Índia: um ascenso complexo e contraditório
Jovem,
poderoso militar e tecnologicamente e em rápido prescimento, país é cortejado
pelos EUA (contra a China), mas não adere às sanções e compra petróleo russo.
Direita governa, porém últimas eleições cortaram sua margem de manobra
- Da independência ao caminho de grande potência
A Índia tornou-se, em
2023, quando ultrapassou a China, o país mais populoso do mundo, com 1,4 bilhão
de habitantes. Divide com outros três (EUA, Rússia e China) a primazia de
possuir a chamada “tríade nuclear”, a capacidade de lançar bombas atômicas através
de mísseis, aviões e submarinos e também está neste “clube seleto” de nações
com a alta competência científica de ter conseguido pousar uma nave em solo
lunar. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a Índia deve crescer em 2024 em
torno de 6,5% e tem sido um dos países líderes no ranking do crescimento
econômico nos últimos anos. Serviços, telecomunicações e software têm destaque
na economia, grande exportadora de medicamentos, diamantes e óleo refinado.
Instituições financeiras como o banco Morgan Stanley têm afirmado que a Índia
deve ultrapassar a Alemanha e o Japão e se tornar a terceira maior economia do
mundo em 2027. Em tempos de rápido envelhecimento nos países ricos e mesmo na
China, com redução da população, a demografia também é uma vantagem indiana. O
paístem uma população crescente e mais jovem, o que deve suprir suas
necessidades de trabalhadores nas próximas décadas. Esta evolução coloca para
muitos analistas a percepção de que a Índia entrará para o grupo das grandes
potências.
A compreensão do papel
da Índia no grupo BRICS e sua relação com o Sul Global e também com os países
desenvolvidos, parte do entendimento dos formuladores de política externa
indianos deste país como “não ocidental” e não como “anti-ocidente”. A Índia nem
sempre segue as regras do jogo ocidentais, mas não se coloca como ator
antagônico. Participa da Organização para a Cooperação de Xangai e do BRICS, ao
mesmo tempo em que é membro do QUAD (com Japão, Austrália e EUA), grupo que
visa conter a China e tem diversas parcerias militares e tecnológicas com os
Estados Unidos. Contudo, mantém relações importantes com a Rússia, de quem
compra petróleo e armas e não condenou a invasão da Ucrânia. Esta postura de
independência deriva do seu posicionamento no período da Guerra Fria no qual
buscou não se alinhar com nenhum dos blocos liderados por EUA e URSS, buscando
ter as melhores relações com ambos. Como menciona Henry Kissinger em Ordem
Mundial: “A essência dessa estratégia residia no fato de que permitia à
Índia obter apoio dos dois campos da Guerra Fria – assegurando ajuda militar e
cooperação diplomática por parte do bloco soviético, enquanto flertava com os
norte-americanos em busca de assistência para o seu desenvolvimento e do apoio
moral por parte do establishment intelectual dos Estados
Unidos. Por mais que isso fosse irritante para os Estados Unidos, era uma
atitude sensata para uma nação emergente. Com uma capacidade militar então
incipiente e uma economia subdesenvolvida, a Índia teria sido respeitada, mas como
uma aliada de segunda linha. Na condição de um protagonista independente podia
exercer uma influência muito mais abrangente.” (KISSINGER, 2015, p. 205,)
A Índia tem, portanto,
desde sua independência da Grã-Bretanha, como elemento central de sua política
externa a postura de não alinhamento a blocos ou países. E esta política tem a
feito cortejada por potências ocidentais. Para os EUA, a Índia é uma espécie
de pivot para a contenção da China e é interesse indiano a
aliança com os EUA para se contrapor à força chinesa na Ásia. O tabuleiro
geopolítico da vizinhança indiana é complexo e conta com países como a China e
o Paquistão, contra os quais a Índia já travou guerras e tem contendas
territoriais.
- Índia: expansão dos BRICS, contradições internas e
estratégia
O grupo BRIC,
inicialmente composto por Brasil, Rússia, Índia e China se reuniu pela primeira
vez em Iekaterinburgo, na Rússia, em 2009. Este grupo admitiu a África do Sul
como membro pleno dois anos depois, tornando-se BRICS, e mais recentemente, em
2023, admitiu mais cinco membros plenos: Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia
Saudita, Egito e Etiópia. A sexta adesão, a da Argentina (que foi mediada pelo
Brasil) não ocorreu pela negativa do presidente de extrema-direita argentino
Javier Milei, em referendar a adesão ao grupo.
Dos membros
fundadores, Índia e Brasil têm posição não favorável a uma rápida expansão do
grupo, no que divergem da posição chinesa e russa, defensora da expansão e
adesão de novos membros. Esta última posição prevaleceu na reunião de 2023 com
a adesão dos referidos novos membros. A diluição do poder no interior do grupo
e o risco da adoção de uma posição explicitamente anti-G7, com o grupo
orbitando em torno da China, suas posições em relação aos EUA e o Ocidente como
um todo e seus projetos de projeção geopolítica e geoeconômica, como a Belt
and Road Initiative, a chamada “Nova Rota da Seda” são temores, em
diferentes gradações, de Brasil e Índia, que têm procurado articular posições
conjuntas no grupo, como a proposta de definição de critérios objetivos para
novos adesões, o que deve ser discutido conjuntamente na próxima reunião dos
BRICS, em outubro próximo, em Kazan, na Rússia. A despeito desta discussão, a
expectativa é que sejam negociadas novas adesões, o que, caso realmente ocorra,
confirmará a vitória da perspectiva sino-russa.
A despeito, até o
momento ao menos, desta posição que atende especialmente às expectativas
chinesas, este grupo alternativo ao G7 tornou-se arena política internacional
importante para seus integrantes, e para a Índia possibilita o exercício de sua
política externa independente.
Este processo de
ascensão indiana não se dá sem contradições internas. O país possui centenas de
milhões de habitantes vivendo com valores inferiores à linha de pobreza
definida pelo Banco Mundial (pouco mais de 3 dólares diários) e o governo
nacionalista hindu de Narendra Modi acentuou as divisões internas ao conduzir
políticas contrárias (e em certos casos repressivas) à grande minoria muçulmana
do país, em torno de 200 milhões de pessoas, o que também trouxe a crítica
internacional ao que foi visto como declínio da democracia. Modi conquistou
recentemente o direito ao terceiro mandato, contudo sem a maioria absoluta. A
questão do “declínio democrático”, nos dois governos anteriores de Modi, não
foi impedimento para que governos ocidentais como o norte-americano de Joe
Biden e o francês de Emmanuel Macron buscassem estabelecer laços estratégicos.
Portanto, produto de
suas opções de política externa, ser a ponte entre Ocidente e Oriente, com a
busca da posição autônoma, está no cerne da Grande Estratégia da
Índia.
¨ A Índia desafiará a ordem eurocêntrica? Por José Luís Fiori
A civilização indiana
é tão ou mais antiga que a chinesa, embora seu desenvolvimento tenha sido mais
descontínuo e menos homogêneo. Sua formação se deu ao longo do Rio Indo, e o
processo de “sedentarização” de suas populações começou por volta do ano 5000
a.C. Seu território, entretanto, foi objeto de inúmeras invasões e ocupações
por parte de povos “estrangeiros”. Por volta de 1500 a.C., a região foi ocupada
por povos indo-europeus provenientes do Mar Negro e do Mar Cáspio, quando se
inicia o Período Védico. No ano de 520 a.C., seu território foi invadido por
Dario, o Rei da Pérsia, e permaneceu 200 anos sob o domínio persa, até a
invasão por Alexandre, o Grande, que trouxe consigo as marcas da civilização
grega.
Todas essas sucessivas
invasões, que prosseguiram nos séculos seguintes, só conseguiram se instalar de
forma periférica, como entrepostos militares ou mercantis de uma produção local
diversificada e sofisticada que fora obra milenar de uma população que era
cultural e linguisticamente heterogênea, mas que seguia majoritariamente o
hinduísmo, a mais antiga de todas as religiões.
Até o momento em que
se iniciaram as invasões e conquistas muçulmanas, no século VII, provenientes
do Sistão, atual Irã, e que deram origem ao Império Mogol ou Mogul, fundado por
Babur, descendente de Gengis Kan, e que chegou a dominar quase todo o subcontinente
indiano entre 1526 e 1857. Essa estrutura imperial durou até 1720, pouco depois
da morte do último grande imperador mogol, Aurangzeb. Pouco depois, em 1763, a
Companhia Inglesa das Índias Orientais impôs seu domínio mercantil e tributário
sobre a região de Bengala e, a partir daí, progressivamente, sobre todo o
território indiano, até que as forças do Império Britânico derrotaram a
rebelião indiana de 1857-58, submetendo a Índia ao governo imperial da Coroa
Britânica, de 1858 até sua independência, em 15 de agosto de 1948.
Em 1885, foi fundado o
Congresso Nacional Indiano, primeira semente revolucionária de um movimento que
adquiriu plena maturidade a partir de 1930, quando Gandhi lançou seu Movimento
da Desobediência Civil, que culminaria com a independência indiana e a divisão
dos territórios britânicos entre Paquistão e Índia, e posteriormente,
Bangladesh.
Depois de sua
independência, a Índia adotou uma política externa anticolonialista e sofreu o
efeito imediato da coincidência de sua data de independência com a data do
início da Guerra Fria, logo antes da vitória da Revolução Comunista na China.
Esses fatos por si só colocaram o território indiano no coração de um espaço
geopolítico que teve grande importância durante toda a segunda metade do século
XX, durante a Guerra do Vietnã, e após a queda do Xá do Irã e a invasão
soviética do Afeganistão, ocorridas em 1979. Nesse período, a Índia enfrentou
várias guerras de fronteira, três com o Paquistão (1948, 1965 e 1971) e uma com
a China (1962), manteve uma disputa aberta com Bangladesh (1979), em relação à
nacionalidade de uma ilha na Baía de Bengala, e desde então mantém um litígio
permanente com o Paquistão em torno a suas fronteiras na região de Jammu e
Caxemira.
Constrangida pela
forma como se deu a luta por sua independência, a Índia adotou uma posição de
liderança inconteste e ativa dentro do Movimento dos Países Não-Alinhados,
nascido da Conferência de Bandung, em 1955, apoiando um “neutralismo ativo” e
uma defesa intransigente da soberania e igualdade de todas as nações contra
todo tipo de pressão ou ingerência das grandes potências nos assuntos internos
dos demais Estados. Estabeleceu um relacionamento econômico, político e militar
muito estreito com a antiga URSS, que se manteve depois com a Rússia.
A Índia não apresenta,
à primeira vista, as características de uma potência expansiva, e se comporta,
estrategicamente, como um Estado que foi obrigado a se armar para proteger e
garantir sua segurança numa região de alta instabilidade. Assim mesmo, desenvolve
e controla tecnologia militar de ponta, como no caso de seu sofisticado sistema
balístico e arsenal atômico; possui, ainda, um dos exércitos mais bem treinados
de toda a Ásia. Mas foi só depois da sua derrota militar para a China, em 1962,
e da primeira explosão nuclear chinesa, em 1964, logo antes da guerra com o
Paquistão, em 1965, que a Índia abandonou o “idealismo prático” da política
externa de Nehru e adotou a Realpolitik do primeiro-ministro Bahadur Shastri,
que autorizou o início do programa nuclear, na década de 60. Foi quando a Índia
atingiu sua maturidade, com as explosões nucleares de 1998 e o sucesso do
míssil balístico Agni II, em 1999. Naquele momento, ela se tornou uma potência
atômica e definiu sua nova estratégia de inserção regional e internacional, com
base na afirmação simultânea de seu novo poder militar.
Por outro lado, desde
sua independência, a Índia vem adotando uma estratégia econômica de corte
fortemente nacionalista, e hoje é o país com maior crescimento econômico
dentro do sistema mundial. Apesar do viés cada vez mais orientado na direção asiática,
a política externa indiana mantém uma equidistância pragmática com relação a
Estados Unidos, Europa e China, e em algum momento esteve próxima de se
transformar em um aliado atômico dos americanos. Mais recentemente, voltou a
distanciar-se dos Estados Unidos e de seu projeto de construção de um cerco
nuclear da China, com a possibilidade de extensão da área de atuação da OTAN
até a região Indo-Pacífica.
Muito recentemente, já
em meados de 2024, houve um movimento de reaproximação entre Índia e China, as
nações mais populosas do planeta, que somam juntas três bilhões de habitantes e
já são a primeira e a terceira maiores economias do mundo, respectivamente, por
paridade de poder de compra. Esta reaproximação sinaliza o desejo de resolver
suas disputas de fronteira na Caxemira e em Arunachal Pradesh, que remontam a
décadas e já provocaram enfrentamentos armados com a China, com quem mantém uma
fronteira comum de 3.379 km de extensão.
O mesmo tem acontecido
com relação ao Paquistão e, em ambos os casos, o novo governo indiano parece
decidido a tranquilizar e estabilizar sua zona de influência na região sul da
Ásia. Mais do que isso, a Índia tem resistido a participar do “Diálogo de Segurança
Quadrilateral” promovido pelos Estados Unidos, o QUAD, que também envolve a
Austrália e o Japão; mantém estreita relação comercial e estratégica com a
Rússia; fez parte da criação conjunta do BRICS; e é membro da Organização de
Cooperação de Shangai.
Tudo indica que a
Índia está se dispondo a resolver suas pendências regionais para poder assumir
uma posição assertiva e global no cenário internacional, acorde com suas novas
dimensões demográficas e econômicas, e com a previsão de que, até 2050, será o
segundo país mais rico do mundo.
Somando todos esses
fatos e fatores, parece claro que a Índia já tomou uma posição de longo prazo,
ao lado de seus vizinhos asiáticos, contrários ao projeto QUAD, e mais ainda, à
ideia de criação de uma OTAN na região do Indo-Pacífico. E ainda, a Índia vem
sinalizando seu desejo de afastar-se progressivamente do sistema
monetário-financeiro apoiado no dólar, sobretudo depois do congelamento das
reservas russas depositadas nos bancos americanos e europeus. Uma posição que
vem angariando número cada vez maior de apoiadores dentro e fora da Ásia,
sobretudo na região que se alimenta do efeito expansivo das economias chinesa e
indiana.
Esse verdadeiro
turning point da política externa indiana explica, em parte, a iniciativa
absolutamente inusitada e o movimento surpreendente do primeiro-ministro
Narendra, que depois de ir a Moscou no mês de julho, visitou, em agosto, a
Ucrânia e a Polônia, propondo-se a intermediar uma negociação de paz fora da
Ásia, em plena Europa, envolvendo, como uma de suas partes fundamentais, a
Grã-Bretanha, sua antiga potência colonial.
Assim, a Índia vai
assumindo uma posição dentro do Sul Global análoga a que ocupou na Conferencia
de Bandung de 1955, e na formação do Movimento dos Países Não Alinhados que
durante o período da Guerra Fria se opôs ao que consideravam como novas formas
colonialismo e neocolonialismo das Grandes Potências daquele período. Mas este
novo/velho caminho da política externa da Índia não será fácil, como se pôde
ver pela retaliação quase imediata que sofreu com o Golpe de Estado que
derrubou sua aliada, a Primeira-Ministra de Bangladesh, Shikh Hasina, no dia 4
de agosto recém passado, e que contou com o apoio/intervenção dos Estados
Unidos. Uma mudança forçada de governo, que seguiu o novo figurino das
intervenções norte-americanas, desde o Golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, e
que pode transformar Bangladesh, em qualquer momento, num novo foco de atrito
militar entre a Índia e a China. De qualquer forma, haverá que acompanhar os
próximos desdobramento para avaliar o comportamento desta nova Índia que que
está se propondo entrar no “jogo das Grandes Potências”.
Fonte: Por Wagner
Sousa, em Outras Palavras
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