sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Historicamente fraca, política ambiental do país não será questionada no exterior, dizem analistas

As recentes queimadas que atingem o território nacional, além dos demais países da América do Sul, podem ajudar o governo a recuperar sua imagem de devastador ambiental adquirida durante a gestão de Jair Bolsonaro (2019–2023), afirmam especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

O cuidado ao meio ambiente e o combate às mudanças climáticas são algumas das principais bandeiras erguidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sua campanha eleitoral e, também, perante a comunidade internacional.

Em 2023, primeiro ano de governo de Lula, a cidade de Belém (PA) foi escolhida para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30). A honra foi vista como uma vitória pelo presidente, que defendeu a escolha de locação como "a coisa mais forte já feita em defesa da questão do clima".

Neste ano, no entanto, o país se viu envolto em duas grandes crises climáticas: as enchentes no Sul e as queimadas por todo o Brasil. Para Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), ainda que megaincêndios "entristeçam o Brasil e o mundo", eles não colocam à prova a política ambiental, pelo contrário.

"O governo admite os incêndios, admite a insuficiência das ações, diferente do anterior, que atribuiu esses incêndios a ONGs, a indígenas, à população ribeirinha."

Desde que assumiu, o governo de Lula vem trabalhando na reconstrução da política ambiental do país, seja no restabelecimento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), na criação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) ou na reestruturação do Ministério do Meio Ambiente em Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

"Vale lembrar que uma das promessas do [Jair] Bolsonaro durante a campanha de 2018 era extinguir o Ministério do Meio Ambiente."

Entre as ações do petista também está o apontamento do ex-ministro das Relações Exteriores Luiz Alberto Figueiredo como embaixador extraordinário para a Mudança do Clima, representando o Brasil em diversos fóruns multilaterais, além da criação da Secretaria de Clima, Energia e Meio Ambiente (Seclima) no Itamaraty, chefiada pelo embaixador André Aranha Corrêa do Lago.

"Também em outros 16 órgãos da administração superior o governo federal criou diretorias ou departamentos específicos do meio ambiente, inclusive na Polícia Federal."

Descritas por Menezes como "institucionais", as medidas do governo dão respaldo à sua imagem internacional de protetor do meio ambiente, diz o professor da UnB, que além de restabelecer o setor institucionalmente, está atrás de políticas efetivas no combate ao incêndio — em especial, a criação da Autoridade Climática, uma autarquia que centralizaria os esforços de combate a desastres climáticos no país.

Queimada de grande proporção é vista em ramal da BR-230, na cidade de Lábrea

Além de concentrar os esforços no combate aos incêndios, a entidade também estaria responsável pela prevenção e reversão dos danos já causados. A princípio, a Autoridade Climática pode ser estabelecida como uma subdivisão do Ministério do Meio Ambiente. No entanto, para que se chegue ao patamar de autarquia, é preciso de aval do Legislativo.

No momento, o Projeto de Lei nº 3961/2020 tramita na Comissão do Meio Ambiente da Câmara dos Deputados para criar arcabouço jurídico que sustente a autarquia. "É isso que vai ordenar e dar suporte a todo o processo de criação da Autoridade, do Comitê Técnico-Científico e também ao Plano Nacional de Enfrentamento aos Eventos Climáticos Extremos", descreveu a ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, em entrevista ao programa Bom dia, Ministra, da EBC.

"Existem [atualmente os estados de] calamidade e emergência para quando os desastres já aconteceram. Para antecipar as ações, nós não temos essa cobertura legal. Por isso, estamos propondo a figura jurídica da emergência climática", explicou.

A criação da autarquia foi considerada ainda durante a transição de governos, mas logo foi deixada de lado. Na época e agora, as autoridades afirmam que a Autoridade Climática será comandada por um perfil técnico, e não político ou diplomático.

Segundo Menezes, um dos nomes cotados para coordenar a nova autarquia, e preferido de Marina Silva, é Tasso Azevedo, engenheiro florestal e coordenador do MapBiomas, projeto que mapeia anualmente a cobertura e o uso do solo no Brasil.

Para Andrea Steiner, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenadora do Grupo de Estudos em Meio Ambiente, Política e Relações Internacionais (Mapori) da mesma instituição, a questão ambiental deveria ter sido tratada antes, de modo que a situação não chegasse a esse ponto.

"Ao mesmo tempo, mesmo em momento de crise, só tratar a questão dessa forma não vai resolver. Precisamos lidar com isso de forma mais estruturada."

Steiner afirma que o problema ambiental ainda está sendo tratado no plano do discurso. "É um avanço, mas não quer dizer que as intenções que são faladas vão, de fato, ser implementadas de maneira efetiva."

Nesse sentido, critica a pesquisadora, os órgãos de meio ambiente têm um histórico de não possuir a mesma força política e os mesmos recursos dos demais, e de nada adiantará se a Autoridade Climática sofrer do mesmo problema.

"O órgão teria que vir com recursos financeiros e de pessoal adequados, além de dialogar bem com outras instituições. Afinal, mudança climática tem a ver com praticamente tudo."

 

•        Para adiar o fim do mundo não é preciso reinventar a roda, mas sim distribuir os recursos para os territórios. Por Isabela Kojin Pere

Se as mudanças climáticas, cada vez mais graves e presentes no nosso dia a dia,  já anunciam o que muitos têm chamado de “fim de mundo”, o cenário de devastação ocasionado pelas queimadas aumentou a sensação de distopia. Parecemos viver em um mundo apocalíptico de ficção científica.

Os impactos das queimadas são de diferentes ordens, algumas mais facilmente identificáveis, outras mais complexas, como a perda de ecossistemas e os efeitos na saúde. Afinal, é rinite, gripe, “virada do tempo” ou poluição?

Há uma terceira ordem de impactos que acaba passando quase despercebida em uma sociedade já bastante adoecida na qual o estresse e a ansiedade se tornaram ponto comum. Falo da chamada eco-ansiedade que, segundo a American Psychology Association (APA), está relacionada ao medo crônico de sofrer um cataclismo ambiental e uma preocupação exacerbada associada ao futuro (ou a falta dele). Nas últimas semanas eu senti isso no meu corpo. Não só a taquicardia, o nervosismo, a dificuldade em dormir, mas principalmente o medo. E medo pode ser algo perigoso porque paralisa a gente e traz desesperança.

Foi com esses sentimentos que tomei a estrada rumo ao I Encontro Internacional Territórios e Saberes que aconteceu entre os dias 9 e 13 de setembro em Paraty (RJ). Saindo das paisagens queimadas e com pastagens degradadas do interior de São Paulo, passando pela nuvem de fumaça na Serra do mar, cheguei ao calor escaldante do litoral fluminense. Mas, ao invés de me sentir sufocada, pude, pela primeira vez, respirar fundo porque me deparei com um cenário fértil e abundante de vida, sociobiodiversidade e ancestralidade.  Com o esperançar vivo e vivente dos agricultores familiares, pescadores, marisqueiros, extrativistas, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas e indígenas, além de estudantes, professores, pesquisadores, gestores públicos e ambientalistas. Pessoas e comunidades que estão na linha de frente das lutas socioambientais, sustentando o céu e indicando os caminhos para outros mundos possíveis, a partir das vivências de seus territórios.

Ao longo de uma semana de atividades, o evento demonstrou, na prática, que é possível (e fundamental) o diálogo de saberes tendo os povos e comunidades tradicionais como protagonistas. Eles têm soluções ou, ao menos, alternativas, ao destino catastrófico que temos construído para nós. Como traz a carta final do evento: “o território fala. Pois, escutemos!” Com isso, podemos encontrar e partilhar ações que não só resolvam as questões locais, mas também sirvam como potencializadores de transformações que podem ser replicados, servir de inspiração e fomentar políticas públicas que construam e promovam o Bem Viver.

Apesar de toda sabedoria, experiência e força desses atores estar sendo mais reconhecida, ainda falta garantir o acesso a recursos de forma acessível, capilarizada e desburocratizada para os territórios.

O primeiro desafio é garantir mais recursos em si, porque sim, eles existem em enorme volume, mas ficam concentrados em grandes organizações. Em ano de COP29, que terá grande foco no financiamento climático, e com a COP30 prevista para acontecer no Brasil no ano que vem, é necessário que as comunidades e povos tradicionais adentrem, de fato, o campo das negociações climáticas e consigam disputar de maneira mais justa os recursos dessa e de outras agendas.  E aí entra a atuação dos fundos independentes e dos fundos e fundações comunitárias.

Porém, não se trata apenas de mobilizar recursos, é preciso também construir uma governança para a descentralização desses recursos de modo contextualizado e mesmo descolonizado. Porque se a burocracia serve, por um lado, para garantir transparência e controle social, por outro, ela dificulta e às vezes até impossibilita que o recurso seja utilizado. E, uma vez, utilizado ainda tem a prestação de contas.

Durante o encontro, discutiu-se as dificuldades que as lideranças comunitárias enfrentam ligadas ao baixo letramento causado pelo sucateamento da educação e a complexidade dos trâmites administrativos, jurídicos e contábeis dos editais. Além disso, muitas vezes elas têm que deixar o trabalho, o lazer ou a militância para “cuidar de um documento que ficou faltando”. E escrever projeto, arrumar a documentação, submeter ao edital, mobilizar parceiros, exigem horas de trabalho que não são remuneradas, sem contar o sentimento de frustração quando não são contemplados com o apoio.

Por fim, há o desafio de fazer uma gestão dos recursos de modo que atendam as necessidades e desejos reais das comunidades. Saber investir no que é prioritário pode parecer simples, mas não é, sobretudo quanto maior for a carência da comunidade. Tampouco se busca usar o recurso de modo mais estratégico e estruturante, já que um projeto tem prazo de validade e muitas vezes não permite pagar os custos de existência do coletivo ou da organização  que representa a comunidade.

Apesar de tudo, têm sido criados arranjos inovadores e arquiteturas colaborativas para superar essas lacunas. É nisso, por exemplo, que se baseia o campo da filantropia comunitária, cuja premissa é a doação de confiança e o protagonismo das comunidades na destinação e no uso dos recursos financeiros. Que rompe a lógica das comunidades terem que se adequar ao edital de um agente externo que as pauta.

A filantropia comunitária também reconhece que já existem recursos, mesmo não financeiros, circulando pelas comunidades e territórios que podem e devem ser valorizados; busca traduzir informações legais, apoiar lideranças e coletivos não formalizados, realizar formações e apoio técnico, promover trocas de experiências, produzir conhecimento e incidir em políticas públicas.

O encontro, que de fato foi entre territórios e saberes, demonstrou a relevância dessas alternativas no campo do financiamento, comprometidas em potencializar os povos e comunidades tradicionais, pois somente assim poderemos barrar o projeto de destruição e morte que está em andamento, e manter viva a esperança por um mundo melhor. Mesmo com eco-ansiedade, sigo acreditando que é possível.

 

Fonte: Sputnik Brasil/Le Monde

 

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