sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Afinal, de quem é a culpa pela crise conjuntural no Brasil?

Lula? Haddad? Boulos? Quem são os verdadeiros responsáveis pela crise política no Brasil?

Lula estaria fazendo “média” com o centrão em vez de enfrentá-lo. Haddad aposta no equilíbrio fiscal e faz média com o “mercado” e o Banco Central. Boulos busca tornar sua imagem mais suave e menos radical para conquistar o voto de uma suposta classe média. Prega o amor e faz coraçãozinho com as mãos… Nos últimos anos, a sociedade tem experimentado uma crescente individualização das responsabilidades, o que reflete um afastamento das ações coletivas em prol de uma visão mais centrada no indivíduo. Esse fenômeno pode ser observado em diversos âmbitos, desde o mercado de trabalho até a política, onde a pressão por resultados e a busca por soluções rápidas tendem a atribuir culpa ou o sucesso a figuras específicas, em vez de considerar o papel das estruturas e das classes sociais. Com isso, as ações coletivas, que historicamente foram motores de mudança e de transformações sociais, acabam sendo enfraquecidas ou desvalorizadas. A ênfase na responsabilização individual muitas vezes desconsidera a complexidade dos desafios que enfrentamos, sugerindo soluções simplistas para questões que, na realidade, exigem um esforço conjunto, uma colaboração efetiva e a construção de alternativas solidárias.

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A realidade em que vivemos, marcada pelo avanço do neoliberalismo, parece carecer de uma oposição à altura que consiga efetivamente combater sua narrativa dominante. A fragmentação das lutas sociais, somada à falta de uma articulação mais robusta entre os movimentos populares, enfraquece o campo progressista. Em grande parte, essa desarticulação é fruto de um projeto que promove o enfraquecimento das organizações coletivas, substituindo-as por um discurso que valoriza o mérito individual e a competição entre os próprios trabalhadores e cidadãos. Nesse contexto, o neoliberalismo prospera sem grandes obstáculos, absorvendo e neutralizando iniciativas que poderiam, de outro modo, formar uma resistência mais coesa e eficaz.

Em que pese a complexidade da atual conjuntura nacional e internacional, tornou-se lugar comum fazer críticas pessoais (ou individuais) às lideranças nas disputas políticas. Se as críticas viessem apenas do campo político/ideológico da direita, seria compreensível, especialmente num ambiente permeado pelo moralismo e pelo conservadorismo. O que poucos articulistas de esquerda se perguntam é: onde está o protagonismo dos atores sociais, coletivos, populares do campo progressista? E os partidos políticos de esquerda? E os mandatos legislativos desse campo? Pode um presidente, sem o protagonismo de apoio social, confrontar o tsunami formado por um Congresso conservador e seus aliados, onde a oposição tem maioria, e que busca enfraquecer o poder executivo capturando parte do seu papel constitucional? Pode um ministro sem apoio social enfrentar as forças de um “mercado” que está articulado a Estados nacionais que reinventam novas relações de dominação colonial e controlam o mundo da comunicação revolucionado pela mudança tecnológica? E um candidato a prefeito nascido no seio da luta popular pela moradia para os excluídos em uma sociedade marcada pelo patrimonialismo?

Estamos falando de figuras notáveis. Estamos falando de um líder que passou mais de 500 dias na prisão, vítima de perseguição judicial, e que, quando inocentado, reuniu coragem e determinação para se candidatar e vencer, pela terceira vez, as eleições presidenciais. Talvez nenhuma outra pessoa no planeta teria assegurado essa vitória ao campo da esquerda nas circunstâncias históricas dadas. Vale lembrar também a tranquilidade do Haddad diante da enxurrada de questionamentos que vieram de vários lados do espectro ideológico e do Congresso para finalmente e surpreendentemente apresentar, em um ano e meio, um resultado de crescimento econômico, inflação baixa e recorde de empregos formais depois de um período de quase uma década. Para falar das qualidades indiscutíveis do Boulos, vamos lembrar de um evento passível de ser acessado e comprovado: o programa de entrevistas ao vivo-  Roda Viva da TV Cultura, em 26/08/2024. Questionado por parte de entrevistadores de corte conservador a respeito de suas antigas falas e ações relacionadas à sua militância junto ao movimento de luta popular e interrompido insistentemente em suas respostas, o candidato a prefeito da cidade de São Paulo manteve o equilíbrio emocional e virou o jogo. Mostrou largo conhecimento sobre a cidade de São Paulo e sua gestão além de divulgar suas propostas de governo que, é de conhecimento geral, foram construídas junto com uma equipe de especialistas e estudiosos com experiência na gestão da cidade.

Mas o foco desse texto não é a defesa dessas e de outras lideranças de esquerda que têm a coragem e a generosidade de nos representar e participar de disputas num contexto difícil e desgastante. Nem de censurar as críticas que podem nos ajudar a evoluir, acertar, melhorar nosso desempenho na luta por uma sociedade menos desigual, menos egoísta, mais solidária, e menos predatória ao futuro do planeta. Nosso principal foco é despertar a atenção para a fragmentação das nossas organizações. Para esse acento egoico ao invés de coletivo, cooperativo, articulador das iniciativas do nosso campo.

Sabemos que a classe trabalhadora, que conquistou o Estado do bem-estar social no final dos anos 1940, vem passando por uma profunda mudança no mundo (ocidental) e no Brasil. Sabemos dos retrocessos pelos quais passamos a partir de 1980, nas políticas públicas, nos direitos trabalhistas, nos direitos humanos e sociais, em contexto de financeirização da economia global e de um novo imperialismo. No Brasil, assim como em todos os países do chamado sul global, essas conquistas nunca foram universais. Vivemos quase quatro séculos de escravidão que deixou marcas vivas até hoje. Mas é importante reconhecer que a industrialização e a urbanização pareciam mostrar um caminho de emancipação nacional em que pese as contradições vividas. Atualmente temos todas as evidências de mudanças históricas que atingem a humanidade: econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais. A desigualdade cresce e a riqueza se concentra na maior parte dos países do mundo. Uma nova subjetividade é resultado das formas de comunicações revolucionadas pela nova tecnologia. Estamos vivendo ataques aos Estados, à democracia burguesa, à ciência, à racionalidade. A tarefa de discorrer sobre esses temas está muito acima da competência de quem escreve essas linhas mas é preciso reinventar a participação política. Apesar da pouca bagagem teórica algo parece evidente: se houvesse mais articulação, proximidade, cooperação e disponibilidade entre as forças progressistas não tinha para ninguém. Não é necessário evitar as críticas, mas é necessária a disposição para a unidade. Mais unidade e colaboração no interior dos partidos do nosso campo, mais unidade entre os partidos do nosso campo, mais unidade entre parlamentares do nosso campo, mais unidade entre lideranças sindicais do nosso campo, entre entidades religiosas progressistas, entre a Frente das Periferias, a Frente Brasil Popular, a Frente Povo Sem Medo, o MST, o MDT,a CMP, o Levante Popular da Juventude, os numerosos movimentos de moradia, o movimento estudantil, os movimentos de jovens da periferia, envolvidos com a  cultura, a arte, os esportes; os movimentos feministas, antirracistas, de gênero, entre outros.

Estamos falando de unidade em torno de valores históricos no campo da esquerda democrática: participação popular nas decisões em todos os níveis da federação, em especial no controle do orçamento público; diminuição da desigualdade social, econômica e territorial; sustentabilidade ambiental e respeito à natureza; reforma agrária e segurança alimentar; reforma urbana e direito à moradia e à cidade…não faltam propostas, não faltam planos, não faltam leis avançadas…No entanto, despejos coletivos de famílias e as dezenas de milhares de moradores de rua convivem com centenas de milhares de imóveis vazios em nossas cidades. Em São Paulo, eram aproximadamente 70 mil moradores em situação de rua e aproximadamente 600 mil imóveis vazios, segundo IBGE, em 2022. São os mesmos imóveis que não cumprem a função social prevista nas leis: Constituição Federal, no Estatuto da Cidades e nos Planos Diretores. Poderíamos lembrar ainda a verdadeira indústria da grilagem de terra no campo convivendo com o atraso na Reforma Agrária e na demarcação de terras indígenas. A implementação da lei está, frequentemente relacionada com a correlação de forças, com o desconhecimento da realidade social e territorial.

Se houvesse unidade em nosso campo, estaríamos lutando por questões emergenciais como a mundialmente abusiva taxa de juros no Brasil, que abocanha grande parte do nosso orçamento público em favor de ganhos financeiros. Ou contra a manipulação desse mesmo orçamento, como as inacreditáveis Emendas Pix, por exemplo. Ou estaríamos estudando, aprendendo e discutindo a Reforma Tributária e o tributo dos super-ricos. O que não dizer da manipulação das informações nas redes sociais. Se houvesse unidade entre nós, estaríamos dando apoio ao STF e ao Ministro Alexandre de Moraes. Estaríamos discutindo ainda medidas emergenciais diante da crise climática, do desmatamento, das queimadas, da mineração e da agricultura predatória; da especulação fundiária e imobiliária; do destino dos resíduos sólidos e do esgoto não tratado; da emissão de gases de efeito estufa no trânsito das cidades…Tudo isso depende das instituições e da mudança no modo de produção e consumo, é verdade. Mas também de nossas iniciativas coletivas e sociais cotidianas.

Por mais gigantesca que pareça a tarefa, as eleições municipais abrem uma oportunidade para o protagonismo dessa unidade e para reinventar a participação política capilarizada no território. O poder local é o local da democracia participativa, da democracia da proximidade, da construção cotidiana da vida democrática.   

Para a consolidação de um Estado de direito robusto e a ampliação contínua dos espaços democráticos, é imprescindível que se construa uma cidadania verdadeiramente participativa. O envolvimento ativo da população na formulação e no controle das políticas públicas, especialmente em relação ao direito à cidade, é uma peça-chave para a estabilização democrática e a proteção contra retrocessos. A falta de participação popular, promovida pelo avanço do pensamento neoliberal e pela revolução nas comunicações, pode ser o verdadeiro vilão que temos insistido em procurar. Ao fortalecer a agenda do direito à cidade e fomentar a cidadania ativa, criamos condições para uma resistência mais coesa e eficaz, capaz de transformar as estruturas que perpetuam as desigualdades e afastam a coletividade da construção de soluções duradouras, democráticas e ambientalmente sustentáveis.

 

Fonte: Por Ermínia Maricato e Cesar Vieira, no Jornal GGN

 

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