhos eletroeletrônicos viraram itens comuns nos lares da classe média, é preciso reunir a família para um mutirão de economia. Se vai usar o ar, que tal cortar o chuveiro elétrico e reduzir o uso do ferro elétrico e do secador de cabelo, os três aparelhos que mais consomem depois do ar-condicionado? Também só usar a máquina de lavar a plena carga, para poupar água e energia. Outro tema para discussão doméstica são os jogos de azar das “bets”, que bombardeiam os intervalos comerciais da televisão e sobretudo os eventos esportivos. A força da propaganda é tal que não há uma palavra de crítica dos comentaristas esportivos. E os estádios exibem à beirada dos campos, sucessivos reclames de novos sites de apostas, de resto, exibidos nas camisas dos dois times que se enfrentam no gramado. Só o juiz não tem.

·        A praga das apostas

Levantamento do Banco Central mostrou que as “bets” atraíram, em agosto, mais de R$ 20 bilhões em apostas. Nos últimos 12 meses, cerca de 24 milhões de pessoas jogaram (a população do país é de 212 milhões e a força de trabalho do país era de 110 milhões de pessoas em agosto). As apostas estão consumindo quase 19% da massa salarial do país. O pior é que a disseminação do PIX, muito bem explorada pelos sites de jogos de azar, está conseguindo seduzir os beneficiários do Bolsa Família. Desde a criação do Comunidade Solidária, por D. Ruth Cardoso, nos governos de FHC, a preocupação para que os chefes de famílias com baixa renda, beneficiados pelo programa rebatizado de Bolsa Família no primeiro governo Lula, que reuniu vários programas assistenciais no BF, não gastassem o auxílio em bebida e farras, levou à escolha pelos CRAS (Centros municipais de Referência de Assistência Social) para a entrega da responsabilidade de movimentação dos recursos à mulher, com mais responsabilidade perante os filhos. As “bets” estão conseguindo driblar os cuidados dos CRAS e já desviam, segundo o levantamento do Banco Central, em média, R$ 100 de apostas dos beneficiários do Bolsa Família via PIX. Nada menos de R$ 3 bilhões do BF!

Os jogos de azar eletrônicos foram autorizados a operar no Brasil, após forte “lobby” no Congresso, no fim de 2018, no governo de Michel Temer. Mas, durante os quatro anos do governo (?) Bolsonaro, o liberalismo reinante deixou a questão sem qualquer regulamentação. Só agora, em 1º de outubro, junto com a nova bandeira vermelha, entra em vigor a primeira etapa da regulamentação que regularizará o mercado em janeiro de 2025. A partir de terça-feira, as “bets” que pagarem R$ 30 milhões cada e estiverem com a documentação em dia poderão operar em 2025. Como mostrou o escândalo da prisão da “influencer” Deolane Bezerra, divulgadora e sócia do site “Esporte da Sorte”, controlado por conhecido bicheiro que atua em Recife e na Paraíba, há gigantesca movimentação de recursos neste submundo. E o Banco Central, que controlava o COAF (Conselho de Controle das Atividades Financeiras), até o Ministério da Fazenda, na gestão do ministro Fernando Haddad, pôr ordem na jogatina que sonega recursos das famílias, do Erário e provoca evasão de divisas (a maior parte dos “bets” está localizada em paraísos fiscais), sabe claramente que as casas de apostas são fontes de evasão fiscal e de divisas.

Durante cinco anos atuaram livremente. Quando Haddad resolveu disciplinar o “saloon” de apostas e fuga de divisas que afeta o Balanço de Pagamentos, foi alvo de “memes” jocosos nos letreiros da Times Square, em Nova York, chamando-o de Fernando Taxadd. Não seria surpresa se fosse um conluio de grandes operadores do mercado financeiro – incomodados com a tributação sobre fundos de investimento exclusivos de bilionários e de fundos de empresas “off-shores” localizadas em paraísos fiscais - e donos de “bets”. No submundo do crime, da sonegação fiscal e da evasão de divisas, os personagens acabam sendo velhos conhecidos.

Por isso, a sociedade brasileira e os outros 10 ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal ficaram incomodados quando se soube que o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro ao STF em 2020, estava alegremente a bordo de um luxuoso iate em ilha grega, confraternizando com o cantor sertanejo Gusttavo Lima em seu aniversário. Kassio explicou ser amigo do cantor, e que, como estava em Roma, participando de seminário sobre legislação, deu um pulo à Grécia para abraçar o aniversariante em 2 de setembro. Mas, dois dias depois, em 4 de setembro, a Polícia Federal deflagrou, em Pernambuco e Paraíba, a terceira fase da operação “Integration”, contra o crime organizado no site de apostas “Esporte da Sorte”, controlado pelo bicheiro Darwin Henrique da Silva Filho. A plataforma de apostas online que patrocina times de futebol como o Corinthians, Athletico-PR, Bahia, Grêmio, Palmeiras, Ceará, Náutico e Santa Cruz, que se estendeu aos estados de São Paulo, Paraná e Goiás. Na operação, além de Deolane, foram expedidos mandados de prisão contra Nivaldo Batista Lima, vulgo Gusttavo Lima, por suposto favorecimento na fuga em seu avião, para o exterior, de dois dos 20 alvos da PF, justamente na viagem à Grécia. Isso deixou novamente o ministro Kassio Nunes Marques em posição desconfortável. A amizade com Gusttavo Lima pesou a favor da liberação, por desembargador do TJ-Pernambuco, para Deolane, e na anulação do alerta vermelho da Interpol para a captura de Nivaldo Batista Lima, que embarcara para sua casa em Miami poucas horas antes do mandado de prisão contra si. Há ministros do STF incomodados com as relações perigosas do colega.

·        Segurança é fruto do noticiário B.O.

O tema segurança foi apontado como a principal preocupação das grandes capitais e cidades de porte médio nas eleições municipais. Trata-se de um desvio de finalidade. A responsabilidade da segurança pública – tanto pela polícia civil, quanto pela militar e até pela defesa civil (bombeiros) - é dos governos estaduais. As prefeituras que dispõem de guardas municipais são as das grandes capitais, mas atuam sem poder de polícia, só para a manutenção da ordem pública (combate ao comércio clandestino de camelôs e arruaças por moradores de rua). Tenho certeza de que a inflação, saúde e saneamento básico (metade dos municípios não tem redes de esgotos), transportes e educação estão à frente ou ao lado da segurança, nas aflições das capitais.

Com meus 52 anos de jornalismo, com atuação em jornais (JB e Globo) revistas (Veja), Rádio (JB e Roquete Pinto), TV (Globonews e TVE), além de publicações avulsas, noto certa acomodação no jornalismo em tempos de redes sociais. A pressa pela notícia online leva à valorização do jornalismo B.O. (Boletim de Ocorrência), no jargão da cobertura de Polícia, na reportagem geral, ou a manchetes apelativas. No tempo em que os jornais tinham peso, e o noticiário matinal das rádios era basicamente a leitura das principais manchetes, havia distribuição entre assuntos de saúde, educação, transporte, saneamento, economia, esporte e cultura. Hoje, a pressa pelos “likes” dá preferência à escuta da polícia nas redações de rádios e no online. Que me interessa, no carro, no Rio, em São Paulo ou Belo Horizonte, ouvindo a CBN ou a Band, saber que uma pessoa foi morta a tiros em Manaus ou Teresina? Se não foi alguém de projeção nacional, não é notícia que justifique divulgação. Mas é fácil de apurar e pôr no ar. Creio que o jornalismo B.O. ganhou força com a “espetacularização da notícia”, e um dos pioneiros foi José Luiz Datena.

Repórter esportivo de rádio e TV Bandeirantes, Datena ancorou o noticiário da Band na maior cidade do país. Para concorrer com o poderio dos noticiários da SP-TV da Globo, que podiam elaborar matérias sobre saúde, educação, cracolândia e problemas reais do transporte, enviadas à redação por veículos dotados de aparelhos para pré-edição, Datena foi esperto. Fica no estúdio e, com auxílio de um helicóptero que sobrevoa a grande São Paulo, põe no ar imagens de grandes engarrafamentos, um incêndio de médio ou grande porte ou uma perseguição ou blitz policiais. Esse jornalismo-espetáculo virou praxe nas emissoras, com o âncora de pé distribuindo bordoadas a torto e a direito, substituiu o bordão “é uma vergonha” de Boris Casoy, sentado atrás de uma mesa. Mas ambos costumam bater em “cachorro morto”, não atacam as questões centrais. No Rio de Janeiro, foi pioneiro nesse tipo o programa “O Povo na TV”, de Wilton Franco, que passou por várias emissoras e elegeu alguns figurantes como deputados. Cito Roberto Jefferson, que era o “advogado do povo” e virou deputado federal, atualmente preso por atentar contra a Polícia Federal, e Wagner Montes, deputado estadual, já falecido, que fazia a apologia da polícia que parte para cima, “mata e arregaça”. Datena ameaçou concorrer a vários cargos e agora disputa a prefeitura de São Paulo. Mas percebeu que ficou ultrapassado pela combinação das “fake News” com a IA das redes sociais, que o deixou em 4º lugar até aqui nas pesquisas locais.

·        Pleito desenha nova política?

O que se pode esperar da politização da segurança na campanha municipal é uma depuração dos partidos políticos, com risco de aumento futuro da “bancada da bala”. A tendência de união de blocos e federações tende a crescer. É nítido o aumento da influência do PSD de Gilberto Kassab, que ocupou o espaço do antigo PSDB em São Paulo e disputa a hegemonia do centro – ou do muro - com o velho MDB para fazer aliança com o partido dominante. O PL de Waldemar Costa Neto e Jair Bolsonaro, o PT, o PP e o União Brasil também esperam controlar mais cidades importantes e reforçar o cacife para as eleições de 2026. Este, a meu ver, o principal recado das eleições de domingo, que reservará novas emoções no 2º turno para poucas capitais e grandes cidades, onde a fatura acaba dia 6.

·        “Dura lex” com o X

Sabe-se lá instigado por quem, embora o “modus operandi” seja conhecido, o bilionário Elon Musk, dono da Tesla, da Starlink e da Space X, acreditou que, ao comprar o antigo Twitter e transformá-lo em X, teria o comando virtual do pensamento radical de direita do mundo – da internet. Alto lá, disseram a Austrália, o Reino Unido, Turquia, Índia e democracias europeias. As leis locais têm de ser respeitadas. No Brasil, onde o X se transformou na rede preferida dos extremistas de direita para propagar “fake news” e atentados ao Estado Democrático de Direito, o X bateu de frente com o “xerife” das “fake News”, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. No choque dos X, as atividades da rede de Elon Musk foram suspensas em 30 de agosto, depois que a rede social não cumpriu as exigências do ministro do STF, de apresentar um representante legal no Brasil. Em lance típico de blefador, Musk anunciou que sairia do Brasil (o segundo mercado do X) por não concordar com as restrições à "liberdade de expressão), o que gerou muitas comemorações dos bolsonaristas no 7 de setembro na avenida Paulista. Só que Musk, quase trilionário, não rasga dinheiro.

Antes que um foguete da Space X concluísse mais um passeio no espaço – cobrando regiamente de bilionários –, baixou a bola, miou como um gatinho e indicou a antiga advogada que se recusara a cumprir ordens do STF, Rachel de Oliveira Villa Nova Conceição, como sua representante no país. Com a justificativa de que pagara todas as multas aplicadas pelo ministro Moraes, o X solicitou, dia 26 de setembro, a volta das operações do X – quem sabe ainda a tempo de influir nas eleições municipais. Não colou. Moraes, junto com os colegas do Supremo, considerou uma afronta à Justiça e à soberania do Brasil o X driblar as proibições da Anatel (em cumprimento de determinações do STF), no retorno clandestino das operações nos dias 19 e 23 de setembro.

O Brasil não é “casa da mãe Joana”. Sexta-feira, 27 de setembro, o ministro Moraes condicionou o desbloqueio do X ao pagamento imediato de R$ 10 milhões. É o valor da multa pelos dias em que a rede de Musk voltou a operar, burlando a ordem de bloqueio. Segundo o ministro, ainda há pendências. Para ter direito ao desbloqueio, a representante legal do X, a advogada Rachel Villa Nova, deve fazer o pagamento imediato de R$ 300 mil em multas por descumprimento de outras decisões judiciais.

·        Até o NYT condenou Musk

Com o título de “5 dias com Elon Musk no X: Deepfakes, falsidades e muitos memes”, o jornal “The New York Times” abordou na edição de sexta-feira, 27 de setembro, um balanço das postagens no X, e concluiu: “Quase um terço das 171 postagens da semana passada do proprietário do X eram falsas, enganosas ou não continham contexto vital.” Ou seja, Moraes tem razão. Os fãs bolsonaristas de Musk podem recorrer ao “jus sperniandi”. O direito de espernear, o Supremo admite. Entretanto, a lei é dura, mas é a lei.

·        Surpresas nos EUA?

A cinco semanas da eleição dos Estados Unidos, em 5 de novembro, uma terça-feira (lá o voto não é obrigatório e a votação pode ser antecipada pelo correio), vale a pena acompanhar o que diz o boletim de Nate Silver, um dos maiores especialistas em pesquisas eleitorais da terra de Tio Sam. Na sexta-feira, 27 de setembro, Nate Silver, compilando várias pesquisas, apontava a candidata Democrata Kamala Harris três pontos à frente do Republicano Donald Trump: 49,1% X 46,1%. Mas a eleição nos EUA não se decide pelo voto direto e sim pelos votos majoritários nos Colégios Eleitorais de cada estado americano. A soma dos votos no Colégio é de 538 representantes.

Com exceção de dois pequenos estados (com três e quatro votos, que se dividem 75% para o vencedor e 25% para o perdedor), a regra é: o vencedor do voto direto leva todos os votos do Colégio Eleitoral. Ganha, portanto quem fizer 270 votos ou mais (metade 269 +1). Na última eleição, Biden venceu Trump por 306 a 232 votos. Há estados que são, tradicionalmente, Democratas, caso da Califórnia e de Nova York, e outros, Republicanos, caso do Texas e da Flórida. Entre 2020 e 2024 houve alteração no número de votos de alguns, pelo aumento ou redução da população/eleitores. A Califórnia reduziu de 55 para 54 votos; Nova Iorque, de 29 para 28, já o Texas cresceu de 38 para 40 e a Flórida, de 28 para 30. Ou seja, só nestes quatro estados Trump ganhou seis votos. São ainda estados de peso Illinois e Pensilvânia, ambos com 19 votos. Kamala ganhou em outros democratas. Para Nate Silver, a batalha fica restrita a uma dúzia de estados-pêndulos, nos quais os eleitores ainda podem mudar de lado.

Por isso Kamala e Trump concentram as atenções no Arizona (6 votos), onde Trump estava em vantagem de 48,5% a 47,1% e principalmente na Pensilvânia (19 votos), onde Harris liderava por 48,9% a 47,2%; Michigan (15 votos), onde sua vantagem era de 49,8% a 46,5% e Wisconsin (10 votos), onde Harris lidera por 49,7% a 47,5%. Além de Arizona, o campo de batalha se desloca para a Carolina do Norte (16 votos), onde Trump está à frente por 48,1%, contra 47,7% e na Geórgia (16 votos), onde Trump vencia por 48,6% a 47,8%; em 2020, a vitória de Biden foi contestada por Trump, que pediu ao procurador eleitoral local que fraudasse mais de 12 mil votos para ele vencer. Nate Silver diz que “a previsão ainda está incerta, mas estamos chegando ao ponto em que diríamos que preferimos ter a mão de Harris para jogar”.

 

Fonte: Por Gilberto Menezes Côrtes, no JB

 

A crença no recomeço: histórias que falam sobre renascimento e esperança

"Viver é um rasgar-se e remendar-se." A célebre frase do escritor e poeta Guimarães Rosa ilustra como a vida, de forma sucinta, obriga cada um a se reinventar em determinado momento. Recomeçar, quantas vezes for preciso, é uma experiência não solitária, encarada por muitas pessoas. Algumas delas, enquanto crianças, adultas ou idosas, precisam encontrar o seu lugar no mundo, especialmente após olharem de frente para um trauma. O que torna, porém, o caminho um pouco mais difícil. Renascer, para quem vivenciou uma tragédia, é recolher os cacos de si mesmo e tentar mais uma vez.

Neste domingo é comemorada a Páscoa. Para o calendário religioso cristão, a representação da vida e da ressurreição de Jesus Cristo. Data para recordar as dificuldades superadas, mantendo a chama da esperança acesa no coração. Trazendo esse conceito para a realidade, voltamos o olhar para aqueles que viveram uma situação traumática. Essas circunstâncias naturais, que fazem parte da jornada de muitos, podem impactar de inúmeras maneiras um indivíduo.

De acordo com Fábio Aurélio Leite, médico psiquiatra do Hospital Santa Lúcia Norte e membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria, o trauma pode ter repercussões de consequências variadas. "Por diversas razões, é muito difícil saber qual será a consequência em cada paciente, como a idade, o momento da estrutura mental e emocional que o indivíduo tem", complementa.

O lado profissional, pessoal e os relacionamentos interpessoais podem ser impactados em eventos pós-traumáticos, desencadeando algumas alterações e fazendo com que haja abertura para o surgimento de doenças como depressão e síndrome do pânico. "Percebemos que o mais importante é tentar fazer terapia para que se organize. Só algumas pessoas conseguem elaborar, outras têm mais dificuldade. Em certas situações, o trauma também pode provocar psicose ou abrir um quadro de bipolaridade, seja provocado pela morte de um parente, seja de uma pessoa muito querida. E existem várias maneiras de trabalhar e de tratar isso, cada uma do seu jeito."

•        De repente, tudo mudou

Estar naquela fase da infância que beira a adolescência e precede um período cheio de alegria e vigor. Quando crescia e tentava entender mais sobre si mesmo, Alan Sousa, 35 anos, foi acometido por uma tragédia. Enquanto brincava em um campo de futebol, onde soltava pipa e se divertia com amigos, sofreu uma tentativa de assalto. Uma quarta-feira de cinzas, em 28 de fevereiro de 2001, tudo mudou para sempre.

Isso porque durante a abordagem do criminoso, sem entender muito bem o que estava acontecendo, Alan acabou sendo baleado nas costas. "Desde os 12 anos, então, eu me tornei paraplégico, fazendo o uso da cadeira de rodas", relata. Depois do acidente, começou a fazer reabilitação no Hospital Sarah. Lá, teve o primeiro contato com vários esportes, que, de início, serviam somente para sua recuperação física e mental. Tênis de mesa e basquete para pessoas em cadeira de rodas foram as modalidades experimentadas, sem viés competitivo.

Mesmo assim, a semente foi plantada. E Alan sabia disso. A passagem na unidade hospitalar durou apenas um mês. Voltou para casa e permaneceu em ócio por um longo período. Sem praticar qualquer modalidade, ficou até os 16 anos sem saber como seguiria dali em diante. "Eu era uma criança normal, andava perfeitamente e tinha uma vida comum. De repente, estava preso em uma cadeira de rodas, só ficava em casa, ia para a escola e jogava videogame", lembra.

Outra chance para seguir em frente apareceu quando Alan recebeu um convite de colegas da escola em que estudava para jogar basquete. As aulas eram pela manhã, e os treinos na parte da tarde. A rotina, todavia, fez com que ele se cansasse e desistisse de novo. Terminou o ensino médio, conseguiu uma bolsa de estudos e entrou na faculdade de direito — tornou-se analista jurídico. Ainda nessa etapa, deu início à natação para se manter ativo e buscar um pouco de lazer.

•        Mais que destino

Por coincidência, descobriu que o treinador da natação também era técnico de basquete em cadeira de rodas. "Ele me convidou para treinar e eu, prontamente, recusei. Disse que estava fazendo faculdade e que estudava à noite. Mas a insistência foi grande e, em um dos semestres, não tinha aula às quartas-feiras. Pensei que poderia ir para conhecer, mesmo sabendo que não iria continuar, apenas para dar uma resposta ao professor", conta Alan.

Em meados de 2008, o que era certo de que não funcionaria tornou-se uma das maiores paixões para o analista jurídico. Uma lacuna preenchida, um espaço antes cinza voltou a ter cor. O basquete, de acordo com ele, trouxe sensações antes tidas somente na infância, quando o esporte favorito ainda era o futebol. Um ano depois de dar sequência aos treinamentos e encarar a modalidade com mais seriedade, Alan foi convocado para participar do Parapan juvenil sub-23, representando a seleção brasileira, que aconteceu na Colômbia.

Lá, foi vice-campeão ao lado dos companheiros de time. A partir daí, uma série de novas convocações surgiram, uma delas para disputar o mundial na França. "Conseguimos nos tornar a sétima melhor equipe nessa competição. Olha o que o esporte fez! Eu nem tinha viajado de avião. Aprendi e melhorei o meu basquete, continuei treinando e fui chamado para a seleção principal do Brasil", destaca.

A maior conquista, para ele, foi o Sul-americano disputado na Venezuela, em que foi campeão pela equipe nacional. Propostas de equipes paulistas, mais estruturadas, também apareceram em seguida. Mas, de acordo com ele, o desejo de ficar perto de casa com a família, os amigos e namorada prevaleceu.

"Passei de um jovem tímido, envergonhado, com vários medos e questões de autoestima, para um adulto confiante. Conheci pessoas e lugares novos, algo que somente o basquete poderia me propiciar. Não importa o quanto a rotina seja cansativa, vou e treino. Sempre saio com a sensação de prazer e dever cumprido. Não consigo mais viver sem", acrescenta Alan.

•        Duas perdas

A arte é um elemento fundamental para suportar os desgostos trazidos pela vida. Com ela, é possível transformar ódio em amor, tristeza em alegria, dor em poesia. Para muitos, é uma peça-chave que ajuda na busca pela compreensão do próprio ser. Eloy Barbosa, 78, encontrou nessa não tão nova perspectiva uma chance para recomeçar depois de duas tragédias em um curto espaço de tempo. Em pouco menos de 10 anos, perdeu os dois filhos, Tiago e Ludmila.

O primogênito morreu em um acidente de moto, há pouco mais de uma década. Nada nunca mais foi o mesmo, segundo ele. Afinal, um pai nunca espera enterrar um filho. A perda caçula foi um baque daqueles. Saudável, talentosa e no auge, Ludmila era triatleta e competia em Palmas quando faleceu. A hélice do bote salva-vidas a atingiu durante uma maratona, em 2018. Ela teve o pé esquerdo amputado, ficou dias internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) até vir a óbito.

“Após a morte da Ludmila, para me manter ocupado e longe de pensamentos ruins, desenvolvi meu lado artístico. Essa segunda metade da minha jornada me proporcionou uma vida mais alegre, prazerosa e cheia de realizações”, comentou. Buscar renascimento em uma idade já avançada parecia não ser provável. Eloy, contudo, contrariou tudo o que imaginavam e transitou até se reencontrar de novo.

As alternativas tentadas foram imensas. Canto, atuação, atividade física, movimento de idosos e por aí vai. Mas foi no teatro que, possivelmente, melhor se encaixou. O luto, naturalmente, é um processo contínuo que requer paciência para ser compreendido, já que superá-lo nem sempre é possível. No entanto, Eloy empenhou-se em acelerar a caça pela cura com muitas ocupações.

“O teatro me deu muito protagonismo, porque eu precisava decorar texto. A rotina de dançar, atuar me deu qualidade para viver, me trouxe muita felicidade e fez com que os pensamentos passados perdessem força. Entendi que a vida não perde tempo para dar certo. Queria criar um presente para mim novo, alegre e feliz. Acredito que consegui isso” acrescenta Eloy.

•        Renascimento de um pai

As tragédias que aconteceram ele mantém trancadas dentro de si, como um segredo inalcançável, compartilhando sentimentos e dificuldades ao lado da esposa, Marieta, com quem é casado há quase 50 anos. “Tem gente que nem sabe que os meus filhos morreram. E não precisa saber, não quero ser vítima de ninguém. Estamos levando assim”, completa.

Tamanho amor e gratidão pelo teatro fez com que Eloy criasse o Movimento Felizart, que faz trabalhos artísticos no Distrito Federal. Ele, inclusive, passou a estudar para aperfeiçoar e melhorar sua atuação. E tem conseguido com muita excelência, já que marcou presença em comerciais de empresas importantes e em cartazes de conscientização sobre temas diversos para idosos.

“Fiz uma campanha nacional para o Ministério da Saúde, chamando pessoas da terceira idade para se vacinarem. Enfim, eu me tornei um artista multifacetado. Minha autoestima elevou-se e a cada dia que passa sinto mais inclusão na parte artística e esportiva, uma vez que também faço musculação na academia, com ajuda de minha querida esposa”, afirma Eloy.

Foco e preservação da humanidade, conforme descreve o aposentado, lhe ajudaram a permanecer são. Ocupou-se, buscou amigos e apoiou-se na companheira. O nome Eloy, de origem francesa, significa acreditar em si mesmo. E ele precisou muito dessa esperança para continuar realizando sonhos. Hoje, o Felizart conta com 10 alunos e um professor — pessoas de todas as idades que buscam, também, uma forma de superar traumas.

“Como fuga, fiz a primeira peça. Não esperava, mas a repercussão foi tão confiante. Outros trabalhos de teatro, cinema e palestras apareceram. Participo do movimento de idosos ao lado de colegas, faço shows em praças e estou no canto de um coral. Decoro e declamo poesias de Cecília Meireles, Castro Alves, Gonçalves Dias. Sei mais de 20 poemas. Agora, tenho uma vida agradável.”

•        Um novo começo

Desenvolvido e evoluído na província de Okinawa, no Japão, o caratê, traduzido do japonês, significa "mãos vazias" e possui diversos benefícios. Como qualquer outra atividade física, auxilia na preservação da saúde mental daqueles que praticam a arte marcial, os chamados caratecas. Muitos dos lutadores da modalidade têm suas vidas transformadas pelos impactos positivos e ensinamentos da arte.

A estudante de educação física Rebeccah Victoria, 21 anos, é uma dessas caratecas que teve a vida mudada pelo esporte. No início da pré-adolescência, a estudante começou a lutar por incentivo do avô, e dali em diante se apaixonou pela arte. "O dojo (local de treino) se tornou meu local de paz, foi fundamental para a formação do meu caráter e do espírito de guerreira que foi despertado em mim", conta.

Praticante da arte marcial há quase 10 anos, Rebeccah entende a importância da luta para sua trajetória e para o reconhecimento de sua força e potencial. O caratê, de acordo com ela, forjou seu caráter e foi essencial para ganhar disciplina. Além disso, lhe ajudou a conter o espírito agressivo comum na adolescência, mostrando que poderia ser melhor do que era.

Em março de 2020, a mãe de Rebeccah faleceu, vítima de feminicídio, e deixou um bebê de 3 meses e uma família inteira desnorteada. Duas semanas depois, deu-se início ao lockdown da covid-19 e a necessidade de se reinventar enquanto indivíduos e família em meio a tantos desafios. "Todos da minha casa são praticantes de caratê. Com o lema de 'criar intuito de esforço', nos juntamos para proporcionar o melhor ambiente para a criança e para nós", conta. "Foi lindo e inspirador participar de um momento como esse".

Para Rebeccah, a prática do caratê e os ensinamentos da arte marcial são indispensáveis para sua vida e foram essenciais para superar as dificuldades e a dor que lhe foi imposta. "O caratê, para mim, está em todas as horas do dia, desde identificar possíveis situações de perigo até mesmo virar a cabeça de forma segura. Pratico diariamente os ensinamentos e os alongamentos para me manter saudável."

Hoje, no início de uma gravidez, Rebeccah sente-se abençoada por esse momento único de chegada de um novo "caratequinha" na família, previsto para nascer no dia do aniversário da mãe. Mesmo após a perda, a data está carregada de boas lembranças e continua simbolizando a presença e os ensinamentos deixados pela matriarca. "No ano passado, fui medalhista no aniversário dela e, este ano, meu filho provavelmente nascerá no mesmo dia", conta Rebeccah. "Recebi um sinal de que esse filho seria muito mais que só uma criança".

•        A luta contra a depressão

O autocontrole, a autoconfiança, o desenvolvimento do condicionamento físico e o equilíbrio mental e físico são algumas das mudanças percebidas por Maria Clara Nicácio dos Santos, 14 anos, que durante um quadro de depressão e de bronquite asmática começou a lutar. "O caratê me ajudou em diversos quesitos, incluindo superar a depressão, e no fortalecimento do meu corpo, pois não tenho mais ataques de asma", detalha a jovem.

Segundo a mãe de Maria Clara, Josefa Lopes, na época em que começou no esporte, a filha estava mal psicologicamente desde o início da crise sanitária da covid-19. Com isso, a prática da atividade física foi o que mais lhe ajudou a sair do quadro. "A pandemia foi acabando, mas a depressão não foi embora", lembra. "O remédio da Maria Clara para curar a depressão, aquela melancolia, uma coisa muito ruim que eu não desejo para pai nenhum, foi o caratê", acrescenta Josefa.

Quando Maria Clara se interessou pela luta, a mãe encontrou o Uruma-Kan Karate Solidário, em parceria com a Escola Boaz de Artes Marciais, localizado em Samambaia, onde até hoje a jovem treina. Apesar de não ter gostado no começo, a garota cultivou apreço pela arte. "O sensei Daniel Paraguassu viu a Maria Clara muito além daquele momento, e aí não demorou muito, ela começou a se dedicar bastante", afirma a mãe.

Campeã do 26° Campeonato de Karatê Shotokan, Maria Clara reconhece que, além dos benefícios físicos e mentais, o caratê proporciona uma melhor socialização e integração social. "Por meio dos treinamentos, eu venci dentro e fora dos tatames, pois, hoje, me vejo melhor na escola, em casa, e posso falar que meu corpo, minha mente e meu espírito estão fortalecidos", declara.

Para Josefa, a prática da luta marcial salvou a vida da filha, que, com o tempo, voltou a ter o espírito de vida que tinha se perdido. "Hoje, a Maria Clara brinca, conversa, é outra pessoa, literalmente. Eu a tenho de volta. Ela é a minha Maria, a minha filha hoje está aqui. E eu sou muito feliz", diz.

•        A dor se transforma no propósito

A infância, período de grandes ensinamentos e transformações, também é o momento em que as descobertas e as vivências formam o futuro adulto. Lutar pela própria vida ainda criança é uma experiência que deixa marcas inimagináveis. Andréa Pandolfi Barcello, 45 anos, foi uma dessas lutadoras, mas manteve a cabeça erguida e transformou a dor em cura.

Diagnosticada aos 11 anos com leucemia linfoide, o câncer mais comum da infância, Andréa enfrentou uma das batalhas mais difíceis de se travar. “A notícia de você ter um câncer é um impacto muito grande na sua vida, não é fácil você receber um diagnóstico desses, é uma doença muito grave, são muitas incertezas, mas eu sempre tive muito apoio, tanto da equipe médica quanto da família”, afirma.

Após dois anos difíceis de tratamentos, incluindo quimioterapia e radioterapia, meses de mal-estar e dificuldades, Andréa imaginou que ficaria o mais distante possível de clínicas e médicos, mas não foi isso o que a vida lhe proporcionou. “De primeira, achei que eu nunca mais ia querer entrar num hospital, mas logo depois eu comecei a fazer trabalhos voluntários com crianças com câncer na Abrace, e daí em diante a oncologia não saiu mais da minha vida”, relata.

Após o ensino médio, ao contrário do que tinha imaginado para si, e inspirada pela vivência que teve na infância, Andréa entrou para a faculdade de medicina com o intuito de ser para outras crianças a heroína que os médicos foram para ela. “Eu entrei para a medicina já pensando em fazer pediatria e em fazer oncologia, para trabalhar nessa área, trabalhar com as crianças que têm hoje o mesmo problema que eu tive.”

Hoje, a médica oncologista pediatra reconhece que a luta contra o câncer quando criança a ajudou a crescer e encarar a vida com outros olhos. O sentimento de aproveitar e seguir em frente são fortes dentro dela. Andréa também acredita que a experiência acrescenta muito no trabalho, pois, além de conseguir se colocar no lugar dos pais e dos pacientes, a vivência da médica traz a segurança e a esperança de que é possível superar e enfrentar a doença, por mais difícil que pareça.

Para ela, a sensação de poder fazer parte da vida e da cura dessas crianças é o que mais dá sentido para a profissão. “Eu acho que a parte mais gratificante do meu trabalho é quando eu vejo a criança que terminou o tratamento, que está curada, e eu vejo que fiz parte dessa trajetória, ajudei a criança e a família a conquistar isso, chegar ao fim do tratamento e conquistar a cura.”

Depois dos desafios enfrentados tão cedo, toda a dor vivida foi transformada em algo maior e mais bonito. Andréa acredita que, apesar das dificuldades, é imprescindível lutar e manter a esperança. “Por mais que os problemas pareçam, às vezes, intransponíveis, a gente não pode desistir”, afirma. “Se tivermos força e coragem, conseguimos enfrentar tudo que a vida botar na nossa frente.”

 

Fonte: Correio Braziliense

 

Saúde mental: Crianças traumatizadas se tornam adultos doentes

Gritos, agressões, assistir a cenas assustadoras ou presenciar uma briga, situações como essas marcam o cérebro de uma criança. Segundo a ciência, viver traumas na infância pode causar problemas muito mais profundos, que permanecem até depois da vida adulta. Novas pesquisas destacam a importância dessa fase para uma vida longeva e saudável.

Um estudo recente da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA Health), nos Estados Unidos, revela que experiências traumáticas na infância podem aumentar o risco de desenvolvimento de 20 doenças graves ao longo da vida. As conclusões, publicadas na revista Brain, Behavior and Immunity, oferecem uma análise abrangente sobre os efeitos de estressores infantis, destacando diferenças significativas entre homens e mulheres.

Embora haja um crescente consenso na literatura científica sobre as consequências duradouras de adversidades na infância, investigações anteriores não haviam explorado adequadamente como diferentes tipos de estressores afetam funções biológicas específicas e riscos à saúde. O estudo da UCLA se destaca por fornecer uma das análises mais completas sobre as consequências biológicas e clínicas das experiências adversas.

O autor sênior do estudo, George Slavich, diretor do Laboratory for Stress Assessment and Research da UCLA, enfatizou em comunicado a importância da pesquisa: "A maioria das pessoas que passaram por estresse significativo ou trauma na infância nunca são avaliadas. Essas descobertas destacam a importância crítica da triagem de estresse em ambientes clínicos." Ele ressalta a necessidade de uma abordagem mais personalizada no tratamento, considerando o sexo do paciente e o perfil de estresse individual.

A equipe analisou dados de mais de 2.100 participantes do estudo longitudinal Midlife in the United States. Os participantes relataram experiências adversas, como dificuldades financeiras, abuso e negligência, além de fornecer amostras biológicas que permitiram a medição de 25 biomarcadores de doenças. Os resultados mostraram que os indivíduos que relataram baixo estresse apresentaram menos problemas de saúde, enquanto o risco aumentava com a gravidade das experiências vividas.

Ambos os sexos nas classes de alto estresse mostraram pior saúde metabólica e níveis elevados de inflamação. No entanto, os efeitos foram mais pronunciados nas mulheres, especialmente em relação aos biomarcadores de saúde metabólica. Para os homens, condições de abuso emocional e negligência tiveram um impacto mais significativo.

Slavich acrescentou que "o estresse está implicado em 9 das 10 principais causas de morte nos Estados Unidos hoje. Já é hora de levarmos essa estatística a sério e começarmos a fazer exames para estresse em todas as clínicas pediátricas e adultas no país". As implicações clínicas dos achados levantam questões sobre o papel das experiências adversas em contextos sociais mais amplos, sublinhando a necessidade de políticas de saúde pública voltadas à prevenção de traumas na infância e promoção de ambientes familiares saudáveis.

O psiquiatra sócio-fundador do CBI of Miami e Primium Educação Médica, Gustavo Teixeira, destaca que mulheres que passam por eventos traumáticos apresentaram maior vulnerabilidade a inflamações e distúrbios metabólicos. "Enquanto os homens mostraram mais problemas cardiovasculares e comportamentais. Essas diferenças são atribuídas a fatores biológicos, hormonais e sociais que modulam como o corpo lida com o estresse durante a infância."

Além das conclusões da UCLA, um editorial liderado pela Sam Houston State University (SHSU), sintetizou evidências de quase 100 meta-análises sobre experiências adversas na infância (ACE). Detalhado no Journal of Child Psychology and Psychiatry, a publicação encontrou diferenças significativas nos efeitos dependendo das abordagens utilizadas. "Nossas descobertas destacam a complexidade e a natureza variada da influência dos ACE no desenvolvimento individual e no bem-estar social", frisou, em nota Bitna Kim, líder da pesquisa e professora da SHSU.

Conforme a revisão, ACEs incluem eventos traumáticos que ocorrem desde o nascimento até os 17 anos, como abuso, testemunhar violência e crescer em um ambiente familiar com problemas de saúde mental, por exemplo. Fabiana Fonseca, pediatra, em Brasília, destaca que são consideradas experiências adversas a violência mental e física que geram traumas, incluindo episódios de negligência.

"Precisamos mudar isso, esse trauma pode acompanhar a pessoa pela vida inteira, gerando muitos problemas. Essas questões são difíceis de lidar e demandam muita terapia. A criança fica mais suscetível a adoecer, ter doenças infecciosas e crônicas. Na fase adulta têm mais chances de apresentar obesidade, hipertensão e diabetes porque ela já tem um comportamento de risco e uma dificuldade de estabelecer relações sociais saudáveis."

Os pesquisadores avaliaram o impacto desses eventos em seis domínios: desregulação biológica, deficiências neuropsicológicas, complicações de saúde física, condições de saúde mental, desafios sociais e comportamentais, e envolvimento com a justiça criminal.

A equipe notou que, mesmo quando classificado como de pequeno a moderado, a complexidade do evento só é evidente ao considerar as interações entre diferentes abordagens e resultados. Além disso, a análise centrada em maus-tratos infantis mostrou grandes efeitos em todos os domínios avaliados, incluindo maior envolvimento com a justiça criminal e problemas sociais.

>>>> DUAS PERGUNTAS PARA... CARLOS GUILHERME, VICE-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA DE BRASÍLIA (APBR)

•        Quais são as implicações desses resultados para as práticas clínicas relacionadas à avaliação do estresse e à medicina personalizada?

A investigação da história pregressa do indivíduo assume um papel ainda mais importante durante a avaliação clínica. Uma análise mais abrangente das experiências adversas na infância pode trazer informações cruciais para identificação de fatores de riscos para doenças ou condições de saúde, possibilitando intervenções personalizadas e otimizando o manejo e tratamento específico.

•        Como pesquisas nessa área podem influenciar nos cuidados de crianças e jovens traumatizados?

Os resultados deste estudo podem impactar significativamente os cuidados de crianças e jovens que viveram traumas ao enfatizar a importância de reconhecer e abordar as diferentes formas de adversidade. Profissionais de saúde e educadores podem receber informações precisas sobre como essas experiências podem afetar o desenvolvimento biológico e psicológico, permitindo intervenções mais eficazes e direcionadas que visem mitigar os efeitos adversos a longo prazo. Garantir políticas públicas que previnam os diferentes tipos de abuso, além de fornecer abordagens específicas e monitoramento contínuo para crianças que sofreram traumas precoces, pode reduzir significativamente a incidência de doenças crônicas e impactar positivamente o bem-estar físico, mental e social dessas crianças ao longo de toda a vida.

<><> Brincar é essencial

Estimular a criatividade e a confiança é indispensável na educação de crianças, segundo a ciência. Em um editorial publicado na revista Neuroscience and Biobehavioral Reviews, David F. Bjorklund, professor de psicologia na Florida Atlantic University, nos Estados Unidos, descreve a brincadeira de faz de conta como um "multivitamínico metafórico" para o desenvolvimento infantil.

Bjorklund ressalta que essa prática está intimamente ligada à aquisição de habilidades sociocognitivas. "A brincadeira de faz de conta está associada a uma série de habilidades cognitivas aprimoradas, como função executiva e linguagem," afirmou ele, enfatizando a importância de resgatar o valor do brincar.

Com a evolução das demandas sociais e educacionais, a estrutura das pré-escolas mudou. De acordo com Bjorklund, a educação pré-escolar frisa a instrução direta, em vez de um aprendizado baseado em brincadeiras. Essa alteração gera uma incompatibilidade entre as formas naturais de aprendizado das crianças e as exigências da educação formal atual. O resultado é uma diminuição das oportunidades para os pequenos explorarem e aprenderem de forma lúdica.

O professor detalha que o 'faz de conta' não só é uma forma de expressão criativa, mas também um processo que prepara o cérebro para o aprendizado. "As habilidades envolvidas vão além da imaginação e da imitação; elas também incluem a capacidade de pensar sobre possibilidades diferentes da realidade." Para a ciência, essa ludicidade é vital para o desenvolvimento das habilidades psicológicas.

Pesquisas demonstram que abordagens pedagógicas baseadas em brincadeiras oferecem benefícios significativos a longo prazo, superando os ganhos imediatos da instrução direta. "Estudos mostraram que, embora a instrução direta possa trazer benefícios iniciais, esses efeitos diminuem ao longo do tempo," ressalta Bjorklund.

A psicóloga infantil Claudia Melo, afirma que na prática clínica observa uma maior capacidade de expressão de sentimentos e mais facilidade de lidar com situações adversas e habilidades de comunicação e interação em crianças que brincam de faz de conta. "Recomendo que os pais reservem um tempo e incentivem essa atividade em casa, proporcionando tempo e espaço para a livre expressão criativa das crianças. É importante disponibilizar materiais e objetos diversificados como tintas, lápis de cor, jogos, tecidos, bolas e bonecos. Todos esses processos incentivam a participação ativa nas brincadeiras e a valorização da imaginação e da espontaneidade."

"Brincar é essencial, e a diminuição do tempo de brincadeira livre está associada ao aumento de problemas emocionais e comportamentais em crianças. Isso porque a brincadeira é fundamental no crescimento e no desenvolvimento saudável, no fortalecimento das habilidades sociais, na regulação emocional e no bem-estar infantil", ressaltou a especialista.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

Plinio Teodoro: Um soco na democracia - o legado das eleições municipais para a disputa presidencial em 2026

Pouco mais de dois anos após sofrer o mais duro golpe desde a redemocratização, com ataques da horda de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) às sedes dos Três Poderes em Brasília no fatídico dia 8 de janeiro de 2023, a democracia brasileira recebeu um soco que prenuncia que o passado violento e golpista da burguesia financista, atrelada aos interesses do sistema financeiro transnacional, será projetado em um novo round nas eleições presidenciais em 2026.

Após Bolsonaro calçar o coturno e levar o Brasil a revisitar uma página infeliz de nossa História, o fascismo neoliberal ganhou uma nova face, ainda mais violenta e inescrupulosa, nas eleições à Prefeitura de São Paulo, onde Pablo Marçal (PRTB) está herdando a liderança da ala mais radical do bolsonarismo, que lhe tem garantido cerca de 20% do eleitorado da maior cidade da América Latina.

Ceivado pelo ódio de Bolsonaro, essa parcela da população agora se alimenta da violência política disseminada pelo ex-coach e a facção que o acompanha – parte dos assessores têm ligação direta com o crime organizado – nas redes, nas ruas e nos debates.

Foi assim na última segunda-feira (23), quando, ao ser expulso por Carlos Tramontina faltando 10 segundos para o fim do debate no Flow, o ex-coach olhou para os assessores e, em um gesto de consentimento com a cabeça, deu aval para que o sócio e videomaker Nahuel Medina desferisse um soco no rosto de Duda Lima, marqueteiro de Ricardo Nunes (MDB) e remanescente da condução da campanha de Bolsonaro em 2022.

Procuradora regional da República e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Silvana Batini afirma que a violência física levada à campanha por Marçal, que tem sido aceita por um índice considerável da sociedade, é a mais nova "surpresa" para a Justiça Eleitoral, que precisa criar novas leis para que se evite e se punam exemplarmente todos os envolvidos.

"A violência em contextos políticos, historicamente, era resultado do acirramento das disputas. As eleições de 2024 mostraram candidatos que usam a violência – seja ela verbal, psicológica ou física –  como estratégia de campanha. A Justiça Eleitoral tem o dever de impedir isso. O emprego da violência como estratégia de campanha tem que ser encarado como abuso, e daí deve derivar a cassação do registro e a inelegibilidade desses candidatos e de quem colabora com eles", diz.

"Eleições disputadas por membros e simpatizantes do crime organizado de tipo violento não podem ser consideradas eleições normais. Porque essas candidaturas não têm compromisso com as regras e isso deixa os demais candidatos em situação de desvantagem", emenda.

Para a cientista política Rosemary Segurado, professora da PUC-SP, a penetração da performance cada vez mais radicalizada da extrema direita em uma parcela considerável da sociedade é preocupante não só do ponto de vista do processo eleitoral, mas de educação política.

"Esse comportamento é muito perigoso e ele desperta ou reforça numa parcela do eleitorado a visão de que é o valentão quem vai resolver os problemas da cidade, deslocando um pouco o mito do 'messianismo' para o valentão. E a juventude tem sido muito atraída por esse perfil", analisa.

·        Fascismo neoliberal

Doutor em geografia e especialista em análise da mídia, Francisco Fernandes Ladeira lembra que o recrudescimento da ultradireita neofascista, que nos trouxe ao fator Marçal em 2024, teve início quando o debate político mudou de eixo e o campo progressista foi, aos poucos, abandonando as críticas ao modelo neoliberal para "morder a isca" da chamada "pauta de costumes" – que diz respeito aos direitos e à inclusão – lançada pela direita que começava a se radicalizar.

"Essa era a pauta da eleição presidencial de 2010, quando o PSDB, inclusive, escondeu seu viés privatista. Oito anos depois, a extrema direita conseguiu direcionar a pauta da eleição para o que conhecemos como 'pauta dos costumes'. Consequentemente, puderam divulgar todo tipo de fake news sobre uma provável vitória do progressismo 'ameaçar os tradicionais valores da família cristã brasileira'. A esquerda mordeu a isca", disse à Fórum.

Ladeira resgata ainda a máxima marxista que aponta ser o fascismo a “carta na manga” que o sistema capitalista possui quando a democracia burguesa já não é mais suficiente para manter os lucros dos grandes capitalistas. 

"Pablo Marçal é mais bolsonarista que o próprio Bolsonaro. Diferentemente do ex-presidente, ele realmente representa o slogan 'liberal na economia, conservador nos costumes'. Se Nietzsche dizia que o cristianismo é um platonismo vulgar para as massas; podemos dizer que o 'marçalismo' é a racionalidade neoliberal vulgar para as massas. Nos discursos de Marçal estão presentes todas as ilusões difundidas na atual fase do capitalismo, sobretudo a chamada 'meritocracia' (a responsabilização do indivíduo por sua situação econômica)", explica.

A posição é compartilhada pelo doutor em economia Paulo Kliass, membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. Segundo ele, o financismo tem preferência por candidaturas e programas de sua confiança.

"O caso mais concreto foi em 2018, na hora que o Paulo Guedes entrou na campanha de Bolsonaro e as alternativas da terceira via não se viabilizaram eleitoralmente. Eles caíram sem nenhuma dúvida, a despeito do passado do Bolsonaro de defesa da Ditadura, da tortura: 'não, ele está conosco porque o Paulo Guedes é um cara nosso e nós achamos que na política econômica vamos ter influência. O cara é branco neofascista, mas o que interessa é que na política econômica vamos estar bem seguros'", rememora.

Para isso, o avanço da ultradireita contou com a atuação imprescindível da mídia liberal que, embora mostre certa divergência com a ultradireita na chamada "pauta de costumes", coaduna com o modelo econômico cunhado por Milton Friedman e imposto via Consenso de Washington aos países periféricos com vistas a aumentar o domínio e os lucros do sistema financeiro internacional.

"A economia é um dos principais elos entre os meios de comunicação neoliberais e a ultradireita. E essa relação é explícita. Os caras abriram mão de quaisquer pruridos na época do Bolsonaro, porque tinham um apoio explícito à política do Paulo Guedes", diz Kliass.

·        Globo lixo? Não é bem assim

Fernandes Ladeira, no entanto, afirma que essa aliança entre a mídia liberal e a ultradireita não se torna perceptível para uma determinada parcela da população, que adota um discurso incongruente para defender "mitos", como Bolsonaro e Marçal, que propagam a narrativa de um falso antagonismo.

"Apesar de inúmeras matérias denunciando a 'internacional fascista', a GloboNews, por exemplo, está longe de ser 'antifascista' (haja vista seu apoio antecipado à candidatura do 'bolsonarista moderado' Tarcísio de Freitas para a Presidência da República em 2026). Há também certa conveniência nessa relação. Mídia e neofascistas podem se aliar em determinados momentos; e se afastar um pouco em outros. Ambos se retroalimentam quando estamos falando em antipetismo, submissão à agenda externa imperialista e menor atuação do Estado na economia. Na época dos noticiários inflamados sobre a farsesca Operação Lava Jato, os neofascistas, começando a sair do armário, vibravam a cada edição do Jornal Nacional. Quando a Globo, que apoiou Bolsonaro em 2018, ensaiou uma suposta oposição ao governo do ex-capitão, virou 'Globo lixo'”, lembra.

Para enganar o eleitorado sobre esse falso antagonismo, o neofascismo contou com as redes sociais, que foram manipuladas de forma inédita por Pablo Marçal nas eleições atuais. Ex-coach, o milionário montou uma estrutura de premiação em dinheiro pago a milhares de integrantes de uma milícia digital aglutinada na plataforma Discord, que buscam, assim como o líder, acumular fama e fortuna como influenciadores digitais.

"Os algoritmos das redes sociais são estruturados para prender a atenção, premiando o alarmismo, informações 'chocantes' e teorias da conspiração. Um prato cheio para a extrema direita, que radicaliza cada vez mais o seu discurso para gerar engajamento, auxiliada pela lógica do lucro das grandes plataformas", explica Edgard Piccino, analista de redes sociais da Fórum.

·        "Meritocracia da prosperidade"

Participando do jogo obscuro com a mídia liberal e impulsionado pelas redes, Marçal dá um passo além do que foi feito por Carlos Bolsonaro (PL-RJ) no chamado Gabinete do Ódio, desafiando a hegemonia do ex-presidente no comando da ultradireita tupiniquim.

O ex-coach ainda adapta o discurso neoliberal em forma de pregação para cooptar uma outra parcela do eleitorado bolsonarista: os evangélicos ligados aos pastores midiáticos e a uma gama de igrejas neopentecostais.

"A meritocracia marçalista casa muito bem com a teologia da prosperidade, pois, em última análise, elas só abençoam quem 'merece'. É o cara que se 'esforçou' equivalente ao que 'foi fiel' e Deus 'honrou' sua fidelidade. No fundo, nas duas ideologias (marçalista e prosperidade) o que vale é o 'esforço humano' para alcançar aquilo que, na verdade, só vem para pouquíssimos (e eles sabem disso), mas é uma lógica lotérica, de que, em milhões, um ganha. E esse que 'dá certo' serve de exemplo para fidelizar e manipular a massa, que faz o que pode para 'chegar a sua vez'. É uma espécie de bet espiritual/mental. Milhões apostam, milhões perdem, mas os que ganham são os que são anunciados/projetados, fazendo com que os outros 'acreditem'. Não há diferença entre o 'eu sou a Universal', 'faz o M' e o 'profetize' das bets", diz pastor Zé Barbosa, teólogo, escritor, pós-graduado em ciências políticas e pastor da Comunidade de Jesus em Campina Grande (PB).

·        Fator Marçal e a disputa presidencial em 2026

Condenado à prisão como membro de uma quadrilha que dava golpes em correntistas de bancos pela internet e satirizado por se perder em uma excursão com 32 doutrinados no Pico dos Marins em janeiro de 2022, Pablo Marçal tornou-se o principal protagonista na nacionalizada eleição paulistana.

O caos levado pelo ex-coach ao pleito em São Paulo é, antes de tudo, um convite para se refletir sobre o processo eleitoral e os rumos da democracia, que vem sendo surrada com o recrudescimento do neofascismo aliado ao projeto de acumulação neoliberal – tema que, infelizmente, tem ficado cada dia mais à margem do debate na política e na sociedade.

Para a procuradora Silvana Batini, o momento demanda ampliação do debate para repensarmos os limites da autonomia partidária, democracia interna dos partidos e modelos de responsabilização objetiva para determinadas infrações graves de candidatos.

"Estamos, nestas eleições, todos estupefatos com a escalada da violência e da vulgaridade de determinados candidatos. Mas ninguém vai aos partidos políticos perguntar o que eles têm a dizer sobre essa deterioração do ambiente eleitoral. Partidos que têm o monopólio das candidaturas e que detêm parcela enorme do orçamento público precisam ser comprometidos com a restauração da saúde do debate político. São eles que arregimentam as lideranças e as transformam em candidaturas", diz.

Ex-ministro do Trabalho e da Previdência no primeiro mandato de Lula e titular de outras três pastas no governo Dilma Rousseff, Ricardo Berzoini afirma que estas eleições oferecem ainda uma oportunidade ao campo progressista para rever de forma urgente a estratégia não somente eleitoral, mas de atuação política.

"Creio que a maioria dos eleitores quer debater os seus problemas cotidianos, a educação, a saúde, a mobilidade, segurança, etc. É um erro entrar na pauta da direita. A desigualdade social, que é da natureza do capitalismo, e acirrada pelo neoliberalismo, joga a maioria da população para uma vida muito difícil, com carências extremas. Cabe fazer política com essas questões o tempo todo, para ter legitimidade de tratar disso no período eleitoral", disse à Fórum.

Berzoini ainda se mostra incrédulo como "todos tenham caído no debate de interesse do Marçal" e defende que a pauta econômica volte para o centro do debate político.

"A mídia empresarial e até os espaços do campo popular ficam debatendo a cadeirada, o soco. Marçal quer exatamente isso. Nós temos que mostrar que o modelo liberal-financista está sacrificando a maioria da população, que ferrou a saúde pública, a educação, que joga milhares de jovens a virarem escravos do iFood e do Uber e que não permite acesso aos direitos básicos", enfatiza o ex-ministro.

Berzoini afirma ainda que caberá ao campo progressista rever hoje sua atuação de forma séria para que o fator Marçal – que sairá vencedor mesmo se não for ao segundo turno das eleições paulistanas – não desfira mais um soco na democracia e no debate amplo de ideias, especialmente sobre as causas da desigualdade social, dentro da própria esquerda.

"Que tal discutirmos nossas fraquezas, a desorganização, a falta de um planejamento estratégico e a natureza cada vez mais eleitoreira da esquerda brasileira? 2026, nesse quadro, depende de São Lula, nosso padroeiro das eleições impossíveis. Se a esquerda quiser sobreviver ao pós-Lula, precisa discutir sua realidade agora", conclui.

 

¨      Pastel, urna eletrônica e resistência. Por Josué de Souza

Estamos na semana das eleições municipais de 2024. É aquele momento do ano em que o cheiro de pastel na esquina se mistura com promessas tão mirabolantes que a gente já sabe: vão evaporar antes mesmo da urna esfriar. E, claro, o que não falta é candidato engomadinho, comendo pastel e pão com bolinho, fingindo ser o "povão". Não está no gibi.

No próximo domingo, milhões de brasileiros, exatamente 155.912.680 almas, vão marchar até as urnas eletrônicas para escolher o futuro das suas cidades. Ou, pelo menos, tentar. O número é bonito, um salto de 5,4% desde as últimas eleições, lá em 2020. Crescemos no eleitorado, assim como cresceu aquele cansaço que pesa nos ombros de quem já ouviu promessas demais. Não suportamos mais briga por conta de politica!

E olha só, somos uma das maiores democracias do mundo, sim senhor! Mesmo que a turma com síndrome de vira-lata teime em não reconhecer. Vamos votar de forma eletrônica, moderna, confiável. Aliás, engraçado: aqueles que, em 2022, questionavam as urnas eletrônicas agora estão de volta, com o rabo entre as pernas. Nenhum desistiu de ser candidato este ano. O principal porta-voz dessa teoria, inclusive, aqui na aldeia, brigando voto a voto pra convencer o eleitor a, mais uma vez, confiar ir votar na bendita urna eletrônica.

E como se não bastasse, até o filho dele, o último da família que não era político, resolveu virar candidato. Coitado, herdeiro da fama, mas sem talento nem para falar em público. Dizem que o rapaz calado é um poeta, mas basta abrir a boca que cada palavra é um voto a menos. 

No meio dessa tragicomédia, conforme os números do Tribunal Superior Eleitoral, a juventude que a gente achava perdida, a geração Nem-Nem, resolveu dar as caras. São 1.836.081 jovens de 16 e 17 anos, com título na mão e um brilho nos olhos, ainda acreditando que o futuro é mais do que uma metáfora cansada. Um aumento de 78%! E não é que isso dá um certo alívio? 

Do outro lado, a turma da resistência, os velhinhos também não ficaram pra trás. O eleitorado acima de 70 anos cresceu 12%. Agora são 15.208.667 pessoas nessa faixa etária. Gente que já votou com cédula de papel, enfrentou fila no sol, na chuva, e que, no próximo domingo, vai estar lá de novo, firme e forte. Só os com mais de 79 anos já somam 4.826.663. Resistência é pouco pra descrever. 

No país inteiro, 15.313 candidatos a prefeito estão na pista, disputando cada aperto de mão, cada sorrisinho de canto de boca. Para as câmaras municipais, são 423.908 nomes na corrida. Um mar de gente querendo a bênção do eleitor. 

Aqui em Blumenau, cinco corajosos se arriscaram na disputa pela Prefeitura, uma queda brusca em comparação a 2020, quando 12 se jogaram na arena. Para o legislativo, a história não é muito diferente: 184 candidatos registrados, quase metade da última eleição, que contou com 371. Um deles é um dos líderes da micareta que promoveram em frente ao quartel que, preso é candidato a vereador pela urna eletrônica. Coerência mandou abraços! Fico perguntando se ele agora sabe o código fonte. 

Em meio a essa enxurrada de números, o mais importante é que essa será a primeira eleição depois do ataque à democracia que teve seu ápice no fatídico 8 de janeiro de 2023. Digo ápice porque, a nossa democracia, já vinha sendo espancada durante os quatro anos que o inelegível ficou no poder. Sobreviveu, mesmo maltrapilha. E, quer saber? Que domingo seja uma festa, não a de Selma, mas da democracia. Não da divisão, mas a do respeito, da diversidade e sobretudo da pacificação. Vida longa à democracia! Que ela resista, mesmo que seja de pastel na mão e voto eletrônico na outra.

 

Fonte: Fórum/Brasil 247