quinta-feira, 31 de outubro de 2024

'Bolsa Família deveria premiar quem consegue trabalho. Hoje, penaliza'

Hoje, 7,7% da população brasileira vive com menos de R$ 300 por mês — ou seja, estão abaixo da linha da pobreza definida pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), de rendimento familiar per capita abaixo de R$ 667.

Neste grupo, 3,8 milhões de pessoas estão economicamente ativas: além de beneficiárias do programa Bolsa Família, elas têm idade para trabalhar, apesar de algumas restrições.

Algumas delas chegam até a atuar informalmente no mercado, fazendo “bicos”, por exemplo, para aumentar a renda.

Neste grupo, porém, há 2,5 milhões de brasileiros — o tamanho da população de cidades como Salvador, na Bahia, ou Fortaleza, no Ceará — vivendo um dilema social: eles estão desempregados, querem um trabalho, mas não encontram.

Enquanto isso, permanecem quase todos dependentes do Bolsa Família.

“Temos que encontrar rapidamente soluções para eles”, aponta a economista Laura Muller Machado, que coordena os cursos de gestão pública do Insper, em São Paulo, e que liderou a Secretaria de Desenvolvimento Social paulista por sete meses, em 2022, em entrevista à BBC News Brasil.

Ao lado do também economista Ricardo Paes de Barros, também do Insper, Machado tem se dedicado não só a construir esse diagnóstico da pobreza no Brasil, como também a desenhar uma forma de resolver o problema.

Há pouco mais de um ano, ambos publicaram o livro Diretrizes para o desenho de uma política para a superação da pobreza, pela editora do Insper, que condensa toda essa ideia.

Ela funcionaria, sobretudo, pela atuação de milhares de agentes de desenvolvimento social já espalhados pelo país e que receberiam, agora, a tarefa de encontrar essas famílias pobres, entender como elas podem se capacitar e quais trabalhos poderiam fazer e, então, conectá-las às vagas existentes nos locais em que vivem.

Tudo depende, de um lado, do crescimento da economia brasileira e da consequente ampliação das oportunidades de emprego e, de outro, da intermediação entre estas oportunidades e a mão de obra disponível

“Um match”, diz ela, usando uma palavra comum ao universo digital.

Neste período, os pesquisadores têm se deparado com problemas complexos.

Um deles é o formato atual do Bolsa Família que, nas palavras de Laura, “está desincentivando que seus beneficiários trabalhem”.

Isso porque o programa — que atende hoje 20,8 milhões de famílias com um montante médio mensal de R$ 682 — não tem mecanismos que façam a transição entre simplesmente receber o dinheiro e incluir seus beneficiários de alguma forma no mercado de trabalho.

“Ao contrário: quando elas encontram emprego, são ‘penalizadas’ com a perda do benefício”, explica a economista à BBC News Brasil.

Mas não só: às vésperas da eleição de 2022, além de reajustar o valor ofertado pelo programa — em uma grande reestruturação que mudou seu nome para Auxílio Brasil e desidratou algumas políticas paralelas ao desenho original —, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) também mudou as regras de declaração, abrindo uma brecha para que beneficiários se cadastrem individualmente e, então, recebam o piso, que hoje é de R$ 600.

Com isso, algumas pesquisas têm indicado mudanças estruturais, além de fraudes no escopo do Bolsa Família, como o crescimento de benefícios duplicados dentro de uma mesma família ou de beneficiários homens solteiros, por exemplo.

Relançado no começo do ano passado, o orçamento do Bolsa Família somou R$ 168,6 bilhões em 2024.

Para participar do programa hoje, é preciso comprovar renda mensal média abaixo de R$ 282, além de uma série de condicionantes para famílias com filhos.

Para Machado, além de rever o desenho do Bolsa Família, é preciso incluir logo essas 2,5 milhões de pessoas de alguma forma no mercado de trabalho, mesmo com desafios como a precarização do trabalho e a alta rotatividade das vagas.

A solução para isso, na visão dela, é manter o programa como renda enquanto as pessoas trabalham – e, mais do que isso, elevar pontualmente o valor do benefício até que seu orçamento doméstico se estabilize.

"O Bolsa Família é o responsável pelas grandes reduções de pobreza do país. É a coroa brasileira, nosso maior instrumento de política social, mas que não pode ser blindado de mudanças necessárias", diz a economista.

<><> Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

·        O Brasil tem hoje uma das taxas de desemprego mais baixas da sua história. Por que o mercado de trabalho tão aquecido não está atingindo as camadas mais pobres?

Laura Machado - Temos somente hipóteses. A primeira é sobre o salário reserva brasileiro de hoje. Toda vez que se concede um benefício como o Bolsa Família, o salário reserva das pessoas sobe. Isso significa que elas só topam trabalhar a partir de um certo valor — que, hoje, são pelo menos os R$ 600 do programa. Não faz sentido trabalhar por menos do que isso. O salário inicial para que alguém aceite trabalhar precisa ser, pelo menos, maior que esse montante. Esse é um fenômeno positivo da economia. Não é ruim.

A segunda hipótese é sobre a transição truncada do Bolsa Família para o mercado de trabalho. O programa deveria funcionar premiando os beneficiários que conseguem um emprego, até porque essa tem sido uma tarefa quase impossível para eles. A taxa de ocupação dessa parte da população ainda é minúscula. Quem está no Bolsa Família e alcança um trabalho é um herói. Essa pessoa deveria receber um programa de transição como prêmio, não a retirada total do benefício. Do jeito que está, há apenas desincentivo ao trabalho.

Tudo isso sem contar os choques tecnológicos. O mundo do trabalho mudou muito nos últimos tempos, e as pessoas parecem inaptas a ele. Precisamos de programas que, em paralelo, façam uma requalificação delas.

·        Como funcionaria essa "premiação" dentro do Bolsa Família? Qual deveria ser o tempo para uma pessoa ficar paralelamente nos dois programas?

Machado - Existem algumas propostas. Nossa ideia é que essa pessoa receba um valor até maior do Bolsa Família no momento inicial [após conseguir um emprego]. Esse montante deve ficar estável até que ela ganhe segurança no trabalho. Então, a partir de certo momento, o valor começa a cair gradualmente, de forma que ela vá se adaptando à nova realidade e progredindo no trabalho.

Essa transição pode durar 24 meses, por exemplo: seis meses com o prêmio e, depois, com uma redução de 5% por mês do Bolsa Família até o processo acabar. Se ela perder o emprego, o benefício volta como era no início.

·        Há um dado muito utilizado que mostra como a taxa de ocupação entre os 10% mais pobres do Brasil caiu (de 49% em 2005 para 25% em 2023, segundo o IBGE). Você tem chamado isso de “nova cara da pobreza brasileira”. O que houve?

Machado - Quando uma família cai em situação de vulnerabilidade, qualquer política de assistência e desenvolvimento social precisa atendê-la, porque não queremos que ninguém passe fome. Então, ela recebe uma primeira assistência e, depois, deveria ser realocada no mercado de trabalho. Se isso tivesse funcionado desse jeito sempre no Brasil, a pobreza não teria mudado de cara. Algo falhou.

No intervalo desse dado, o Bolsa Família, como programa de assistência social, também mudou. No desenho anterior, o benefício era pago per capita, enquanto hoje ele incentiva que as pessoas o declarem erroneamente. É um problema do cadastro e do próprio programa, cujo efeito foi desincentivar quem está nele de procurar trabalho.

Também não houve, nesse período, um programa de reinserção das pessoas que estão no Bolsa Família. É exatamente isso que estamos propondo agora. Por enquanto, o país continua com um programa de transferência de renda que, ao contrário, penaliza o pobre quando ele arruma um trabalho.

Pior do que isso: não o ajuda a se incluir produtivamente enquanto ele está desempregado. Essa perspectiva é clara: vai piorar. Desses dois braços, um não funciona muito bem e o outro está totalmente sem proposta. Não apareceu nada para ocupar o lugar do Brasil Sem Miséria, por exemplo.

·        Mas os pobres de antes, que trabalhavam, mas ganhavam pouco, não fariam parte desse grupo de extrema pobreza agora?

Machado - De fato, tinha muita gente trabalhando e em condição de pobreza considerável.

·        Então, o quanto incluir essas pessoas não seria colocá-las de novo naquele perfil da pobreza anterior, trabalhando e ainda assim, muito pobres?

Machado - É que, no passado, o Bolsa Família entregava um valor de R$ 89. Depois ele foi subindo: primeiro para R$ 104, depois, na pandemia, para R$ 400 e, então, para R$ 600. Agora está do jeito que está. Não significa dar um passo para trás, porque é ótimo que a gente tenha um programa que entrega esse salário reserva [de R$ 600].

Estamos apontando agora para um desenho de transição dele ao mercado de trabalho. Naquele momento, o Bolsa Família era muito pequeno, estávamos tentando ajudar essas pessoas a gerar renda via arranjo produtivo ou inclusão de outro tipo. Hoje, o foco é manter o benefício que elas já possuem e, ao mesmo tempo, entregá-las para uma atividade produtiva.

·        Quem gera vagas de emprego no Brasil costuma reclamar da falta de qualificação da mão de obra. Como convencer estas pessoas a contratar quem hoje, além desse problema, ainda está na pobreza extrema?

Machado - É que elas não deveriam ser convencidas. Precisamos de um programa que coloca as pessoas mais pobres em condição de competir por essas vagas. O setor privado não deveria contratar trabalhadores menos eficientes ou desinteressantes para ele. Não se trata de uma concessão, de uma cota para essa população, mas que ela seja fortalecida em termos da sua capacidade de trabalho.

De um lado, o mercado produz, gera riqueza e abre vagas de emprego e, do outro lado — onde a mão invisível não funciona — tem que ter alguém intermediando as condições de ocupar esses postos de trabalho. É óbvio que, se eles ofertarem um salário pífio, não serão ocupados. Mas aí é outro problema.

·        Quais trabalhos essas pessoas poderiam fazer, levando em conta, ainda, o desafio da qualificação?

Machado - A ideia de um programa de superação de pobreza e de inclusão pela via do trabalho é fazer um casamento entre as vocações das famílias mais pobres com as oportunidades que o território onde elas vivem oferta. Essas vagas não são pré-determinadas.

É aí que está, inclusive, a importância dos agentes de desenvolvimento social no desenho: são pessoas preparadas para conversar com as famílias, explorar as oportunidades de trabalho que elas entendem que cabem a elas, considerando o que elas sabem e gostam de fazer, e fazer esse casamento.

Isso vai dar um monte de possibilidades, porque é comum achar que pobres não têm uma atividade laboral, quando, na verdade, eles têm. Ela só está enfraquecida. Há até alguns exemplos disso no Brasil.

·        Quais?

Machado - Em Minas Gerais, por exemplo, houve um projeto que notou como a maior vontade de um grupo grande de mulheres desempregadas e com filhos era encontrar emprego, mas com alguns requisitos: que fosse próximo de casa, com flexibilidade de horários e sem uma grande demanda física.

Então, descobriram que elas eram boas para trabalhos internos na construção civil, como fazer rejunte, colocar revestimento, instalar piso, essas coisas. O setor topou se adaptar aos horários das escolas dos filhos delas e, então, criou um programa de formação que deu certo: muitas dessas mulheres foram, de fato, trabalhar na construção civil depois.

·        Mas como funcionaria em cidades onde há menos vagas no mercado de trabalho do que a oferta local de mão de obra?

Machado - Esse casamento vai ser fácil em alguns lugares, mas difícil em outros. Alguns lugares não terão oferta de emprego e, neles, será necessário fazer arranjos produtivos locais.

O mel produzido na zona rural do Piauí é um exemplo. O governo resolveu ajudar um conjunto de famílias pobres que produziam mel em uma área rural do Estado fortalecendo suas cadeias produtivas e ofertando meios delas finalizarem o produto.

Daí se estabeleceu um arranjo produtivo por meio de uma cooperativa capaz de fortalecer a marca do mel, certificar a sua qualidade, vendê-lo em locais com mais demanda. No final, ele se valorizou. Hoje, tem uma embalagem, uma marca, um marketing e ele é vendido em locais onde o preço é mais alto.

Veja bem: para aquelas famílias, o ofício é o mesmo, mas, agora, a comercialização está fortalecida. Isso demonstra a importância desse projeto acontecer da família para fora e não o contrário.

Tem ainda o exemplo do Rio Grande do Sul, onde uma série de produtores de azeite entrou em um programa chamado Pró-Oliva — que hoje está até presente na lei gaúcha.

Era um produto comercializado por preços abaixo das marcas comuns do mercado. Daí o governo o colocou para competir no exterior, ganhou um monte de prêmios, e ele começou a ser vendido em uma lojinha em Gramado com o selo dos reconhecimentos. Pronto: aquelas famílias pobres passaram a vender o azeite pelo triplo do preço anterior e saíram da condição de pobreza em que estavam.

Todos esses exemplos são importantes para entender a ideia: as mulheres de Minas precisaram se adequar a um novo ofício, na construção civil, enquanto os produtores pobres que faziam mel no Piauí ou azeite no Rio Grande do Sul mudaram de situação por meio da comercialização do produto deles.

São demandas diferentes, mas que funcionaram. Veja: a lógica do projeto é semelhante à do médico que fala com o paciente, identifica o problema e monta um tratamento individual para ele.

·        Mas nem todas essas pessoas estão produzindo algo. Além disso, há uma série de críticas à ideia do empreendedorismo. Como vocês observam isso dentro desse escopo?

Machado - Nesses exemplos que dei, ofertar cursos de empreendedorismo — o que é muito comum, aliás — não iria resolver o problema. É entender que empreender é uma ótima ideia, mas que não serve para todos.

Isso reforça como tudo começa identificando a vocação das famílias e fazendo o casamento dela com o território, que também tem suas vocações. Se acontecer, ótimo.

Não dá para achar que existe um único remédio para todas as doenças — neste caso, que todos os pobres nessa situação querem só empreender. É um canal que precisa estar aberto e, que, para mim, parece até atrativo.

Tem dados qualitativos que mostram até uma empolgação das famílias com o empreendedorismo, apesar de certo medo com a aposentadoria.

·        Como lidar com a possibilidade do emprego que surgir desse casamento entre vocações terminar colocando a pessoa em uma situação de precariedade?

Machado - Temos legislações e órgãos de controle que acompanham isso. Mas, se a gente olhar, essa não é uma realidade apenas dos 10% mais pobres, mas de 40% da força de trabalho que está no mercado informal. Todas essas pessoas estão mais suscetíveis a serem precarizadas do que os trabalhadores formais.

Claro que seria preciso um esforço ainda maior para checar as situações às quais as pessoas do projeto estariam sujeitas depois de empregadas, mas há uma série de normas, canais de denúncia, um sistema judiciário com condições de averiguar, ainda que não com tanta rapidez.

Sem contar, novamente, a importância do agente de desenvolvimento social em entender a vocação da família, ajudá-la a se alocar no mercado e fazer uma boa intermediação daquela mão de obra, para que aquelas pessoas acessem os setores produtivos de forma digna.

·        E o desafio da rotatividade? O mercado de trabalho brasileiro, principalmente empregos de salários mais baixos, tem uma alta circulação de trabalhadores pelas vagas. Como seria no caso dos mais pobres?

Machado - Há algum tempo, em uma conversa com o Martín Burt [presidente da Fundación Paraguaya], que foi prefeito de Assunção, no Paraguai, ele me disse algo que não esqueci: qualquer programa de superação de pobreza não vai resolver todos os problemas das pessoas mais pobres, mas vai tirá-las daquela situação e jogá-las no mundo dos problemas comuns das “classes médias”.

Esse é um bom exemplo: a rotatividade também é um desafio que assola toda a força de trabalho brasileira. Uma vez incluídas em um mundo onde têm renda, essas pessoas ainda estarão sujeitas a problemas de todos nós — baixas atualizações salariais, alta rotatividade, a possibilidade de ser demitido e ter que encontrar outra vaga, etc. Tudo como parte de um mundo novo. Elas vão precisar ser acompanhadas e orientadas para lidar com questões com essas.

Em um momento de crescimento econômico como o de agora, o fundamental é que a intermediação de mão de obra seja bem realizada, um prestador de serviço fortalecido que conheça as vagas existentes no lugar, saiba quem está buscando por trabalho e consiga fazer esse match acontecer.

·        É que, no caso desses mais pobres, se eles perdem o trabalho, voltam para aquela condição de pobreza extrema de antes. Podem até ficar sem o Bolsa Família.

Machado - Isso pode acontecer com todo mundo. Você está trabalhando, daí perde o emprego e cai em uma situação extrema. Precisa se adequar e voltar [ao mercado de trabalho]. A pobreza é cíclica: ela roda, troca de lugar, novos bolsões nascem, outros terminam... É difícil que isso seja absolutamente erradicado.

Qualquer política de superação da pobreza deve ficar monitorando, readequando, reinserindo constantemente as pessoas. Não se trata de uma política de desenvolvimento econômico, que faz o país crescer e produzir, mas de um serviço que acopla os mais pobres de volta ao mercado de trabalho. Essa dinâmica precisa ser permanente.

·        Pensando ainda no contexto de informalidade, dá para saber que atividade laboral essas pessoas têm hoje?

Machado - Se uma pessoa no Bolsa Família tem atividade com renda acima da linha do programa, perde o benefício. Então, não dá para saber. Pode ser que a maioria delas não esteja trabalhando absolutamente ou que parte delas esteja fazendo algo não declarado. Provavelmente as duas coisas estejam acontecendo, mas não sabemos o tamanho disso.

·        É difícil mapear?

Machado - É que o “imposto” que existe para a família que declara corretamente é muito alto. Em vez de premiar as pessoas porque elas conseguiram um emprego, o país apenas retira o recurso.

·        O que falta para essa ideia sair do papel?

Machado - Ela precisa ser uma política pública sem necessariamente ter execução governamental. É curioso que a gente já tenha tido algo assim: o Brasil Sem Miséria, criado no governo da presidente Dilma Rousseff. Ela quis, desenhou, escreveu, tem um livro enorme já pronto. É só pegá-lo, atualizá-lo — porque o mundo mudou de lá para cá — e fazê-lo funcionar outra vez. Precisa decidir fazer.

·        E por que o Brasil Sem Miséria não deu certo?

Machado - O desenho dele era muito bom, mas sumiu do mapa em 2016, depois que a Dilma deixou o cargo. Não sabemos muito bem o motivo — e tampouco porque ele não volta. Eu realmente não sei por que esse governo não faz, já que foi do [partido do] presidente atual que saiu o programa.

·        Se não é uma execução governamental, quem poderia fazê-lo acontecer?

Machado - No nosso desenho, o agente de desenvolvimento da família chegaria com a demanda da mesma forma que o médico: “o diagnóstico é esse e o paciente precisa disso”. Aí precisaríamos de um "hospital" para atendê-las. Ali estaria a intermediação da mão de obra, em que o setor privado atua melhor do que o Estado. Precisaríamos de programas de qualificação profissional que, da mesma forma, o mercado privado tem melhores.

Vamos precisar também de um sistema de saúde — e daí já temos o SUS. Temos ainda a necessidade de educação técnica, que o Centro Paula Souza, em São Paulo, oferece, por exemplo. Seria um portfólio com todos os motivos pelos quais aquelas famílias estão excluídas do mercado. Comercialização, intermediação de mão de obra, problemas de saúde, qualificação profissional, creche para quem tem filhos...

Enfim, é tarefa para todo mundo. É por isso que se trata de um grande programa de articulação de políticas que, aí sim, deve ser feito pelo poder público. Mas ele não precisa executar. Tem coisas que o setor privado é mais ágil.

·        Você apontava alguns problemas no Bolsa Família. Quais ajustes precisam ser feitos no programa?

Machado - O Bolsa Família é o responsável pelas grandes reduções de pobreza do país. É a coroa brasileira, nosso maior instrumento de política social, mas que não pode ser blindado de mudanças necessárias. O desenho per capita do benefício, por exemplo, era infinitamente melhor, porque incentivava as famílias a declararem sua renda corretamente.

Sem contar que, do jeito que está, por exemplo, um casal sem filhos tem uma renda per capita de R$ 300, enquanto quem tem um único filho possui renda per capita menor, de R$ 250. Isso é injusto. Não tem nenhum benefício para a primeira infância. Pior ainda: se o casal sem filhos se declarar como casal, ganhará o valor de R$ 600, mas, se cada um se declarar sozinho — e dá para fazer isso —, então cada adulto receberá R$ 600.

·        Dobra o valor dentro da mesma casa. Isso está acontecendo?

Machado - Sim. Antes o beneficiário declarava a sua família e o programa dividia o número de membros dela pelo valor transferido. Um casal, por exemplo, recebia duas vezes o valor dessa divisão. Se fosse uma pessoa só, receberia o montante individual a partir desse mesmo cálculo.

Ou seja: dava na mesma se declarar como família ou individualmente. As pessoas, então, declaravam corretamente. Hoje o Bolsa Família incentiva que se declare errado — e, como é consenso na economia, as pessoas respondem a incentivos.

É por isso que o desenho do programa precisa voltar a ser per capita. Se a declaração está errada, então, todas as tarifas sociais embutidas no Cadastro Único, o [programa] Pé-de-Meia, o Minha Casa, Minha Vida, tudo também está errado. Nós gostaríamos mesmo que o Bolsa Família fosse grande, que a rede de proteção dele fosse alta. Isso não é ruim. Ele só precisa voltar a ser per capita e ter um desenho de transição que incentive as pessoas a trabalharem.

·        Sem uma inclusão produtiva efetiva e com esses problemas atuais do Bolsa Família, o que pode se esperar do futuro?

Machado - Nesses últimos 20 anos,aconteceram duas coisas importantes de observar. Uma é que a população mais pobre foi totalmente excluída do mercado de trabalho. A outra é que, em paralelo, cresceu a discussão sobre a primeira infância, e mais especificamente sobre como cuidar dos filhos dessas famílias em situação vulnerável. Isso não existia antes.

A nossa perspectiva é que, se os programas de primeira infância funcionarem bem agora, as crianças terão um futuro. Os pais nós não sabemos, porque é difícil cuidar de uma criança com os cuidadores em desalento, mas já será uma criação diferente daquela do passado.

Eu costumo ser otimista. Acho que é só a gente decidir fazer que, então, engatamos as coisas e revertemos a situação atual. Por ora, infelizmente, ainda não aconteceu.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

Paulo Cesar Arantes: ‘Esquerda precisa de um novo marketing’

Christopher Wylie é o nome do jovem que denunciou ao mundo o que faziam no escurinho Cambridge Analytica e Facebook, que resultou no escândalo envolvendo as duas companhias em 2018. Wylie era funcionário da SCL, grupo controlador da Cambridge, e a justificativa para rebelar-se foi uma profunda indignação ética. Eis um breve apanhado de suas declarações: “O Facebook tem tanto poder, que está fazendo um clone digital da nossa sociedade. (...) O que é que vai acontecer quando os sistemas de inteligência artificial começarem a se comunicar entre si? Isto é uma história de colonialismo. (...) Os nossos governos não estão preparados para lidar com isso”.

Hoje sabe-se que a Cambridge não “roubou” dados de ninguém, as informações estavam lá para quem soubesse utilizá-las – e a companhia britânica sabia, foi o que Wylie tentou explicar. Na prática, a Cambridge Analytica praticava algo denominado “narrativa cultural”.

Quando se leem dados, a priori, não se sabe o que fazer com eles. O que fazer, em termos de marketing, quando se têm em mãos os dados dos torcedores do Corinthians e do São Paulo, para ficarmos em dois exemplos populares?

Os torcedores do Corinthians constituem um arquétipo social diferente daquele dos torcedores do São Paulo – isso é visível, portanto corintianos não podem ser submetidos à mesma forma de abordagem que são-paulinos, não se sensibilizam com os mesmos temas e apelos. Na mesma linha, a Cambridge descobriu que os seguidores de Madona são muito distintos dos seguidores de Lady Gaga, possuem preferências e atitudes diferentes.

Fala-se muito - ao meu ver de modo superficial e cheio de “chutes” - da necessidade de os partidos de esquerda se “reinventarem”. Na verdade, os poucos avanços sociais no Brasil são fruto de ideais da esquerda. Talvez a esfera progressista precise apenas de um impulso tecnológico no marketing que exerce.

A partir dos bancos de dados, hoje, chega-se a interpretações das narrativas culturais de grupos específicos e, então, “conversa-se” com eles. Christopher Wylie ficou assustado com isso. Note-se o potencial de direcionamento específico dos discursos: de posse do banco de dados do Poupatempo, pode-se desenvolver uma narrativa cultural. Com o do Itaú, outra.

O principal dilema atual do marketing político é justamente a interpretação de dados (os legalmente disponíveis, claro está), para o que ainda não existe consenso científico. Uma novidade chamada microtargeting, criada pelo grande publicitário e figura humana André Torreta, que morreu de Covid, falava de algo semelhante à narrativa cultural, mas com uma diferença seminal: o microtargeting restringe-se a delimitações geográficas, já a narrativa cultural abraça quaisquer aspectos de grupos específicos, sejam eles econômicos, sociais ou comportamentais.

A complexidade da narrativa cultural reside em tecer uma teia e montar uma radiografia do imaginário de um grupo de pessoas em determinado momento. As campanhas eleitorais no Brasil, em regra, passam longe isso. Ninguém está fazendo nada de novo por aqui. O candidato está empenhado em disparar mensagens de Whatsapp, algo extremamente primário.

 

•        O poder da máquina pública e o entendimento do cotidiano do povo. Por Alberto Cantalice

Reduzir os resultados das disputas municipais de 2024 a uma polarização tal qual a ocorrida nas eleições de 2022, além de demonstrar um descolamento do dia a dia da população, remete a uma espécie de sociologismo de botequim. Onde tudo se fala e se discute sem maiores consequências.

Para começar, temos que reconhecer que o voto para vereador ou vereadora fora dos grandes centros é um voto “pessoalizado”.

Nos grandes conglomerados urbanos, a questão do bairro e das comunidades pesam efetivamente: as pequenas melhorias, o empreguismo e o peso do dinheiro para a contratação de milhares de cabos eleitorais ao arrepio da legislação. O voto de opinião existe. Cada vez mais motivados por pautas de identidade e pela rejeição delas – vide a eleição de influencers da esquerda e da direita.

Para as prefeituras não foi muito diferente: apesar do voto não ser pessoalizado ou partidarizado (em sua imensa maioria), pesou a realização de feitos administrativos, muitos deles levados pelas Emendas PIX do Orçamento Secreto.

Apostar na polarização não deu o resultado esperado, dado que os grandes vencedores do pleito são partidos vinculados ao Centro: uns mais próximos da base de sustentação de Lula e outros, na oposição.

É ilusório e irresponsável avaliar esse pleito como vitória ou derrota para o PT e os partidos da esquerda e centro esquerda. A musculatura da disputa de 2026 passa por uma série de outras variáveis.

Existe a possibilidade de se consolidar um bloco político democrático, que ao passo que garanta o funcionamento das instituições, atue no sentido do crescimento econômico, da melhoria das políticas públicas e da distribuição de renda?

No meu entendimento, sim.  

Além disso, precisamos estar conectados ao cotidiano das pessoas. Medir o pulso das necessidades e anseios da população. E isso não é novo. No início da década, o filósofo e crítico marxista Georg Lukács, avaliava que um dos grandes erros da burocratização do socialismo real, era a não investigação do que ele chamou de cotidianidade das pessoas.

Hoje em dia, há várias formas de acompanhar os sentimentos e os anseios da população. Além das ruas, dos bairros e das redes.

 

•        Negacionismo eleitoral. Por Jeferson Miola

O negacionismo eleitoral é um mal que parece afligir variados segmentos ideológicos. Não faltam aqueles de esquerda que resistem a encarar a dura realidade mostrada pelas urnas na eleição municipal deste ano.

Atacam e questionam a priori todas análises que não sejam pelo menos otimistas sobre os resultados eleitorais para as esquerdas.

Pode ser uma escolha cômoda –e ilusória– para apaziguar a alma, mas é uma postura que não resolve o problema essencial, que é o revés estrondoso das esquerdas na eleição e o avanço das direitas e do extremismo no país.

Os negacionistas contestam especialmente três realidades.

A primeira delas, de que o campo da direita e extrema-direita não foi o vitorioso na eleição. Para isso, sustentam que a direita não é direita, porque, na visão deles, é centro –ou centrão–, e, além disso, que tais forças “centristas” integram o governo Lula. Logo, entendem que a base do governo teria sido a grande vitoriosa.

É fato que nos partidos de direita que integram o governo, como PSD, MDB e Republicanos, para citar alguns, existem políticos que apoiam Lula hoje e tendem a apoiá-lo na reeleição em 2026. Não se pode desprezar, contudo, a heterogeneidade de tais agremiações, que congregam nas suas fileiras tanto políticos democratas como extremistas, quando não fascistas e, sobretudo, ultraliberais antipetistas.

Não seria ilusório, neste sentido, contabilizar Ricardo Nunes e Sebastião Melo, do MDB; Topázio Neto em Florianópolis e Eduardo Pimentel em Curitiba, todos com vices do PL e atávicos antipetistas, como integrantes do campo de sustentação do governo Lula e apoiadores da sua reeleição?

Mesmo Gilberto Kassab assumindo que vai estar “alinhado com o projeto que seja compatível com o projeto do Tarcísio, seja ele governador ou presidente” [8/10], há quem acredite que esta direita seja confiável e esteja, de fato, com Lula.

Tarcísio, como se sabe, é o bolsonarista e extremista com tintas artificiais de moderado que no dia da votação criminosamente ligou o modo Pablo Marçal para atacar Boulos.

Os negacionistas alegam que a extrema-direita foi grandemente derrotada, mesmo depois das vitórias do Tarcísio no estado de São Paulo e de outras vitórias de extremistas país afora. Justificam esta visão porque entendem que a extrema-direita se restringe ao PL, partido de Bolsonaro, quando se sabe que outras siglas, como União Brasil, Novo, Podemos, Republicanos, PP e até MDB e PSD, também albergam extremistas e são movidas pelo ódio antipetista.

O negacionismo contesta, também, que o PT tenha sido derrotado. Afinal, cresceu o número de prefeituras que o Partido administrará a partir de 1º de janeiro de 2025, o que de fato aconteceu.

Ocorre, no entanto, que enquanto as direitas e os extremismos abocanharam os grandes centros urbanos do país e governarão mais de 160 milhões de pessoas, a quase totalidade das prefeituras conquistadas pelo PT [92%] são de municípios com até 20 mil habitantes [75%] e entre 20 mil e 50 mil habitantes [17%].

Ou seja, enquanto o PT e as esquerdas se localizam preponderantemente nas menores cidades, as direitas e as extremas-direitas controlarão os centros urbanos mais densos e com maior poder de propagação da disputa pela hegemonia política, cultural e ideológica.

O negacionismo eleitoral sustenta, ainda, que as emendas do orçamento secreto, mais que outros determinantes, foram o fator central para o crescimento do campo conservador e reacionário. Por este raciocínio, as emendas parlamentares teriam vencido a eleição, mas não foi o PT e as esquerdas que perderam.

É consenso o peso das emendas parlamentares no clientelismo paroquial, mas este aspecto não é suficiente para sustentar esta terceira realidade questionada pelo negacionismo.

Considerando o valor total das emendas individuais que irrigaram as paróquias eleitorais de 2021 a outubro deste ano, os parlamentares do PT ficaram com o terceiro maior quinhão de emendas, R$ 6,2 bilhões de reais, logo abaixo apenas do União Brasil, com R$ 7 bilhões, e do PL, com R$ 6,5 bi, e acima das demais siglas, inclusive o PSD, MDB e PP, que conquistaram muito mais prefeituras e elegeram muito mais vereadores.

O reconhecimento da derrota eleitoral não é nenhum demérito para as esquerdas e, menos ainda, expressão de derrotismo ou catastrofismo, mas um ponto de partida essencial para que o governo, os partidos de esquerda e progressistas possam encontrar respostas adequadas à realidade complexa que se apresenta e que alerta para o risco da reeleição do Lula em 2026.

Rechaçar a realidade tal como se apresenta porque não se gosta dela ou simplesmente porque ela é desfavorável não resolve os problemas, e só nos encaminha para novos reveses.

Há muito a ser feito para se reverter este cenário adverso. E há tempo suficiente para isso, desde, no entanto, que se tenha como ponto de partida a realidade concreta, nua e crua, não nossos desejos ou nossas vontades idealizadas.

 

Fonte: Brasil 247

 

Pacientes têm direito ao relatório psicológico em casos de violência doméstica

As violências vividas pela psicóloga Nádia Bisch*, de 36 anos, pela advogada Rosa, de 35 anos, e por mais de 70 mil brasileiras diversas (em 2023) estão descritas na Lei Maria da Penha. Elas passaram por ameaças, constrangimentos, humilhações, manipulações, isolamento, vigilância constante, perseguições, insultos, chantagens, violações da intimidade, ridicularizações, explorações e limitações do direito de ir e vir.  

Quando encontram forças para denunciar, as vítimas de violência precisam compartilhar dores e intimidades com profissionais de saúde e de segurança. Tecnicamente preparados e baseados no compromisso ético de ajudar a pôr fim no ciclo de violência, esses profissionais se transformam em peças decisivas. O contrário, infelizmente, também é verdadeiro. A depender da qualidade ou omissões ao longo da oferta dos serviços, o resultado pode ser o prolongamento da vítima no ciclo de dor.

Esta reportagem explora as dificuldades enfrentadas por mulheres vítimas de violência doméstica a partir do momento em que decidiram utilizar a seu favor os diagnósticos psicológicos já identificados ao longo de suas sessões de terapia. Apesar de o relatório ser um direito da vítima submetida ao acompanhamento terapêutico, alguns profissionais se negam a emiti-lo, seja por desconhecer o direito da paciente ou por uma interpretação limitada do chamado ‘sigilo profissional’.

COMO SE PROVA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA?

Nádia viveu um relacionamento abusivo, foi vítima de tentativa de feminicídio e de situações vexatórias com a polícia e as equipes de saúde – e ainda coube a ela reunir provas. Para a violência física, ela tinha marcas, fotos e exames, mas como demonstrar a violência psicológica?

Na tentativa de provar as violências não visíveis, Nádia recorreu à profissional que, desde o princípio, a ajudou a identificar agressões. Pediu para a sua psicóloga escrever um relatório com avaliações clínicas sobre seu estado psicológico durante o relacionamento. O intuito era juntar o documento ao processo e somar à denúncia.

A profissional recebeu o pedido com medo e apreensão, e disse que buscaria orientação. A psicóloga informou ainda que teria sido instruída a ser ‘imparcial’. “Ela não poderia dar informações específicas ou afirmar que eu sofria violência porque não ouviu o lado do meu agressor”, conta Nádia.

Nádia começou a terapia em 2018, após a primeira agressão do parceiro, Thiago. “O ciclo era muito rápido: ele prometia, se arrependia e eu acreditava, até que eu já não me reconhecia mais.” O relacionamento chegou ao fim em 2019, quando ela pediu uma medida protetiva de urgência. Em novembro, Thiago foi preso durante a Operação Marias, de combate a crimes de violência doméstica, no Rio Grande do Sul, mas ficou só um dia em cárcere.

Na semana seguinte, ele tentou matar Nádia.  Ela foi a uma festa, com uma amiga, e ele fez uma emboscada. Apareceu na frente da casa dela e a prendeu no carro. “Eu lutei durante uma hora, mais ou menos, até um rapaz ver as minhas pernas para fora do veículo e me ajudar”, relembra.

Após o crime, a Polícia Militar encaminhou Nádia ao hospital. Ela estava cuspindo sangue, porque foi asfixiada, e com fratura nos joelhos, mas saiu do consultório com uma receita de dipirona. Acompanhada de dois militares homens e um escrivão pouco receptivo, Nádia afirmou que só daria seu relato em uma Delegacia Especializada de Atendimento à  Mulher. A investida violenta do ex-companheiro foi registrada como tentativa de feminicídio.

Nádia postou nas redes sociais e, em seguida, mais de 20 mulheres a procuraram dizendo já terem sofrido violências do mesmo homem, que foi preso em fevereiro de 2020. Em agosto último (2024), ele foi condenado a 13 anos de prisão pela tentativa de feminicídio contra Nádia.

O relato de uma vítima de violência doméstica tem valor probatório em processos judiciais, isso significa que é relevante e tem capacidade de influenciar a decisão do juiz. Na prática, muitas vezes, não é isso que ocorre. Após denunciar, cabe à mulher provar que está dizendo a verdade. Nisso, o relatório psicológico pode ser um grande aliado para reiterar a denúncia.

“Instrumentos como relatórios e laudos têm papel crucial na concretização de elementos que, por vezes, não são visíveis, mas que não deixam de caracterizar uma violência, como a psicológica, que, por apresentar aspectos de caráter subjetivo, é constantemente negligenciada”, diz Thalita Queiroz, analista da Provisão de Serviços no Mapa do Acolhimento, uma organização com advogadas e psicólogas voluntárias que ajudam mulheres sobreviventes de violência.

Segundo a conselheira Clarissa Guedes, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), “uma pessoa que realiza acompanhamento psicológico pode, sempre que quiser, solicitar à psicóloga relatório dos atendimentos realizados”. Este documento é obrigação do profissional e um direito do paciente. “Quando a profissional se nega a emitir um documento, que é seu dever, ela está incorrendo em uma falta ética”, complementa.

Seja em caso de violência doméstica, ou não, a obtenção do relatório terapêutico está garantido no Código de Ética da Psicologia. “Os envolvidos no processo possuem o direito de receber informações sobre os objetivos e resultados do serviço prestado”, diz o código.

Todas as formas de violências cresceram no Brasil no último ano, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024. A violência psicológica, em especial, teve um salto de 33,8% em 2023. Acrescentada à Lei Maria da Penha em 2021, esse tipo de violência se estabelece em uma relação de poder desigual, “que aparece de forma sútil e difícil de detectar”, explica Darlane Andrade, psicóloga, docente no Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do Neim (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher).

Quando fraturamos um osso do pé, somos encaminhados ao médico ortopedista. Quando sentimos incômodo nos olhos, ao oftalmologista. Agora, se apresentamos adoecimento psíquico, o psicólogo é o profissional capaz de utilizar métodos e técnicas para realizar o diagnóstico psicológico.

Dificilmente um relacionamento abusivo não causará danos psicológicos. Não à toa, a psicologia-clínica, ou terapia, é um recurso amplamente indicado para auxiliar mulheres a identificar, lidar e romper ciclos violentos. É preciso haver confiança entre psicólogo e paciente. “A violência psicológica não vai deixar marcas no corpo, mas acontece de modo sobreposto, acompanhada da violência moral, patrimonial, até chegar na física e, no ápice, ao feminicídio”, aponta Darlane.

A advogada Rosa, que citamos no início desta reportagem, buscou terapia após ser acusada de alienação parental pelo ex-companheiro. “Procurei uma psicóloga achando que eu era, realmente, uma alienadora. Acreditando em tudo que o discurso e violência processual me fez acreditar”. Ela e o ex-parceiro se conheciam havia pouco tempo. Quando chegou a notícia da gravidez, Rosa sugeriu que ele mudasse para o apartamento dela.

Com o passar dos dias, Rosa foi vítima de inúmeras violências. “Percebi que precisava terminar ao fugir dele dentro da minha própria casa. Daí até o término, foi um grande processo de fortalecimento com a terapia”, relembra. Rosa também foi vítima de violência física.

Mesmo após o fim do relacionamento, Rosa acreditava que seria possível estabelecer uma relação de parceria com o pai da filha. Tudo mudou quando ele tentou jogar uma chaleira de água quente nela. Depois disso, o agressor fugiu levando as chaves. “Tive que substituir as fechaduras da minha porta, mas não tinha como trocar as das áreas sociais do prédio. Várias vezes eu saía e ele estava do lado de fora parado.” Rosa sentia muito medo de transitar no prédio e no bairro. Então, pediu uma medida protetiva.

Dias após ser notificado pela Justiça, o agressor acusou Rosa de alienação parental. Orientada pela advogada, ela recorreu à sua rede de apoio, a fim de provar que foi vítima de violência doméstica e que temia pela sua vida e da filha. Pediu à sua psicóloga, que a acompanhava há anos, para escrever um relatório psicológico.

“Foi tudo muito difícil. A minha psicóloga ficou com medo. Eu realmente esperava que ela me desse aquela força do ‘vamos juntas’.” Rosa conta que precisou insistir várias vezes com a profissional e usar o espaço da consulta para construir o documento em conjunto. “Eu só precisava que ela explicasse como eu reagia psicologicamente àquele relacionamento e como aquilo me afetava.”

Rosa acumulava boletins de ocorrência e medidas protetivas arquivadas por falta de provas. Após o relatório psicológico anexado ao processo, uma ação penal contra o agressor foi finalmente iniciada.

NÃO HÁ QUEBRA DE SIGILO NESSES CASOS

Uma usuária do PenhaS – aplicativo de informação e acolhimento a vítimas de violência, do Instituto AzMina – relatou ter constatado ao longo das sessões de terapia que havia sido vítima de violência psicológica enquanto esteve casada. A defesa da usuária em processo baseado na Lei Maria da Penha pediu para a profissional um relatório contendo o diagnóstico A profissional negou sob a alegação de quebra de sigilo profissional.

“O sigilo é quebrado quando você expõe situações íntimas da paciente. Para produzir um relatório você pode contar os métodos utilizados em sessão sem fazer nenhuma exposição”, esclarece Clarissa, conselheira do CFP.

Além disso, existem diferenças técnicas entre um psicólogo clínico e um perito. O primeiro acompanha a vítima e, eventualmente, se solicitado, pode elaborar um relatório sobre as demandas trabalhadas em clínica. Já o perito, ou assistente técnico, atua em processos judiciais emitindo laudos psicológicos para auxiliar a justiça a tomar decisões. Ele é contratado para essa finalidade e não conhece os envolvidos.

RELATÓRIO DEVE DESCREVER DEMANDAS, SINAIS E SINTOMAS

Uma psicóloga clínica tem condições técnicas de identificar que uma pessoa atendida está em situação de violência. Clarissa explica que, ao produzir um relatório psicológico, a profissional pode descrever as demandas trabalhadas no processo terapêutico, os sinais e sintomas identificados, tendo em mente que o documento emitido deve possuir fundamentação técnica e científica e ser coerente à natureza do trabalho desenvolvido.

“A psicóloga só pode se referir às questões da pessoa atendida, devendo evitar conclusões taxativas sobre o suposto autor da violência, considerando que seu trabalho é clínico e não de perícia”, informa Clarissa, representante do CFP.

As mulheres podem, inclusive, procurar os conselhos regionais de psicologia (CRP) em suas cidades para buscar ajuda e tirar dúvidas. O CFP estabeleceu em 2020 normas de exercício profissional da psicologia em relação às violências de gênero e possui uma resolução com orientações para elaboração de documentos escritos produzidos pela psicóloga.

O Conselho Federal e os Regionais espalhados pelo Brasil são entidades fundamentais na criação de diretrizes para um atendimento humanizado com mulheres vítimas de violência doméstica, além de possuírem canais importantes para orientação e denúncia de má atuação profissional.

É tarefa da psicologia (e seus profissionais) identificar a violência psicológica, ler o fenômeno do adoecimento psíquico, inclusive, como consequência da violência doméstica. “Se não fazemos isso, estaremos cometendo também uma violência institucional, colaborando para a situação violenta continuar na vida da mulher”, conclui Darlane, pesquisadora do Neim/UFBA. 

 

Fonte: AzMina