A era das doenças climáticas
A intensificação do
aquecimento global foi responsável por inúmeros impactos prejudiciais na esfera
social, econômica, ambiental e política nas últimas décadas. Dentre eles, é
crucial apontar a implicação das mudanças climáticas no campo da saúde, o
crescimento no número de doenças infecciosas, respiratórias, cardiovasculares e
a incidência destes efeitos nas diferentes camadas sociais.
Diante do desastre
natural ocorrido em junho de 2024 no Rio Grande do Sul e outros ocorridos
anteriormente, o Brasil se vê de frente com a vulnerabilidade socioambiental de
populações mais pobres e deve se preparar para atenuar as enfermidades que
surgiram e ainda surgirão, além de lidar com abalos nas infraestruturas de
saúde e com os efeitos sobre os animais. Para tanto, é necessário seguir as
diretrizes internacionais preconizadas por órgãos de saúde e veterinária, e
combater o desenvolvimento da crise climática como um todo.
Entretanto, neste
texto questiona-se a efetividade de medidas que tentam reparar os estragos dos
desastres naturais, em detrimento de reformas estruturais que podem preveni-los
e, consequentemente, atenuar a intensidade dessas doenças. Esses dilemas são debatidos
à luz da economia política dos desastres naturais.
<><> 1.
Doenças climáticas e vulnerabilidade socioambiental
Segundo a OMS, entre
2030 e 2050, as mudanças climáticas podem causar cerca de 250 mil mortes
adicionais anuais por desnutrição, malária, diarreia e estresse térmico. Elas
trazem efeitos sobre a saúde humana de diferentes formas: a variabilidade
climática causa uma maior proliferação de doenças infecciosas e não
infecciosas, um aumento da insegurança alimentar, além de impactos na saúde
mental.
As alterações nos
padrões de precipitação, ventos, e a intensificação de eventos climáticos
extremos criam condições mais favoráveis para a proliferação de vetores, como os transmissores da dengue,
contribuindo para o aumento de infecções. Essas mudanças também impactam a
migração humana e a urbanização, aproximando pessoas de animais hospedeiros de
patógenos, o que facilita a propagação de doenças zoonóticas. Isto posto, o
Ministério da Saúde criou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública
para Dengue e outras Arboviroses (COE), com objetivo de coordenar e melhorar a
resposta a surtos dessas doenças em todo o Brasil, trabalhando de forma
integrada com estados e municípios.
No Rio Grande do Sul,
o aumento dos níveis de água pode causar doenças como diarreia, infecções na
pele, doenças respiratórias, leptospirose, tétano e hepatite A devido ao
contato com água contaminada. As enchentes também danificaram cerca de três mil
estabelecimentos de saúde, dificultando o atendimento médico e aumentando o
risco de subnotificação de doenças.
A falta de saneamento
básico e as enchentes, como as ocorridas entre 26 de abril e 5 de maio, têm um
impacto devastador na saúde das populações mais pobres. A leptospirose, causada
pelo contato com urina de ratos em água contaminada, é uma das doenças comuns
em áreas sem rede de esgoto, afetando desproporcionalmente cidadãos
provenientes de zonas precárias. Logo, a vulnerabilidade socioambiental é uma
condição agravada por desastres ambientais extremos e contribui para
intensificar o abismo de desigualdade social presente no Brasil.
Além das doenças
acima, as doenças crônicas não infecciosas relacionadas às modificações
ambientais e deficiências nutricionais também são agravadas. As mudanças
climáticas geram aumento nos efeitos das doenças respiratórias, proveniente da
potencialização dos poluentes
atmosféricos nas zonas urbanas. De acordo com a OMS, 50% das doenças
respiratórias crônicas e 60% das doenças respiratórias agudas estão associadas
a essa exposição aos poluentes atmosféricos. Os estudos apontam que com o
aumento de 1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século, conforme
as projeções do IPCC das Nações Unidas, deve ocasionar no Brasil um aumento nas doenças respiratórias,
cardiovasculares e até renais.
Não só a saúde física
das pessoas são afetadas, mas também a saúde mental da população. Depressão,
ansiedade, sofrimento emocional, traumas decorrentes dos desastres naturais
ameaçam o bem estar e a saúde humana. A ecoansiedade, um termo que vem ganhando
atenção das mídias nos últimos anos, é uma dessas consequências reais que afeta a população em diferentes graus.
Contudo, existe uma
variação dessas respostas às mudanças climáticas e seus impactos que é
diretamente ligada à questão da vulnerabilidade. Uma dessas questões é a
condição social, marcada por desigualdade, que se desdobram nas diferentes
capacidades de adaptação, resistência e resiliência. Esse cenário pode ser
visto na insegurança alimentar, com a diminuição da disponibilidade de alimento
e da qualidade nutricional, que dificulta o acesso da população aos alimentos,
de modo que elas recorrem a alternativas destes, muitas vezes não
convencionais, que fortalecem a sindemia global.
As consequências das catástrofes climáticas no Rio Grande do
Sul teve impacto não somente na saúde humana, mas também, estudos apontam a
relação dos alagamentos de áreas inteiras e
a queda de árvores na volta da doença Newcastle após quase duas décadas
sem notificação. A destruição de árvores que poderiam ter ninhos, além das aves
exóticas e de estimação que são disseminadores de vírus, foram levados pelas
águas. A vacinação contra a doença não é aconselhada em aves de corte, nessa
perspectiva, o evento climático vivido pelo estado pode ter contribuído com o
surgimento de um foco com mais de 14 mil casos dessa doença, que interfere
diretamente na sua economia com a suspensão
de exportação de produtos avícolas para pelo menos 44 países.
Outrossim, as
queimadas florestais e as secas proporcionadas pela exploração do meio ambiente
atingiram níveis altíssimos no primeiro semestre de 2024, nunca antes
registrados no Brasil. Os índices de incêndio em regiões como Amazonas e Mato
Grosso já são 104% superiores aos hectares queimados registrados durante o
mesmo período em 2023. Esses incêndios florestais alarmantes são observados no
país desde agosto desse ano, e investigações já estão sendo conduzidas pela
Polícia Federal para apurar seus responsáveis. A ministra do meio ambiente
Marina Silva propôs que todos os gastos com emergências climáticas no Brasil
não fossem incluídos no teto de gastos do governo, considerando esta uma crise
contínua e crescente, sendo necessário um investimento em ações preventivas
constantes.
Quanto às
consequências imediatas dessa catástrofe, os índices de poluição atmosférica
aumentam e a qualidade do ar decai, o que pode ocasionar complicações para a
saúde de humanos e animais. Além de doenças do sistema respiratório como
amigdalite e faringite, o corpo humano também é afetado através de irritações
nos olhos e nariz, tosse seca e no aumento de doenças cardiovasculares. Os
grupos mais vulneráveis da população, como idosos e crianças, correm risco de
vida ao absorverem em seus organismos as toxinas liberadas no ar pelas fumaças
das queimadas florestais. Além disso, a má qualidade do ar também tem seu
impacto no processo de neurotransmissão do cérebro humano, podendo gerar
neuroinflamação e agravar casos de depressão e ansiedade nas comunidades
afetadas.
<><> 2.
Recomendações internacionais e medidas brasileiras de mitigação
Os efeitos das
mudanças climáticas no campo da saúde não se trata de uma problemática isolada,
e sim interseccional à esfera econômica, social e política das nações e da
comunidade internacional como um todo. Dessa maneira, Organizações
Internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e suas ramificações
possuem um papel central na elaboração de declarações, projetos e medidas para
engajar os países a enfrentar estes impactos.
Para a Organização
Mundial da Saúde (World Health Organization), o combate aos desafios é pautado
em torno de três objetivos principais: a redução das emissões de carbono e do
uso de combustíveis fósseis a partir da transição energética e da bioeconomia;
a construção de sistemas de saúde mais sustentáveis; e a proteção da saúde
populacional por meio de análises de vulnerabilidade, desenvolvimento de planos
de ação e sistemas responsáveis por monitoramento de riscos.
Também é evidenciada a
necessidade de mudança nos hábitos alimentares para uma dieta mais equilibrada
e saudável, tendo em vista que a indústria de carne vermelha é uma das maiores
responsáveis pela proliferação de gases poluentes na atmosfera. Além disso,
coalizões com a sociedade civil e agências de saúde são primordiais para
impulsionar a formação de políticas públicas e conscientizar os cidadãos sobre
os desafios da saúde num mundo de crise climática.
A perspectiva para
futuros cenários internacionais epidemiológicos, caso não haja uma virada
ambiciosa no combate às mudanças climáticas, é caracterizada por fatores
agravantes intrincados na poluição atmosférica e precarização de áreas
interurbanas, o que facilita a transmissão das doenças. As catástrofes
ambientais se intensificam cada vez mais e ocorrem paralelamente a conflitos
políticos. Os impactos devem ser analisados no que tange seus efeitos para a
saúde da população e nos sistemas designados para acolhê-la, sendo necessário
um plano adaptativo.
Dentre as ações do
governo brasileiro para remediar os impactos na saúde gaúcha, pode-se destacar
a iniciativa do Ministério da Saúde no suporte psicológico à população afetada.
Ele se divide em setores de atendimentos presenciais e de telemedicina, e propõe
ações psicoterapêuticas que auxiliem no processo de assimilação dos traumas
provenientes de uma catástrofe climática. Já no panorama de adaptação e de
mitigação da crise climática, é importante citar o Comitê Interministerial de
Mudança no Clima (CIM), que tem o objetivo de guiar e implementar o Plano
Nacional sobre Mudança no Clima. Nesse sentido, foi aprovado no dia 27 de junho
de 2024 a resolução para implantar novas medidas ao CIM, anunciadas pelo
presidente Lula no Dia Mundial do Meio Ambiente (05/06), como o pacto com
governadores para o combate a incêndios no Pantanal e na Amazônia, a criação de
duas Unidades de Conservação (UCs) e a Estratégia Nacional de Bioeconomia.
Contudo, apesar dos
esforços para corrigir os impactos ocorridos, a crise climática está mais grave
do que nunca. As ações devem possuir um caráter mais crítico e eficaz, mas a
que ponto medidas corretivas serão priorizadas em detrimento de reformas estruturais?
É preciso analisar o panorama de modo mais amplo e debater como estabelecer
alternativas ao modelo de sociedade excludente e exploratório vigente.
<><> 3.
Economia política dos desastres naturais: a ideologia por trás
A par e passo às
constantes crises econômicas ao redor do mundo, ocorre de forma generalizada
uma crise ecológica que cada vez mais adquire proporções catastróficas. Aquilo
que até recentemente estava sendo tratado como uma possibilidade a ocorrer,
talvez, em um futuro distante, agora se materializa na atualidade. Veja-se o
crescente número de desastres naturais nos últimos anos: inundações na Grécia,
inundações no Rio Grande do Sul, incêndios florestais na Austrália, seca na
Amazônia, e, agora, queimadas na Amazônia e em diversas outras partes do Brasil
– especialmente no estado de São Paulo – dentre muitos outros exemplos.
Em 2001, cientistas
alertavam que a tendência do aquecimento global induzido pelo homem era
aumentar ao longo do século XXI. Na época, modelos de simulação indicaram
efeitos secundários, como o aumento das taxas de precipitação e a maior
suscetibilidade de secas nas regiões semiáridas. Combinados com outros fatores,
como a urbanização e ocupação inadequada, ou irregular, de áreas não propícias
(fundos de vale, encostas, várzeas etc), esse aumento irregular de chuvas
fortes provocam inundações.
Alguns anos antes, o
protocolo de Quioto – acordo ambiental que visava a diminuição da emissão de
gases do efeito estufa em países industrializados – demonstrava um esforço
internacional para a contenção dos efeitos climáticos que experienciamos hoje.
Entretanto, mesmo com a adoção de metas modestas, muito aquém das metas
propostas pela literatura científica da época, a iniciativa falhou. Tal
fracasso é demonstrado no aumento da emissão de CO2 per capita no mundo, que
foi de 4,1T em 1997 para 4,7T em 2022.
A economia ecológica
tem claro que a crise econômica e a crise ecológica têm a mesma origem: um
sistema que mercantiliza tudo – terra, água, ar e seres humanos – e cujo único
objetivo é a expansão dos negócios e a acumulação de lucros. Nesse sentido, Segundo
Löwy (2013) não há como enxergar o sistema econômico que causou a presente
degradação global como a solução para os problemas que ele próprio foi
responsável por gerar.
Portanto, um novo
paradigma se faz necessário no cenário internacional contemporâneo: rejeitar a
lógica neoliberal de acumulação e exploração predatória e buscar uma coevolução
mais harmoniosa da sociedade, englobando aspectos humanos e naturais como elementos
da construção de uma ordem social mais justa. A alternativa a isso é enfrentar
as consequências irreversíveis de uma crise ecológica e social que devasta a
vida – humana e/ou não – no planeta.
Nesse contexto, o
movimento de decrescimento se coloca como medida alternativa de combate às
mudanças climáticas, e consequentemente, à problemática do agravamento de
doenças. Nas palavras de Jason Hickel (2020): “Decrescimento é uma redução
planejada do consumo de energia e recursos, projetada para trazer a economia de
volta ao equilíbrio com o mundo vivo de uma maneira que reduza a desigualdade e
melhore o bem-estar humano”.
O caso brasileiro
ilustra bem a tese de que o crescimento econômico não necessariamente se traduz
em desenvolvimento. Apesar do crescimento da economia ao longo da sua história,
o país viu aumentar desigualdades, vulnerabilidades e degradação ambiental. Nem
sempre é assim. É possível que o
crescimento econômico se traduza em desenvolvimento, porém essa
correlação depende de um movimento intencional de construção de uma sociedade
mais justa e sustentável.
Pode-se então adotar
um modelo de “Decrescer crescendo”, ou crescer o setor dos serviços, as
energias renováveis, os transportes públicos, a economia social e solidária, a
humanização das megalópoles e as agriculturas familiares e biológicas.
Simultaneamente, será preciso reduzir o consumismo, a alimentação
industrializada, a produção de objetos descartáveis, a dominação dos
intermediários sobre a produção e o consumo, o uso de automóveis particulares e
o transporte rodoviário de mercadorias (em favor do ferroviário), dentre outras
medidas.
<><> 4.
Conclusão
Após um desastre
natural, gasta-se muito em remediações e auxílio, porém tem se investido pouco
em ações de mitigação e pesquisa. Quando Bolsonaro corta 93% da verba para
estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, ou quando o
prefeito Sebastião Melo não investe um real na prevenção contra enchentes da
prefeitura de Porto Alegre, é a maneira neoliberal de pensar o Estado que
prevalece. É a retórica de que diminuir o poder público o torna mais eficiente,
o que não tem se materializado na realidade. Nesse sentido, não há como
conceber uma solução que não discuta a estrutura política e econômica que
permeia a governança ambiental e que vem se mostrando como constante no Brasil
e no mundo.
Os recentes incêndios
que a imprensa chama de “florestais” mas que, na verdade, são em diversas
coberturas vegetais do ambiente rural, causam uma enorme perda da
biodiversidade na Amazônia e no Pantanal. Mas, para além disso, acarretam
perdas bilionárias para a produção de gado, soja, cana-de-açúcar, milho e
outras culturas. Ademais, esses eventos vão aumentar o preço de diversos
alimentos ao consumidor final, e vem pressionar para cima a taxa de inflação.
Por fim, a poluição atmosférica fez de São Paulo a cidade com o ar mais poluído
do mundo por três dias seguidos, até a data da publicação deste texto. O custo
para a saúde humana e animal de um ar carregado por partículas em suspensão
ainda é mais um valor a ser descoberto mas que, afinal, além de acabar pesando
no bolso dos cidadãos irá frear o desenvolvimento econômico que é, ele mesmo, a
causa-raiz dos desastres ambientais.
Conclui-se, portanto,
que a problemática apresentada há de ter um caráter global, na medida que
impacta a dinâmica da saúde em diferentes esferas e de diferentes maneiras, mas
que transfigura-se como um processo que atinge 70% dos trabalhadores ao redor do
mundo. Dessa forma, na busca por um enfrentamento ao atual modelo econômico e
ecológico global – predatório e poluente, independentemente da estratégia
adotada, é essencial reconhecer que tais questões devem ser compreendidas e
abordadas sob uma perspectiva global. Para tal, emerge a importância dos
regimes internacionais e das negociações informadas pela política econômica,
que mesmo sendo alvos de constantes críticas e incertezas, mostram-se como a
alternativa mais plausível para resolução do problema em questão.
Fonte: Observatório de
Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil
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