TOTALITARISMO DE MERCADO: O estado de exceção climático permanente
A crise instalada em
termos ambientais e climáticos no Brasil é efeito sintomático de políticas
econômicas e de um Estado concebido para ser “forte” na proteção de uma ideia específica
de mercado, e débil nos compromissos sociais, ambientais e de interesse geral.
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O Estado forte e a
Constituição domesticada
A lógica do
neoliberalismo produziu um Estado apto a tutelar e a manter a economia de
mercado, dando a previsibilidade necessária ao capitalismo. Nesse contexto, o
argumento da “crise” foi utilizado ad nauseam para reposicionar interesses e
reduzir a capacidade do Estado atuar na economia em prol de
interesses sociais e ambientais. Contínua
e sempre presente, a retórica da crise afastou a participação popular nos rumos
econômicos da nação, deixando uma série de direitos fundamentais e objetivos
públicos fora do radar, como se sua afirmação pudesse ser postergada.
O Estado tornou-se
forte para proteger uma economia conveniente para alguns setores apenas. No
Brasil, em particular, os argumentos de crise justificaram todo tipo de manobra
contra a afirmação do projeto previsto na Constituição de 1988. A resistência
ao texto constitucional fez-se constante, a aplicação das normas
constitucionais a exceção. Tornou-se frequente a necessidade de socorrer o mercado,
que nunca cessou a sua agonia. Essa sistemática notabiliza a domesticação do
Estado e, por sua vez, da totalidade da Constituição pelo mercado.
No quadro de exceção
provocado pela ideia de “crise” ininterrupta, o mercado transformou-se no
“guardião da constituição” e no soberano da decisão final. Na prática, o debate
em torno do cumprimento da Constituição desembocou na retórica das normas “programáticas”
e/ou desprovidas de “densidade jurídica”. Previsões “incômodas” passaram a ser
tratadas como meros desdobramentos de intenção política e ideológica – não
pressupondo, para fins de interpretação, o direito constitucionalmente
garantido. A discussão constitucional gradativamente se afastou dos
questionamentos acerca de como as normas socioeconômicas e ambientais poderiam
ser implementadas e se aproximou de saídas que privilegiaram o paralisar do
projeto constitucional.
A Constituição se
transfigurou em um ambiente laboratorial de números, cuja efetivação passou a
depender do “humor” do mercado. O efeito dessa conjuntura é a cisão entre
Estado, economia e sociedade civil, culminando na abstenção do Estado de
assumir o protagonismo que lhe compete na organização de um mercado voltado
para interesses que não apenas os financeristas ou de pequenos grupos
econômicos. O produto daí derivado é representado pela neutralidade estatal e
pelo mito do Estado subsidiário.
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A exceção como regra
Na literatura
nacional, o fenômeno do “Estado de Exceção Permanente” no capitalismo
contemporâneo foi pioneiramente descrito pelo Professor Gilberto Bercovici, da
Faculdade de Direito da USP. Segundo Bercovici, a periferia do capitalismo vive
em um estado de exceção infindável, contrapondo-se à normalidade dos grandes
centros econômicos. Nos países menos desenvolvidos, o decisionismo de
emergência convive com o funcionamento dos poderes constitucionais,
intensificando a subordinação do Estado ao mercado. Como resultado, o direito
interno dessas nações foi historicamente adaptado para atender às necessidades
do capital financeiro, exigindo a gradativa flexibilidade para evitar e reduzir
as possibilidades de interferência da soberania popular.
Antes de ser um
problema jurídico, o “estado de exceção” é uma questão de paradigma de governo
e de Estado. A noção é extraída dos trabalhos de Carl Schmitt, jurista alemão
que participou ativamente da ascensão e legitimação do Nazismo. Bercovici
lembra que Carl Schmitt elaborou a sua teoria em um contexto no qual as
constituições de compromissos sociais – como a de Weimar, de 1919 – foram
colocadas em xeque, sendo apontadas como causa principal do desequilíbrio
econômico do período.
Essas constituições,
segundo Schmitt, não mais serviriam para garantir a ordem de mercado. Pior do
que isso, em muitos casos, tais constituições dirigiam-se diretamente contra a
ordem de mercado liberal almejada. Frente a esse contexto, o Estado deveria passar
por um processo de “despolitização”, a fim de que a economia pudesse ser
recuperada. Para tanto, era essencial compor um “Estado forte” para uma
“economia saudável” (“Starker Staat und gesunde Wirtschaft”).
Na visão de Schmitt, o
caos econômico estimulado pela desordem constitucional e a necessidade de
despolitizar a economia abriam caminho para o estado de exceção, que passa a
ser visto como solução para alcançar uma economia saudável. A partir desse
ponto, a fórmula da exceção passou a ser utilizada com a orientação de que, em
situações de excepcionalidade (econômica), as regras constitucionais podem ser
suspensas.
Assim, em momentos de
necessidade, o detentor do poder, o soberano, tem a última palavra para
proteger a situação econômico-financeira. Afinal, para Schmitt, “soberano é
quem decide sobre a situação excepcional”. A ilação, obviamente, abre espaço
para medidas extraordinárias com força de abolir, ainda que provisoriamente, a
distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário. Nesse jogo, a
Democracia é colocada “provisoriamente” de lado para manter a “cidade bem
governada”.
Ao contrapor as ideias
de Schmitt, Hermann Heller profetizou a supremacia do autoritärer
liberalismus. As críticas de Heller voltaram-se contra o “Estado Total” de
Carl Schmitt. Para Heller, a teoria schmittiana caracteriza-se pela retirada do
Estado da produção e distribuição econômicas. Apesar de continuar forte com o
fim de subsidiar grandes bancos, indústrias e empresas agrícolas, o “starken
Staat” promoveria o desmantelamento da política social e erigiria uma
espécie de totalitarismo de mercado.
As artimanhas do
estado de exceção foram abordadas por Georgio Agamben. Para o pensador
italiano, uma das características essenciais do estado de exceção é justamente
a sua tendência de se transformar em uma prática durável de governo, à margem
da ordem jurídica estabelecida. O maior perigo dessa arquitetura de Estado
reside na reprodução de uma sociedade política incapaz de compreender os riscos
democráticos que assume.
Entre continuidades e
rupturas, as preleções de Heller confirmaram-se ao longo do século XX. O
conceito de Estado forte de Carl Schmitt contribuiu para o avanço e a
legitimação do Nazismo. Em seguida, influenciou o Ordoliberalismo, que
desempenhou um papel crucial na consolidação da União Europeia, e, também, os
pressupostos da Escola de Chicago, por meio da Société du Mont-Pèlerin.
Posteriormente, a premissa de Estado forte e economia saudável foi levada ao
extremo com a ortodoxia liberal das décadas de 1970 e seguintes.
Não é por acaso que,
em diferentes contextos, os argumentos de crise e de pressão econômica
cristalizaram o uso contínuo da excepcionalidade, não para garantir o Estado
social ou as constituições compromissária, dirigente ou ambiental, mas a ordem
do capitalismo. A razão de Estado passou a ser a razão dos esquemas
mercadológicos do capitalismo.
O estado de exceção
gradativamente se estabeleceu como uma estrutura jurídico-política perene,
promovendo a dissolução do Estado diante de um cenário internacional dominado
pelo capitalismo financeirista, que pouco ou nada contribui para avanços
sociais e ambientais. Esse panorama orquestrou um sistema jurídico-econômico
desconfigurado, no qual tanto a economia quanto o ordenamento jurídico operam
em favor do mercado, como se não houvesse alternativas convergentes, mas um
único caminho: a conformidade com o sistema financeiro internacional.
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O entrechoque da
emergência climática
A emergência climática é filha legítima
desse estado de exceção econômico permanente. Em
última análise, trata-se de um problema diretamente associado ao controle do
poder econômico, em um esquema em que este sempre foi considerado como fim em
si mesmo, e não como meio. A crise instalada em termos ambientais e climáticos,
com destaque no Brasil recentemente, é efeito sintomático de políticas
econômicas e de um Estado concebido para ser “forte” na proteção de uma ideia
específica de mercado, e débil nos compromissos sociais, ambientais e de
interesse geral.
Portanto, não se pode
afirmar que a crise climática decorre da ausência de Estado ou de políticas
públicas. Pelo contrário, é crucial reconhecer que a emergência climática foi
gerada pela atuação contundente de um Estado forte. Ela foi, de fato, projetada.
Nesse cenário, no seu despontar, a emergência climática evidencia um confronto
de forças antagônicas: de um lado, o “estado de exceção econômico permanente”
e, de outro, o “estado de exceção necessário” atrelado à crise climática.
No antagonismo
revelado, o estado de exceção criado pela emergência climática sobrepõe-se ao
estado de exceção econômico permanente, forçando as autoridades governamentais
a suspenderem a exceção econômica para executar as regras constitucionais mais
fundamentais a um projeto de nação. É a exceção da “exceção a qual estamos
submetidos”.
Vista desse ângulo, a
crise climática exige a normalização de proteção ampliada ao meio ambiente,
invertendo a lógica que condiciona a tutela ambiental e climática à proteção
econômica. Ou seja, a proteção do equilíbrio ambiental e climático não mais pode
ser a exceção à Constituição ou mesmo depender de políticas públicas
dissociadas desses valores basilares.
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O estado de exceção de
um planeta em chamas
Os eventos extremos
registrados nos últimos anos e os em curso no Brasil e no mundo afirmam não
apenas uma nova realidade social, política e econômica à organização da
sociedade. Distantes da presunçosa concepção de “externalidade negativa” à luz
da lógica neoliberalizante, tais fenômenos confirmam o paradoxo de uma visão de
“desenvolvimento” e paradigma de produção e consumo “emergencial”. Em um
planeta literalmente em chamas, a condição climática surge como uma matriz de
governo, uma questão de fato que reclama a conjugação da excepcionalidade.
A questão posta
invariavelmente implode com os aportes jurídicos, políticos, econômicos e
institucionais em vigor, resultantes da “exceção econômica” neoliberalizante. A
rigor, a cosmovisão de defesa do “mercado” serve como o combustível da
disrupção causadora dos atuais prejuízos estruturais da emergência do clima,
diretamente ligados ao enviesamento da atuação estatal para fins específicos e
à desregulação do poder econômico, especialmente em atividades vinculadas às
causas da crise do clima.
Historicamente, o
papel do Estado, pautado na exceção econômica obstinada à apropriação do
natural somada à lógica liberal e privatista de regras jurídicas e econômicas,
consolidou uma visão de mundo e de Estado antropocêntrica, voltada à expansão
ilimitada da “humanidade”, ainda que em um planeta finito e à revelia das
desigualdades sociais e econômicas agravadas e esquecidas no meio desse
percurso.
A quimera
antropocêntrica fomentou, por séculos, o extrativismo irracional dos recursos
naturais, revelando-se como o motor do colapso climático que hoje se avoluma,
afetando as bases de infraestrutura, bens, serviços, e a segurança social e
ambiental. Nas últimas décadas, o estado de exceção econômico permanente tem
gerado uma crise civilizacional sem precedentes, cuja solução sequer pode ser
avaliada pela lógica neoliberal e privatista de mercado. Na acepção de Agamben,
o totalitarismo de mercado fez com que a sociedade assumisse riscos
incompatíveis com a Democracia.
A estabilidade
climática não cabe no cálculo de oferta e demanda, nem está adstrita a uma
falha mercadológica. O Estado “empreendedor”, que perpetua a exceção em favor
do mercado e adia compromissos com as complexidades sociais, ambientais e
climáticas, enfrenta seu maior desafio: a capitalização do futuro da vida no
planeta. A regra sobrepõe-se à exceção: nenhum mercado ou modelo de estado
nacional vigente possui aportes suficientes para enfrentar a excepcionalidade
climática em curso.
A realidade desenhada
pela exceção climática é fruto direto da atuação estatal, da regulação
econômica e do modelo de produção e consumo, que distorce as leis naturais
imutáveis, humanizando-as, e força a “naturalização” das ações humanas
econômicas e políticas. O pavor de climatologistas consagrados
mundialmente e os eventos extremos revelados pela vigorosa Ciência do Clima
demonstram a consolidação de um verdadeiro “Leviatã Climático”, agigantado sob
grandes perturbações e prejuízos à segurança da sociedade, causados pela
instabilidade do próprio sistema climático planetário.
Esse quadro impõe aos
Estados nacionais a urgência de buscar soluções emergenciais para superar este
problema crucial à sobrevivência na Terra. O caminho para garantir a mínima segurança
civilizacional deve passar pela ressignificação e pelo confronto com teorias e
mitos fundamentais sobre o Estado e o mercado, que racionalizaram um sistema no
qual os seres humanos, as pautas sociais e da natureza são tratados como meros
ativos do capitalismo. Em outras palavras, o Antropoceno, com a sua força
carbonizadora do clima e da realidade planetária, exige urgentemente uma nova
concepção de Estado, regras públicas sobre o poder econômico e sentido
sustentável de mercado e sua regulação.
Diante de um planeta
que já supera 1,5ºC de aquecimento e da ameaça às formas seguras de
civilização, agravada pela excepcionalidade do modelo econômico, surge a
questão: que tipo de arquitetura institucional de Estado, políticas públicas e
controle de mercado é capaz de oferecer respostas eficazes ao estado de exceção
neoliberal permanente?
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Outros caminhos na
exceção climática: a exceção da exceção
A constatação de um
Estado de emergência climática demanda o imediato abandono de mecanismos
neoliberais para a proteção do meio ambiente e a contenção das emergências do
clima, como, por exemplo, o de externalidades negativas. Além disso, requisita
uma nova dinamicidade do direito, encarado como ciência social aplicada destina
a transformar a realidade.
Não cabe às
autoridades públicas, ao Poder Judiciário e à sociedade como um todo segregar
em gavetas inseparáveis a afetação que a emergência climática empresta à
regulação jurídico-econômica vigente. O diagnóstico e as potenciais respostas
devem partir de uma visão sistêmica das causas e consequências em relevo. O
agravamento dessa emergência, no tempo e no espaço, foi justamente deflagrado
pelo modus operandi do direito, das políticas públicas, da economia e da
atuação estatal até então predominantes.
Tampouco remanesce
espaço para uma “análise econômica” fora do lugar, a normalizar a barbárie e a
buscar precificar o quantum de sobrevivência restante. O direito comercial, o
concorrencial, o administrativo e assim por diante – a semelhança de outras ciências
– não podem mais negar o impacto da crise ambiental e climática, sob o risco de
negar o constitucional. A nova dinamicidade do direito reivindica um direito
constitucional voltado para o Estado ambiental e climático, capaz de enfrentar
a perpetuação de regimes jurídicos do estado de exceção econômica
neoliberalizante, que priorizam o mercado em detrimento da nação, de sua saúde,
de sua interdependência econômica e de um planeta habitável.
Em um de seus últimos
livros, Georgio Agamben destaca a metáfora da “casa que queima”: “que casa está
queimando? O país onde vive, a Europa, o mundo inteiro? Talvez as casas e as
cidades já estejam queimadas, não sabemos desde quando, numa única e imensa
fogueira que fingimos não ver. […] Vivemos em casas, em cidades queimadas
abaixo como se ainda tivessem em pé, as pessoas fingem viver aí e saem pelas
ruas mascaradas entre as ruínas, como se ainda fossem os bairros de outrora”.
A nossa casa já queimou, e o Estado finge não perceber. O que isto tem a
ver com a lógica jurídica? Precisamos olhar para a exceção da exceção, a que
prega a nossa emancipação também em termos de mudança climática. Como linguagem
social, o direito está a testemunhar uma verdade revolucionária da qual não
podemos prescindir.
Fonte: Por José
Augusto Medeiros e Bruno Teixeira Peixoto, no Le Monde
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