Historicamente fraca, política ambiental do
país não será questionada no exterior, dizem analistas
As recentes queimadas
que atingem o território nacional, além dos demais países da América do Sul,
podem ajudar o governo a recuperar sua imagem de devastador ambiental adquirida
durante a gestão de Jair Bolsonaro (2019–2023), afirmam especialistas ouvidos
pela Sputnik Brasil.
O cuidado ao meio
ambiente e o combate às mudanças climáticas são algumas das principais
bandeiras erguidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sua
campanha eleitoral e, também, perante a comunidade internacional.
Em 2023, primeiro ano
de governo de Lula, a cidade de Belém (PA) foi escolhida para sediar a
Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30). A
honra foi vista como uma vitória pelo presidente, que defendeu a escolha de
locação como "a coisa mais forte já feita em defesa da questão do
clima".
Neste ano, no entanto,
o país se viu envolto em duas grandes crises climáticas: as enchentes no Sul e
as queimadas por todo o Brasil. Para Roberto Goulart Menezes, professor do
Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), ainda
que megaincêndios "entristeçam o Brasil e o mundo", eles não colocam
à prova a política ambiental, pelo contrário.
"O governo admite
os incêndios, admite a insuficiência das ações, diferente do anterior, que
atribuiu esses incêndios a ONGs, a indígenas, à população ribeirinha."
Desde que assumiu, o
governo de Lula vem trabalhando na reconstrução da política ambiental do país,
seja no restabelecimento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), na
criação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia
Legal (PPCDAm) ou na reestruturação do Ministério do Meio Ambiente em
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
"Vale lembrar que
uma das promessas do [Jair] Bolsonaro durante a campanha de 2018 era extinguir
o Ministério do Meio Ambiente."
Entre as ações do
petista também está o apontamento do ex-ministro das Relações Exteriores Luiz
Alberto Figueiredo como embaixador extraordinário para a Mudança do Clima,
representando o Brasil em diversos fóruns multilaterais, além da criação da
Secretaria de Clima, Energia e Meio Ambiente (Seclima) no Itamaraty, chefiada
pelo embaixador André Aranha Corrêa do Lago.
"Também em outros
16 órgãos da administração superior o governo federal criou diretorias ou
departamentos específicos do meio ambiente, inclusive na Polícia Federal."
Descritas por Menezes
como "institucionais", as medidas do governo dão respaldo à sua
imagem internacional de protetor do meio ambiente, diz o professor da UnB, que
além de restabelecer o setor institucionalmente, está atrás de políticas efetivas
no combate ao incêndio — em especial, a criação da Autoridade Climática, uma
autarquia que centralizaria os esforços de combate a desastres climáticos no
país.
Queimada de grande
proporção é vista em ramal da BR-230, na cidade de Lábrea
Além de concentrar os
esforços no combate aos incêndios, a entidade também estaria responsável pela
prevenção e reversão dos danos já causados. A princípio, a Autoridade Climática
pode ser estabelecida como uma subdivisão do Ministério do Meio Ambiente. No
entanto, para que se chegue ao patamar de autarquia, é preciso de aval do
Legislativo.
No momento, o Projeto
de Lei nº 3961/2020 tramita na Comissão do Meio Ambiente da Câmara dos
Deputados para criar arcabouço jurídico que sustente a autarquia. "É isso
que vai ordenar e dar suporte a todo o processo de criação da Autoridade, do
Comitê Técnico-Científico e também ao Plano Nacional de Enfrentamento aos
Eventos Climáticos Extremos", descreveu a ministra do Meio Ambiente,
Marina da Silva, em entrevista ao programa Bom dia, Ministra, da EBC.
"Existem
[atualmente os estados de] calamidade e emergência para quando os desastres já
aconteceram. Para antecipar as ações, nós não temos essa cobertura legal. Por
isso, estamos propondo a figura jurídica da emergência climática",
explicou.
A criação da autarquia
foi considerada ainda durante a transição de governos, mas logo foi deixada de
lado. Na época e agora, as autoridades afirmam que a Autoridade Climática será
comandada por um perfil técnico, e não político ou diplomático.
Segundo Menezes, um
dos nomes cotados para coordenar a nova autarquia, e preferido de Marina Silva,
é Tasso Azevedo, engenheiro florestal e coordenador do MapBiomas, projeto que
mapeia anualmente a cobertura e o uso do solo no Brasil.
Para Andrea Steiner,
professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e coordenadora do Grupo de Estudos em Meio Ambiente, Política
e Relações Internacionais (Mapori) da mesma instituição, a questão ambiental deveria
ter sido tratada antes, de modo que a situação não chegasse a esse ponto.
"Ao mesmo tempo,
mesmo em momento de crise, só tratar a questão dessa forma não vai resolver.
Precisamos lidar com isso de forma mais estruturada."
Steiner afirma que o
problema ambiental ainda está sendo tratado no plano do discurso. "É um
avanço, mas não quer dizer que as intenções que são faladas vão, de fato, ser
implementadas de maneira efetiva."
Nesse sentido, critica
a pesquisadora, os órgãos de meio ambiente têm um histórico de não possuir a
mesma força política e os mesmos recursos dos demais, e de nada adiantará se a
Autoridade Climática sofrer do mesmo problema.
"O órgão teria
que vir com recursos financeiros e de pessoal adequados, além de dialogar bem
com outras instituições. Afinal, mudança climática tem a ver com praticamente
tudo."
• Para adiar o fim do mundo não é preciso
reinventar a roda, mas sim distribuir os recursos para os territórios. Por
Isabela Kojin Pere
Se as mudanças
climáticas, cada vez mais graves e presentes no nosso dia a dia, já anunciam o que muitos têm chamado de “fim
de mundo”, o cenário de devastação ocasionado pelas queimadas aumentou a
sensação de distopia. Parecemos viver em um mundo apocalíptico de ficção
científica.
Os impactos das
queimadas são de diferentes ordens, algumas mais facilmente identificáveis,
outras mais complexas, como a perda de ecossistemas e os efeitos na saúde.
Afinal, é rinite, gripe, “virada do tempo” ou poluição?
Há uma terceira ordem
de impactos que acaba passando quase despercebida em uma sociedade já bastante
adoecida na qual o estresse e a ansiedade se tornaram ponto comum. Falo da
chamada eco-ansiedade que, segundo a American Psychology Association (APA), está
relacionada ao medo crônico de sofrer um cataclismo ambiental e uma preocupação
exacerbada associada ao futuro (ou a falta dele). Nas últimas semanas eu senti
isso no meu corpo. Não só a taquicardia, o nervosismo, a dificuldade em dormir,
mas principalmente o medo. E medo pode ser algo perigoso porque paralisa a
gente e traz desesperança.
Foi com esses
sentimentos que tomei a estrada rumo ao I Encontro Internacional Territórios e
Saberes que aconteceu entre os dias 9 e 13 de setembro em Paraty (RJ). Saindo
das paisagens queimadas e com pastagens degradadas do interior de São Paulo,
passando pela nuvem de fumaça na Serra do mar, cheguei ao calor escaldante do
litoral fluminense. Mas, ao invés de me sentir sufocada, pude, pela primeira
vez, respirar fundo porque me deparei com um cenário fértil e abundante de
vida, sociobiodiversidade e ancestralidade.
Com o esperançar vivo e vivente dos agricultores familiares, pescadores,
marisqueiros, extrativistas, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas e indígenas,
além de estudantes, professores, pesquisadores, gestores públicos e
ambientalistas. Pessoas e comunidades que estão na linha de frente das lutas
socioambientais, sustentando o céu e indicando os caminhos para outros mundos
possíveis, a partir das vivências de seus territórios.
Ao longo de uma semana
de atividades, o evento demonstrou, na prática, que é possível (e fundamental)
o diálogo de saberes tendo os povos e comunidades tradicionais como
protagonistas. Eles têm soluções ou, ao menos, alternativas, ao destino
catastrófico que temos construído para nós. Como traz a carta final do evento:
“o território fala. Pois, escutemos!” Com isso, podemos encontrar e partilhar
ações que não só resolvam as questões locais, mas também sirvam como
potencializadores de transformações que podem ser replicados, servir de
inspiração e fomentar políticas públicas que construam e promovam o Bem Viver.
Apesar de toda
sabedoria, experiência e força desses atores estar sendo mais reconhecida,
ainda falta garantir o acesso a recursos de forma acessível, capilarizada e
desburocratizada para os territórios.
O primeiro desafio é
garantir mais recursos em si, porque sim, eles existem em enorme volume, mas
ficam concentrados em grandes organizações. Em ano de COP29, que terá grande
foco no financiamento climático, e com a COP30 prevista para acontecer no
Brasil no ano que vem, é necessário que as comunidades e povos tradicionais
adentrem, de fato, o campo das negociações climáticas e consigam disputar de
maneira mais justa os recursos dessa e de outras agendas. E aí entra a atuação dos fundos independentes
e dos fundos e fundações comunitárias.
Porém, não se trata
apenas de mobilizar recursos, é preciso também construir uma governança para a
descentralização desses recursos de modo contextualizado e mesmo descolonizado.
Porque se a burocracia serve, por um lado, para garantir transparência e controle
social, por outro, ela dificulta e às vezes até impossibilita que o recurso
seja utilizado. E, uma vez, utilizado ainda tem a prestação de contas.
Durante o encontro,
discutiu-se as dificuldades que as lideranças comunitárias enfrentam ligadas ao
baixo letramento causado pelo sucateamento da educação e a complexidade dos
trâmites administrativos, jurídicos e contábeis dos editais. Além disso, muitas
vezes elas têm que deixar o trabalho, o lazer ou a militância para “cuidar de
um documento que ficou faltando”. E escrever projeto, arrumar a documentação,
submeter ao edital, mobilizar parceiros, exigem horas de trabalho que não são
remuneradas, sem contar o sentimento de frustração quando não são contemplados
com o apoio.
Por fim, há o desafio
de fazer uma gestão dos recursos de modo que atendam as necessidades e desejos
reais das comunidades. Saber investir no que é prioritário pode parecer
simples, mas não é, sobretudo quanto maior for a carência da comunidade.
Tampouco se busca usar o recurso de modo mais estratégico e estruturante, já
que um projeto tem prazo de validade e muitas vezes não permite pagar os custos
de existência do coletivo ou da organização
que representa a comunidade.
Apesar de tudo, têm
sido criados arranjos inovadores e arquiteturas colaborativas para superar
essas lacunas. É nisso, por exemplo, que se baseia o campo da filantropia
comunitária, cuja premissa é a doação de confiança e o protagonismo das
comunidades na destinação e no uso dos recursos financeiros. Que rompe a lógica
das comunidades terem que se adequar ao edital de um agente externo que as
pauta.
A filantropia
comunitária também reconhece que já existem recursos, mesmo não financeiros,
circulando pelas comunidades e territórios que podem e devem ser valorizados;
busca traduzir informações legais, apoiar lideranças e coletivos não
formalizados, realizar formações e apoio técnico, promover trocas de
experiências, produzir conhecimento e incidir em políticas públicas.
O encontro, que de
fato foi entre territórios e saberes, demonstrou a relevância dessas
alternativas no campo do financiamento, comprometidas em potencializar os povos
e comunidades tradicionais, pois somente assim poderemos barrar o projeto de
destruição e morte que está em andamento, e manter viva a esperança por um
mundo melhor. Mesmo com eco-ansiedade, sigo acreditando que é possível.
Fonte: Sputnik
Brasil/Le Monde
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