Os juízes que estão se demitindo para virar
influenciadores, ter liberdade e ganhar mais dinheiro
A remuneração bem
acima da média nacional e a estabilidade no emprego fazem com que muitos sonhem
com a carreira de juiz de Direito no Brasil.
Os concursos são
disputados e exigem muitas vezes anos de dedicação para uma aprovação.
Pode parecer
improvável, então, que alguém abra mão da magistratura, mas é o que têm feito
alguns juízes graças a novas oportunidades criadas pelas redes sociais.
Há vários relatos na
internet de quem decidiu deixar os tribunais para investir em seus perfis nas
redes e se dedicar exclusivamente à carreira de influenciador.
Também oferecem desde
serviços de advocacia, mentorias para concursos a atividades que não têm a ver
com o mundo jurídico.
Poucos acumulam tanta
influência nas redes sociais quanto o ex-juiz Samer Agi, de 35 anos, que se
demitiu do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em
2022.
Ele tem hoje 2 milhões
de seguidores no Instagram e 111 mil assinantes em seu canal no YouTube, onde
fala de vários assuntos, de relacionamentos a finanças pessoais.
Agi conta à BBC News
Brasil que decidiu trocar de carreira porque queria mais "liberdade, tempo
e possibilidade de crescimento".
Além disso, com as
redes sociais, "as ideias de uma pessoa são compartilhadas por milhares ou
milhões de pessoas que se identificam com sua visão de mundo", diz ele.
"Seu conhecimento
pode ser disseminado não apenas a uma classe de 50 ou 100 pessoas, mas a um
auditório online de 10 ou 20 mil."
A popularização e
multiplicação das redes criou essa chance para quem domina o saber jurídico de
tentar uma nova profissão e até mesmo com a perspectiva de ganhar mais.
"Sem as redes
sociais, os juízes que saíram da magistratura nunca teriam feito isso",
diz Agi.
"A remuneração
fora da magistratura tem que ser superior. Caso contrário, o sujeito
continuaria juiz."
• 'Postura empreendedora'
Erik Navarro Wolkart
foi juiz federal por 19 anos. Após pedir exoneração, ele fez uma transmissão ao
vivo em meados de julho em que explicou por que deixou os tribunais.
Ele contou que sua
função limitava o que ele podia falar em público e, além disso, queria dar
vazão à sua "postura empreendedora".
O ex-juiz de 46 anos
oferece para seus quase 90 mil seguidores no Instagram um curso em que ele
promete ensinar como "acelerar a tramitação dos processos, multiplicar a
taxa de efetividade dos pedidos e se destacar na advocacia contenciosa".
Esse é um caminho
comum para os ex-juízes, que oferecem cursos preparatórios para concursos para
milhares de seguidores nas redes.
Não falta demanda por
esse tipo de serviço. O Brasil tem o maior número de advogados por habitante do
mundo.
Há um profissional da
advocacia para cada 164 brasileiros, enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo,
há um para cada 253.
Todos os anos, cerca
de 120 mil pessoas fazem a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para
exercer a advocacia.
Jaylton Lopes Júnior,
ex- juiz do TJDFT, vende aulas de Direito sucessório para seus 150 mil
seguidores.
Ele pediu demissão no
início de agosto, depois de oito anos no cargo, para se dedicar à
"docência, bem como à consultoria jurídica e à advocacia".
Também em agosto, José
André Neto anunciou para os seus 450 mil seguidores no Instagram que estava
deixando o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) após 21 anos para
trabalhar exclusivamente como professor, "sem amarras e sem restrição".
• Conflito de interesses
Quem trabalha como
juiz tem algumas restrições para tentar ganhar a vida como influenciador
paralelamente.
Em 2016, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) proibiu magistrados de oferecerem serviços de coach e
similares, voltados à preparação de candidatos para concursos públicos.
O juiz Senivaldo dos
Reis Júnior chegou a ser exonerado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP)
por ter trabalhado como coach em 2020. À época, Reis Júnior estava no chamado
estágio probatório, o que não oferece todas as garantias comuns a alguém já consolidado
no cargo.
Após a decisão, ele
acionou o CNJ alegando que a pena de demissão era "irrazoável e
desproporcional". Dois anos depois, o plenário do CNJ decidiu
reintegrá-lo.
O relator do caso
disse que as atividades do juiz na internet, como vendas de material e
apostilas, extrapolavam as funções da docência.
Mas ele considerou que
a demissão foi uma punição excessiva. O TJ-SP recorreu ao Supremo Tribunal
Federal, que manteve a decisão do CNJ.
Reis Júnior foi
procurado pela BBC News Brasil, mas não respondeu.
Neste ano, a
Corregedoria Nacional de Justiça, instância vinculada ao CNJ, determinou a
suspensão dos perfis das redes sociais do juiz Navarro Wolkart, do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região (TRF-2).
A Corregedoria disse
que estava avaliando sua suposta atuação como coach nas redes. Seguindo o
movimento do mercado, o juiz pediu exoneração do cargo.
Na ocasião, ele
afirmou que não seria coach ou mentor, e disse em seu Instagram que não tratava
de casos pendentes. "Meu método aborda a prática processual pela ótica das
neurociências", apontou.
Wolkart não respondeu
à tentativa de contato da BBC News Brasil.
Os pedidos de
exoneração de juízes já causam preocupação.
Questionada sobre os
pedidos de exoneração dos ex-juízes que apostam na carreira de influencers, a
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) afirmou à BBC News Brasil que há
um processo de "perda de quadros" que foi "agravado nos últimos
anos pela desvalorização da carreira".
"Ao perceberem a
possibilidade de maiores ganhos no setor privado, muitos profissionais deixam o
cargo público com o intuito de obter melhores condições de vida para si e suas
famílias – uma escolha difícil, que, infelizmente, tem sido muito frequente",
disse a AMB em nota.
"Se não houver
uma reestruturação que promova a valorização por tempo na magistratura é
provável que o cenário de evasão se acentue."
De acordo com a
instituição, há ainda "um grave quadro de insegurança" no meio.
"Metade dos
juízes no Brasil vive ou já viveu situação de ameaça à vida ou à integridade
física, com abalos profundos na saúde do magistrado e de sua família."
• 'Outros valores'
Juliana Oki, de 37
anos, destoa nas redes sociais da maioria dos outros juízes que pediram
exoneração recentemente.
Após nove anos no
Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5), ela decidiu deixar a
magistratura para ser psicoterapeuta em tempo integral.
Oki decidiu fazer isso
mesmo sem ter muitos seguidores. Quase um mês depois, o número quase
quadruplicou.
"Criei o meu
perfil no Instagram, como forma de compartilhar os conhecimentos que estava
adquirindo na minha jornada de formação", disse à BBC News Brasil.
"Me dei conta de
que, embora fosse uma juíza comprometida e produtiva, eu não era feliz. Meu
fazer estava descompassado com meu sentir."
Ela diz que a maior
dificuldade foi bancar a decisão de que faria "algo que soa reprovável a
um primeiro olhar".
"Nossa profissão
é, na nossa sociedade, um aspecto identitário. Então, uma exoneração, ainda que
planejada e desejada, é uma ruptura com uma parte de si –um luto, com perdas
simbólicas e concretas."
Oki vê com alguma
naturalidade que profissionais busquem mais flexibilidade nas carreiras
atualmente.
Ela diz que ser juiz
continua sendo valorizado socialmente, mas acredita que cada vez mais outros
valores são levados em conta nas escolhas profissionais – como realização
pessoal e estilo de vida que se deseja ter.
"O ser humano tem
potencias múltiplos. Está tudo bem redefinir objetivos, recalcular rotas."
Fonte: BBC News Brasil
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