“O agronegócio é o principal inimigo do
Brasil”, afirma historiador
O agronegócio é o
grande problema do Brasil e, se ele não for extirpado, não temos a mais remota
chance de viabilidade como sociedade e como natureza. A avaliação é do
historiador Luiz Marques, professor livre-docente aposentado e colaborador do
Departamento de História do IFCH/Unicamp, autor de obras como Capitalismo e
Colapso Global, de 2015, e O Decênio Decisivo, publicado em 2023 pela Editora
Elefante.
Em entrevista ao Joio,
o professor aponta que a atividade é basicamente ”criminosa e predadora”. “Eles controlam o Congresso Nacional por meio
da frente parlamentar da agropecuária e têm como aliados, inclusive, as bancadas
da Bíblia e da bala. Então, o Brasil está numa situação muito clara: ou nós
reagimos a isso, com uma ruptura muito
vigorosa em relação a esse processo ou nós não temos nenhuma chance de
sobrevivência como sociedade”, diz. Marques explica o porquê de estarmos
vivendo no “decênio decisivo” para o futuro da humanidade, analisa a relação
entre sistema alimentar globalizado e crise climática e defende uma diminuição
radical do consumo de carne bovina.
<><> A
seguir, leia trechos da entrevista.
* Os recentes eventos
climáticos, como as secas na Amazônia, queimadas, a poluição, enchentes do Rio
Grande do Sul fazem parte de um processo de colapso climático?
Certamente. A Amazônia
teve ciclos de secas e inundações muito fortes e crescentes. Uma em 2005 e
outra em 2010. Em 2015 e 2016. Outra em 2023 e 2024. São fenômenos que deveriam
ocorrer num espaço de um século e estão acontecendo, agora, a cada cinco anos,
mais ou menos. E estão cada vez mais fortes. Os dados mostram que as secas de
2010 foram mais fortes que as de 2005, em termos de alteração da biomassa e
também do ponto de vista geográfico. As de 2015 e 2016 superaram as de 2010 e
2005. E sobre a de 2023 o
[climatologista] Carlos Nobre dizia, já no final do ano passado, que poderia
ser maior que as de 2015 e 2016. De fato, já há uma constatação clara de que a
seca da Amazônia atual é a pior de todas. E isso se alterna com inundações.
Houve várias inundações em várias regiões da Amazônia. Isso significa que o
sistema está oscilando. Esse tipo de oscilação é característico de um momento
em que o sistema tende a colapsar. Ele não se comporta mais segundo os
parâmetros anteriores. Estamos transitando claramente para uma situação em que
as condições ambientais da Floresta Amazônica deixam de existir. E ela,
portanto, deixa de existir como floresta tropical. Um elemento muito claro
disso são os incêndios. Ao se somar os incêndios com a seca e o desmatamento e a
degradação pelo desmatamento, por obra do agronegócio, da fronteira
agropecuária – sobretudo da pecuária – e a degradação que é feita pela
indústria madeireira, já temos uma Floresta Amazônica que está hoje emitindo
mais dióxido de carbono que do que está absorvendo. Isso significa que está
morrendo um número maior de árvores do que o número de árvores que estão
crescendo. Ela já está, portanto, no processo de atrofia. E ele vai se
acelerar. No Pantanal, ocorre a mesma
coisa – e talvez num nível ainda mais grave porque é um bioma menor. É um bioma
pequeno, de 150 mil quilômetros quadrados, mas riquíssimo do ponto de vista
biológico. Em 2020, 45 mil quilômetros quadrados pegaram fogo. E, só em 2020,
houve a morte de 17 milhões de vertebrados, segundo um trabalho publicado pela
[revista] Science. Em 2022, 2023 e, agora, em 2024 os incêndios estão cada vez
maiores. Há poucos dias, a ministra Marina Silva disse que o Pantanal pode
desaparecer até 2050. Isso me parece uma projeção em nada alarmista. Eu
tenderia a dizer que ele pode desaparecer até antes, no sentido em que as
condições ambientais que garantem a permanência dele desaparecem. Ele não vai
desaparecer da noite pro dia, claro, mas ele não tem mais as condições da sua
própria reprodutibilidade. No estado de
São Paulo, há uma seca enorme. Em todos esses casos há uma conjunção muito forte entre clima e crime. Os
incêndios são ateados deliberadamente pelo agronegócio, seja para a expansão
das pastagens, seja para a renovação da pastagem, seja para a expansão da
fronteira agrícola. No caso de São Paulo, a questão da queima dos canaviais
está muito claramente documentada por vídeos. Esse incêndio pode ser muito
parecido com o Dia do Fogo, que aconteceu em 2019, lá na Amazônia. No caso do
Pantanal, a Polícia Federal tem provas de que esse fogo foi ateado por quatro
fazendeiros. O agronegócio é o grande
problema do Brasil. Se ele não for extirpado, o Brasil não tem a mais remota
chance de viabilidade como sociedade e como natureza. É uma atividade social
basicamente criminosa e predadora. E eles controlam o Congresso Nacional por
meio da frente parlamentar da agropecuária e têm como aliados, inclusive, as
bancadas da Bíblia e da bala. Então, o Brasil está numa situação muito clara:
ou nós reagimos a isso, com uma ruptura
muito vigorosa em relação a esse processo ou nós não temos nenhuma chance de
sobrevivência como sociedade. O próprio agronegócio já está sofrendo e o
próprio criminoso já está sofrendo as consequências do seu crime. Estão
ocorrendo quebras de safra muito grandes, prejuízos. Há uma situação em que a
própria agricultura – e nem devemos chamar de agricultura porque não faz a
agricultura e, sim, produção de commodities – já está recebendo os impactos do
seu próprio crime.
• Existem aqueles que argumentam que esses
são eventos que sempre aconteceram no passado e que a cada determinado período
podem ocorrer com mais intensidade. Queria pedir pro senhor comentar isso.
Esse argumento, como todos que não são verdadeiros
argumentos e sim falas capciosas, eles se baseiam num fato real. O planeta
Terra já conheceu mudanças climáticas muito grandes no seu passado geológico. E
quando houve a última grande extinção, a quinta grande extinção em massa de
espécies, 65 milhões de anos atrás, o planeta estava a 14 graus Celsius mais
quente do que está hoje. O nosso
problema não é a temperatura da Terra. O problema é a rapidez dessa mudança. Se
eu disser que daqui a 3 mil anos nós vamos
ter uma temperatura três, quatro graus Celsius mais alta em relação ao período
pré-industrial, nós temos três milênios. Isso significa, mais uma vez, que a
questão fundamental da adaptação é o tempo. E essa é a variável que caracteriza
a possibilidade ou não de adaptação. Não
dá para comparar o que está acontecendo hoje com qualquer outro processo
ocorrido no passado. Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a Terra já
esteve muito mais quente e muito mais fria. Ocorre que, no Holoceno, nos últimos
11 mil anos, que foram os anos em que floresceram todas as civilizações
documentadas, o clima não variou mais do que 0,6 graus Celsius para cima ou
para baixo em relação ao período de 1960 e 1990. A partir de 1970 e 1980, nós temos um aumento
da temperatura cada vez mais rápido. Não existe possibilidade de adaptação no
planeta com esse nível de desestabilização climática e os impactos são claros.
Nós estamos vendo as secas. Mas não é apenas um fenômeno brasileiro. Se você
pegar a quantidade de países que estão já sofrendo temperaturas acima de 50
graus, são mais de 20 países que já estão neste nível. É uma situação
inacreditável. O grande problema disso
tudo é a baixa reatividade quando nós estamos numa situação em que temos de 10
a 20 anos de chance de reatividade em relação a isso. A única coisa que nós
sabemos fazer quando existe um pico de calor é transpirar. Este é o mecanismo
evolutivo que nós desenvolvemos como organismos endotérmicos. Eliminamos
líquido do corpo e esse líquido quando evapora, resfria o corpo. Mas esse
mecanismo em climas úmidos ou numa situação de umidade maior é muito limitado. Então as pessoas acham que
elas podem se preocupar com o que quer que seja, com qualquer outra bobagem
sendo que elas estão numa situação limite de sobrevivência física. E é muito
difícil para as pessoas entenderem isso. Mas elas estão apenas continuando a
acelerar a sua própria condenação.
• O senhor defende a tese de que essa
década é decisiva para o futuro do planeta. Queria te pedir para explicar o
porquê disso. E, se passada essa década decisiva, se o problema não for tratado
da forma mais adequada, quais serão as consequências?
Se pegarmos a evolução
dos relatórios do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas],
ele fez seis relatórios gerais. O primeiro e o segundo, de 1990 e 1995, não
tratam do assunto. O terceiro relatório,
de 2001, falava que haveria um risco muito elevado de transição abrupta do
sistema climático, a partir de um aquecimento de cinco graus. No quarto
relatório, de 2007, esse valor já cai para três a quatro graus. O último e
sexto relatório fala que o sistema entra em alto risco de transitar de forma
abrupta para outro estado de equilíbrio num aquecimento da ordem de um a dois
graus Celsius. Nós já estamos nessa área de risco. Há um sistema Terra que até um certo momento
nos protege da desestabilização. Significa que se você está com frio e põe um
casaco, diminui a liberação de calor do seu corpo. Este é o feedback negativo,
um mecanismo através do qual você restaura o equilíbrio anterior. Positivo é o
contrário. É, por exemplo, uma mulher grávida quando vai ter um filho. Existe
um processo que faz com que aumente cada vez mais as contrações. O útero manda
para o cérebro uma informação e o cérebro começa a mandar as contrações. Elas
vão cada vez mais se retroalimentando,
até que a mulher entra em trabalho de parto.
Ora, o que nós temos diante de nós hoje? A ciência mostrou que nós temos
16 elementos críticos do sistema Terra que são suscetíveis de passar um ponto
de não retorno. Por exemplo, o parto é um de não retorno você está em um
processo em que você transita rapidamente para um outro estado se chegar à luz
uma criança. A mesma coisa acontece com os 16 sistemas, esses elementos
críticos de grande escala dos quais, numa temperatura entre um grau e dois
graus, quatro já estão em altíssimo risco. Entre eles a Floresta Amazônica –
mas também, por exemplo, o gelo da Groenlândia, os recifes de corais já estão
em altíssimo risco, já estão desestabilizados e passando para situações de
ponto de não retorno. Então, por que é
que um decênio importante? Porque as alças de retroalimentação vão ficando cada
vez maiores e quanto maiores elas ficam, menor é a nossa capacidade de
interferir sobre essa dinâmica. O próprio sistema começa a se retroalimentar para, digamos assim,
transitar para outro estado de equilíbrio que, naturalmente, é muito mais
hostil para todo o sistema de vida que havia antes. Então é isso basicamente:
nós estamos em um processo de aceleração. Eu já vou te dar um exemplo total de
temperatura. Se você pegar a evolução do aquecimento de 1850 até 1969, o
aquecimento estava ocorrendo a uma taxa de 0,04 graus Celsius por década. De
1970 a 2010, ele passa a 0,18. De 2011 até agora, e projeção até 2050, estamos
em 0,27 e 0,36. Isso é um processo de
aceleração que nunca ocorreu na história da humanidade –e nunca ocorreu na
história do planeta. Ou seja, dois graus Celsius, que é aquilo que nós devemos
sofrer até os anos 2040. O planeta Terra nunca sofreu um clima de dois graus
Celsius na média global maior do que o período pré-industrial no quaternário,
que são os últimos 2 milhões 580 mil
anos. A espécie humana nem existia naquela época. Isso significa que nós
não temos na nossa memória de espécie nenhuma experiência que nos permita achar
que nós podemos sobreviver a um planeta dois graus Celsius mais quente. Em 1995
nós já estávamos mais ou menos em 0,5 graus Celsius. Em 2015, nós passamos para
1 grau Celsius. Em 2023, 1,5 graus Celsius acima do período industrial. Agora
vai vir La Niña. Ela está meio atrasadinha, mas deve vir mais cedo ou mais
tarde, e a temperatura vai baixar um pouquinho. E no próximo El Niño nós vamos
passar 1,5 graus Celsius irreversivelmente. Nós vamos caminhar para dois graus
Celsius. Estamos brincando, é uma roleta russa. E o mais preocupante é que não
estamos suficientemente preocupados com isso.
• O senhor fala que os resultados das
convenções internacionais para limitar o aquecimento global são extremamente
frustrantes. Poderia comentar?
Nós temos um
ordenamento jurídico que foi eficiente no processo de formação dos
Estados-nação. Dele resultou um axioma fundamental da soberania nacional
absoluta. Ou seja, nenhum país pode determinar qual é a decisão estratégica do
outro, pelo menos legalmente falando. Daí a ideia de que qualquer intervenção é
considerada uma ingerência indevida na soberania nacional. Só que hoje, os
grandes problemas – os verdadeiros problemas que temos – são de ordem global.
Há a poluição, poluição atmosférica, dos rios, dos oceanos. Há o problema da
aniquilação da biodiversidade. E o problema do clima. Esses problemas, que são
constitutivos do mundo moderno contemporâneo, só podem ser atacados a partir do
ordenamento global. Mas nós não temos um ordenamento jurídico que permita que
haja uma governança global. Se você
fizer um balanço dos três grandes tratados que saíram da ECO 92, no Rio de
Janeiro, vemos que eles só podem ser caracterizados como absoluto fracasso.
Fracasso porque há uma meta que você deve atingir. Mas você não só não atingiu essa meta, como
agora está mais distante da meta do que estava quando estipulou aquela meta.
Fracasso é isso. Por exemplo, as emissões de gases de efeito estufa hoje são
muito maiores do que eram em 92 e elas estão crescendo exponencialmente. De
2022 para 2023, elas cresceram 1,1%. É gigantesco, significa que tudo que
aumenta 1% ao ano, dobra a cada 72 anos.
Por que isso acontece? Qualquer país, ele assina, se compromete, aí não
cumpre. Acontece alguma coisa? Não, não acontece nada porque existe o axioma da
soberania nacional absoluta. Ninguém tem um poder acima do poder nacional. E
como o poder nacional faz o que ele bem entender, se o Brasil resolver destruir
deliberadamente a Floresta Amazônica, ninguém tem nada a ver com isso. E,
portanto, não existe nenhuma autoridade acima da soberania nacional. Você não
tem a menor condição de estabelecer um processo de governança global capaz de
atacar os problemas reais do mundo. Você tem que mudar de ordenamento jurídico.
É a sociedade que tem que fazer isso, se organizar para entender isso. primeiro
passo é entender, mas não é o mais importante. O mais importante é se dispor a
mudar.
• O senhor o que faz uma relação entre o
sistema alimentar globalizado e o colapso climático. Poderia explicar qual é
essa relação?
Ela é bem evidente a
partir do Brasil. Um caso muito claro é que mais ou menos 80% do desmatamento
da Amazônia advém da abertura de pastagem. Hoje, o Brasil é o maior exportador
de carne bovina do mundo, algo entre 25% das exportações comercializadas no mundo
provêm do Brasil. Além disso, o Brasil é também o maior exportador de soja,
sobretudo para a China. E a soja é praticamente um alimento destinado à ração
animal. Então é claro que nós temos o nosso sistema alimentar baseado em
proteínas animais. Para um quilo de
carne é preciso usar 15 mil litros de água. Não tem um sistema alimentar que
possa sobreviver quando ele demanda essa quantidade de água para obter um quilo
de carne. A quantidade de calorias que se precisa investir, por exemplo, por
meio do tamanho da ração animal para você obter um quilo de carne é muito maior
do que a caloria que existe dentro de um quilo de carne. O quilo de carne é em
absoluto extremamente denso do ponto de vista energético. Quando o Brasil exporta 100 milhões de
toneladas de soja para um país como a China, que dista mais de 10 mil
quilômetros daqui, imagina a quantidade de emissões de gases de efeito de
estufa? Então você tem que ter o sistema que esteja em primeiro lugar baseado
em nutrientes vegetais. Em segundo lugar, é preciso ter um sistema alimentar
que seja auto suficiente, ou seja, o produtor esteja muito perto do consumidor.
E um sistema alimentar que não use uma quantidade gigantesca de agrotóxicos,
que não seja baseado na monocultura, que requer necessariamente agrotóxicos
cada vez mais. Precisamos de um esquema alimentar que seja baseado em
nutrientes vegetais, proximidade do consumidor em relação ao produtor. E temos
que acabar com a indústria de ultraprocessados. É porcaria porque foi desenhada
para criar uma dependência neurológica ao não alimento. Isso qualquer cientista
da alimentação te diz. A gente está no caminho completamente errado do ponto de
vista do sistema alimentar. Os sistemas alimentar e energético têm que ser
mudados radicalmente. O Michael Clark
[pesquisador britânico], estudioso do assunto, fala que se nós não emitíssemos
nenhuma molécula de CO2 hoje, ainda assim, só o sistema alimentar, que é
responsável por 30% das emissões de gases estufa, impediriam a gente de conter
o aquecimento em menos de 2 graus Celsius.
Aí tem os incêndios e toda a questão social também porque o agronegócio
não gera, não gera prosperidade para ninguém a não ser para o dono da fazenda.
O nosso sistema alimentar é completamente catastrófico.
• Considerando que no Brasil há muitas
emissões de gases vindas do agronegócio, o que deveria ser feito e que não está
sendo feito para reduzir as emissões?
É claro que é sempre
bom ter algumas medidas graduais. Mas hoje, nenhuma medida gradual é capaz de
conter e reverter esse processo. Tem que ter uma medida política e antes de
mais nada, extirpar o agronegócio do Brasil. Você vai dizer: ‘esse cara é louco,
vou terminar a entrevista agora e chamar um médico’. Mas é verdade. Nós não
temos condição de continuar a existir como sociedade, mantendo essa sociedade
sob controle do agronegócio. Tem que retirar do agronegócio o controle político
das decisões estratégicas do Brasil. O governo Lula é um governo progressista
que nos salvou de uma catástrofe que é Bolsonaro. Mas quando o Lula faz um
Plano Safra, que é maior ainda que os anteriores, ele tenta se aliar ao
agronegócio. Evidentemente, ele está equivocado – é um nível de equívoco
descomunal. Ele tem de combater o agronegócio. Você vai me dizer: ‘ah, mas ele
não tem força política pra isso’. Estou totalmente de acordo. Mas uma análise
ponderada da situação nos leva a entender que o nosso inimigo principal é o agronegócio.
Temos muitos inimigos, a mineração, tem os garimpeiros… Inimigo é o que não falta, mas o inimigo número um do
Brasil é o agronegócio.
• Gostaria de saber como o senhor avalia
medidas para redução das emissões e de desmatamento ligadas à cadeia da carne,
como política de rastreabilidade, pecuária regenerativa, PL do Carbono… O
senhor fala na necessidade de reduzir o rebanho e fazer redução no consumo de
carne. O que temos que fazer?
Mesmo antes do
capitalismo, havia uma clara relação de interdependência entre oferta e
procura. Se você diminuir a procura, vai diminuir a oferta. Hoje, 80% da carne
bovina produzida no Brasil é consumida por nós. Depende de nós diminuir
radicalmente a nossa ingestão de carne bovina. Carne em geral, mas a carne
bovina é o mais importante. O que pode ser feito? O MST tem um modelo agrícola
extremamente positivo; no Brasil é o melhor. O MST tem um plano de produção
agrícola próxima do consumidor, sem uso de agrotóxicos, sem monocultura e com
geração de renda de trabalhadores. Temos que fortalecer o MST. Eles têm o plano
de plantar 100 milhões de mudas para reflorestar. O que o governo Lula está
fazendo, que não está apoiando de uma maneira franca, aberta, pública, essa
campanha? São 100 milhões de mudas. O
MST sabe que não vai conseguir plantar 100 milhões de mudas sem o apoio
governamental, claro. Eles sabem muito mais do que qualquer tecnocrata que está
lá no Ministério da Agricultura, porque eles conhecem o assunto, eles estão em
contato com a realidade. Nós temos as alternativas corretas ao nosso alcance.
Mas politicamente a gente não está fortalecendo elas, está fortalecendo o
agronegócio. E agora está pegando fogo em São Paulo. E aí, o Tarcísio [de Freitas,
governador de São Paulo] dá R$ 500 milhões para indenizar aos agricultores que
puseram fogo. Tem que penalizar essas pessoas, tem que penalizar rapidamente,
criminalmente, expropriar as terras delas, transferir essas terras para os
trabalhadores que têm projetos de agroecologia. A única coisa que eu sei é que,
para os nossos problemas, não há uma solução de mercado. Os mercados podem ser
uma ferramenta de auxílio a soluções políticas. Mas foi o mercado que criou
esse problema, portanto, não está ao alcance dele resolver esse problema. Nós
sabemos, e tem avaliações bem claras agora, que mais de 90% das operações de
mercado de carbono são completamente fake, são falsas, não têm nenhuma
eficiência. Quando nós falamos de democracia, a gente não diz uma coisa que
está implícita e que é fundamental, que é o seguinte: numa democracia você e eu
fazemos o que bem entendermos do nosso dinheiro. Você pagou seus impostos, tem
dinheiro, faz o que bem entender com seu dinheiro. Quer viajar para o Japão? Se
tem dinheiro para isso, pegue uma passagem. O tipo de democracia que nós
precisamos ter é outro. É uma democracia na qual você não pode fazer o que
quiser com seu dinheiro. E isso é um sacrilégio para quem tem dinheiro. Você
não pode ir pro Japão, pros Estados Unidos, [pra] Europa ou pegar um avião
quantas vezes quiser porque isso emite gases de efeito estufa. Então você tem
uma cota específica daquilo que se pode gastar com o seu dinheiro. Se você não
acha que isso é possível, então não tem solução. Porque você tem uma população
mais rica que tem 100, 200 vezes maior pegada de carbono do que a pegada da
população mais pobre – e ela está na legalidade, pode fazer o que quiser. Ela
passa a não ter esse direito. É a democracia da qual precisamos.
• Sobre redução do consumo de carne, como
o governo deveria pautar essa questão, quais seriam as políticas públicas? Como
fazer isso, considerando que o presidente Lula fala muito sobre o consumo de
picanha e o churrasco sendo um símbolo nacional?
O Lula é o político
mais talentoso da história do Brasil, tanto ou mais que o Getúlio Vargas. Vamos
partir da premissa de que o Lula é um
gênio da política, mas, ao lado de um imenso talento político, é um homem que
nasceu da luta sindical, que tem um desenho mental que é o típico século 20.
Então, para ele, o progresso significa comer carne. E também para muita gente,
para 99% dos seus eleitores. Não podemos pedir a Lula algo que não está no
repertório mental dele. Nós é que temos que, de alguma maneira, entender,
formular políticas e pressionar o Lula para que ele entenda isso. A encrenca em
que estamos é a maior que a humanidade jamais teve que confrontar. É uma
situação muito difícil, porque nós temos que ter uma velocidade de mudança
muito grande – e uma velocidade coletiva. E ela é pouco provável, mas não
impossível. Mas se não acontecer uma [mudança na] percepção da sociedade, nós
não vamos conseguir mudar a tempo de conter o aquecimento em níveis propícios
de adaptação. O sofrimento vai ser muito grande. Poderá a vir a ser uma
situação que põe em risco a existência da espécie mesmo. Nunca houve isso. A
única vez em que nós tivemos que nos confrontar com isso foi com a
possibilidade de uma guerra nuclear terminal.
• Depois de quatro anos de um governo
negacionista climático, o novo governo foi recebido com otimismo pelo campo
progressista. E como você avalia como é que está sendo a política ambiental do
governo Lula até o momento?
Negativamente. Vamos
levar em consideração os dados do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais]: há uma diminuição importante do desmatamento na Amazônia. Isso é
fundamental. Mas há um aumento enorme dos incêndios e do desmatamento no
Cerrado, que é o segundo bioma mais importante. Do ponto de vista da dimensão
territorial, são quase 2 milhões de quilômetros quadrados – mais de 50% deles
completamente afetados. Toda vez que se fala em diminuir o desmatamento na
Amazônia, implicitamente estão rifando o Cerrado. Ele é muito importante, é o
chamado berço das águas. É uma savana riquíssima do ponto de vista biológico e
muito vulnerável do ponto de vista da temperatura. As maiores temperaturas já
registradas no Brasil foram registradas exatamente nos estados que estão no
Cerrado, como Mato Grosso. Há políticas que poderiam ser mais agressivas. Por
exemplo, a presença de garimpeiros ainda ali no Norte do Brasil entre os
Yanomami, que teriam que ter sido extirpados nos primeiros três meses [de
governo]. Os outros dois pontos mais
importantes são a questão da exploração do petróleo na margem equatorial, que o
Lula está discretamente apoiando, e o asfaltamento da BR 319, que liga Manaus a
Porto Velho e passa por uma das regiões menos degradadas da Floresta Amazônica
– e que vai ser catastrófico do ponto de vista da preservação da floresta. O governo tem até apresentado elementos
importantes, criou, por exemplo, o ministério dos povos originários Mas eu acho
que a estratégia do governo é de contemporizar, conciliar interesses que são
antagônicos. E acho que essa estratégia é errada.
Fonte: O Joio e O
Trigo
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