Antonio Martins: ‘Assim suicidam-se as
democracias’
Foi apenas a partir do
século XVII, e graças a biólogos como o toscano Francesco
Redi e o francês Louis
Pasteur, que humanidade descartou a ideia de geração
espontânea da vida. Prevalecia antes a noção,
expressa entre muitos outros por Aristóteles, de que a matéria inanimada possui
“princípios ativos”; e estes, em certas condições, germinam. Estas concepções
estavam enraizadas não só no senso comum (acreditava-se que camisas sujas
podiam dar origem a ratos), mas também nos meios científicos. Ainda no século
XVI, o médico e filósofo renascentista Paracelso, um precursor da
assepsia, descreveu a geração espontânea de seres complexos como sapos,
roedores, enguias e tartarugas a partir de fontes como ar, água, madeira podre
e palha… Uma crença semelhante parece cercar hoje a maior parte das análises
sobre o crescimento de correntes políticas que ameaçam a democracia. Elas
resultariam de uma espécie de “onda de ultradireita” que, assim como emergiu,
algum dia retornará às profundezas – guardando pouca relação, portanto, com as
escolhas políticas adotadas pelos governos dos países acometidos.
No início de setembro,
a “onda” chegou forte a dois estados do Leste da Alemanha – a Turíngia e a
Saxônia – que elegeram seu parlamento e governo. Pela primeira vez, desde
Hitler, um partido de extrema-direita venceu um pleito estadual. Na Turíngia,
onde 63% da população vive em áreas rurais, a AfD (Alternativa
para a Alemanha, xenófoba e supremacista) foi a mais votada, saltando de 23,4%
(em 2019) para 32,8%. Em seguida veio a direita tradicional (CDU, que se diz democrata-cristã, 23,6%). Na
Saxônia, fronteiriça à Polônia e à República Tcheca, e onde estão as cidades de
Dresden e Leipzig, o avanço foi menor, mas também expressivo: de 27,5% para
30,6%. Lá, a CDU venceu por pequena margem (atingindo 31,9%) e a AfD ficou em
segundo. Trata-se, nos dois casos, de ramos especialmente agressivos do
partido. Um de seus líderes, Björn Höcke,
chegou a repetir em discurso a saudação das SA nazistas, e até mesmo dirigentes
nacionais do partido pediram sua expulsão.
Como já ocorrera
nas eleições europeias de
junho, os eleitores castigaram os três partidos
da coalizão que governa a Alemanha. Suas marcas políticas principais são o
amplo envolvimento na guerra contra a Rússia e manutenção de um “ajuste fiscal”
contra os serviços públicos. Os social-democratas (SDP) ainda conseguiram manter-se nos dois
parlamentos, mas sua proporção de votos despencou para 6,1% na Turíngia e 7,3% na Saxônia (em 2019, o SDP
alcançara 8,2% e 12,4%, respectivamente. Os liberais (FDP) estão fora dos dois parlamentos,
tendo obtido em torno de 1% dos votos nos dois estados. Os verdes caíram fora do legislativo da
Turíngia (3,2%, abaixo da cláusula de barreira de 5%) e mantiveram-se por muito
pouco na Saxônia (5,1%, bem menos que os 8,6% em 2019).
Turíngia e Saxônia têm
juntas apenas 6,2 milhões de habitantes – ou 7% da população alemã. Mas os
sinais de que impopularidade grave do governo liderado pelo primeiro-ministro
Olaf Scholz (SPD) estão em toda parte. As eleições para o governo federal ocorrerão
em setembro de 2025. Se fossem realizadas hoje, social-democratas, verdes e
liberais alcançariam, juntos, pouco
mais de 30% dos votos – em queda brusca frente aos 51,9% obtidos em 2020 e sem
possibilidade de formar coalizão majoritária. O declínio pode agravar-se já no
próximo domingo (22/9), quando haverá eleições em
mais um estado do Leste – o Brandemburgo. É provável que o SPD perca o governo
(tem menos de 20% das intenções de voto) e que tanto Verdes quanto Liberais
fiquem abaixo da cláusula de barreira e saiam do legislativo. Mas… e a
esquerda?
“Agora, entramos na
cena política”, disse a escritora, filósofa e deputada alemã Sahra Wagenknecht
na primeira entrevista coletiva que concedeu após as eleições na Turíngia e
Saxônia. Nascida há 55 anos na então Alemanha Oriental, ela é a fundadora e líder
de um partido de que se tornou exceção notável, numa Europa em que a esquerda
vive, na grande maioria dos países, prolongado declínio. Batizado
provisoriamente com o nome de sua criadora, a BSW (Bündnis Sahra Wagenknecht, ou
Aliança Sahra Wagenknecht) surgiu em há apenas oito meses.
Mas obteve 15,8% dos votos na Turíngia e 11,8% na Saxônia. Despontou como
terceira força nos dois Estados, bem à frente dos social-democratas, verdes,
liberais e da esquerda tradicional (o Linke). E já chegara a
6,2% em junho, nas eleições para Tão incomuns quanto a rápida emergência da BSW
são as opiniões de Wagenknecht sobre dois temas contemporâneos cruciais. Ela
acredita que a ascensão da ultradireita pode ser contida, precisamente por não
se tratar de uma “onda” – mas resultado direto da camisa de força em que os
partidos do establishment se meteram. Suas políticas
impopulares levam-nos a sangrar – a perder apoio popular continuamente. Porém,
sua rendição ao neoliberalismo impede-os de buscar saídas, ao contrário do que
fizeram por cerca de três décadas, no pós-II Guerra. O poder econômico e a
mídia ampliam a cegueira, pois bloqueiam qualquer tentativa de sair da
ortodoxia. Abre-se assim uma avenida para os extremistas, por mais bizarros que
sejam.
A esquerda não cresce
– e aqui está a segunda opinião disruptiva de Wagenknecht – porque afastou-se
de forma arrogante das maiorias. Incapaz de formular políticas para os novos
dramas populares (a precarização, por exemplo), refugia-se em seu próprio círculo.
Adota como programa prioritário pautas comportamentais, que seduzem
principalmente os setores intelectualizados das sociedades (em geral, mais
favorecidos que a média, em termos econômicos). Passa a ser vista como parte de
uma elite esnobe e indiferente – daí sua impotência. As ideias centrais da
fundadora da BSW estão expressas numa longa entrevista que
ela concedeu à edição de março-abril da New Left Review. Dizem
muito também à esquerda brasileira e seu labirinto.
Ao longo do diálogo,
Wagenknecht põe a nu as dimensões da crise alemã – algo pouco apresentado nas
mídias ocidentais. O governo do chanceler Olaf Sholz aderiu sem críticas ou
mediações à guerra na Ucrânia e, em especial, às sanções econômicas que visavam
levar a economia russa ao colapso. Berlim é o segundo maior fornecedor de armas a Kiev (17,7 bilhões de euros até abril deste ano) e
generais alemães já consideraram enviar seus soldados ao front – algo que
sequer Joe Biden cogitou. Os gastos com armamentos, que haviam se mantido em
patamares muito baixos por décadas, saltaram a 3% do PIB – o que contribuiu
para achatar as despesas sociais. Porém o choque mais grave foi causado pela
decisão de interromper a compra de gás natural russo, trocando-o pelo gás
liquefeito norte-americano muito mais caro (e ambientalmente daninho, pois é
transportado em navios).
As contas domésticas
de eletricidade subiram cerca de 40%, em dois anos. E a antes poderosa
indústria alemã foi especialmente atingida. O economista Michael Roberts registra: os altos preços da
energia sufocaram os gastos em inovação, transição energética e mesmo nas
atividades centrais da maior parte das indústrias. Além disso, aceleraram os
planos de transferir fábricas para outros países. Em maio último, por exemplo,
os executivos da emblemática Volkswagen anunciaram intenção de fechar fábricas na Alemanha,
pela primeira vez nos 87 anos da empresa.
Muito mais devastador,
acrescenta a deputada alemã, é o efeito sobre o núcleo do tecido industrial de
seu país, aquilo que tornou o modelo alemão distinto, por exemplo, do
anglo-saxão. Trata-se do chamado Mittelstand, constituído
por milhares de empresas médias (normalmente, entre 100 e 200 empregados),
altamente especializadas do ponto de vista tecnológico e imbricadas nas cadeias
produtivas – como fabricantes de partes elétricas e autopeças, por exemplo.
São, em geral, de propriedade familiar. Ao contrário das grandes corporações,
sua cultura empresarial não é obcecada com o lucro do trimestre seguinte – mas
com o longo prazo, a próxima geração. Por isso, procuram reter seus
trabalhadores especializados. O acesso ao gás russo foi, por décadas, um dos
fatores que permitiram seu sucesso e reputação internacionais. Entre 2022 e 23,
porém aquelas que fazem uso intensivo de energia tiveram queda de 25% em suas
receitas – algo sem precedentes. Agora, iniciaram demissões em massa, o que
pode ter efeitos dramáticos sobre a média dos salários, o poder de compra dos
trabalhadores e a própria coesão das comunidades.
Ainda que suas
consequências sejam dramáticas, a submissão de Berlim à política de guerra dos
EUA apenas tornou mais grave uma crise social que se armara antes, relata
Wagenknecht. A resposta da Europa à Grande Recessão de 2008-09 e à longa
estagnação que se seguiu tem sido um ataque permanente ao Estado de Bem-estar
social e à infraestrutura, em nome da “disciplina fiscal” e dos “orçamentos
equilibrados”. Na Alemanha, o fenômeno assumiu aos poucos tons dramáticos. No
grupo populacional entre 20 e 34 anos (as gerações pós-2008), uma em cada cinco
pessoas já não tem uma qualificação escolar formal. A cada ano, 50 mil
estudantes, deixam a escola sem concluir seus estudos. Há um déficit
habitacional de 700 mil moradias. Uma contrarreforma trabalhista adotada na
primeira década do século criou um duplo mercado de trabalho. Agora, 25% dos
assalariados tem direitos reduzidos e salários ao menos 33% inferiores ao
mediano. O sistema de trens, antes impecável, sofre atrasos constantes e foi em
parte privatizado. Há três mil pontes em estado precário, e sem reparo.
O desencanto com a
democracia (e a brecha para a ultra-direita) crescem porque a degradação das
condições de vida da maioria é acompanhada pela sensação de que já não há
amparo nos partidos do establishment. No início deste século,
as duas famílias políticas que deram sentido ao sistema institucional alemão –
social-democratas e democrata-cristãos – abandonaram suas antigas convicções e
o que as diferenciava, ao aderirem sem críticas à ortodoxia neoliberal. Começou
com o SPD. Foi no governo do chanceler Gerard Schöeder (1998-2005),
frisa Wagenknect, que se descaracterizou a “economia social de mercado alemã”.
Marcada por regulação, participação ativa dos sindicatos na gestão das empresas
e presença de bancos locais ou comunitários (que inclusive eram acionistas influentes
das indústrias), ela deu lugar a um modelo tecnocrático, orientado apenas pelas
lógicas de lucro. A descaracterização do SPD aprofundou-se com o tempo, de modo
que hoje seus líderes “já não têm política própria e poderiam estar
confortavelmente nas fileiras do CDU ou nos liberais”. Alguma semelhança com o
Brasil?
Os democrata-cristãos
(CDU) descaracterizaram-se igualmente. Wagenknecht lembra que também eles
sustentavam posições favoráveis aos direitos e garantias sociais. Ao contrário
do SPD (muito ligado aos sindicatos), as igrejas eram a base de seus laços sociais
com a população, seu canal para dialogar com a “gente comum”. Fazia parte da
“doutrina social da igreja”. A nova face do partido, porém, é a de Friedrich
Merz, seu atual líder. Em relação à guerra, é
ainda mais beligerante que Scholz, liderando com frequência, no Parlamento,
pressões sobre o governo, por maior envolvimento na campanha contra a Rússia.
No terreno interno, defende um capitalismo Black Rock (megafundo do qual foi
executivo): elevação da idade de aposentadoria, congelamento do salário mínimo
e fim de benefícios sociais.
A dissolução das
referências fica completa quando se observa a tragédia dos Verdes, cuja origem
(em 1980), está associada ao vastíssimo movimento anti-guerra nuclear daquela
década. Duas posturas caracterizam o partido hoje, segundo a criadora do BSW.
Primeiro, a atitude mais agressiva pró-guerra e pró-OTAN de todo o espectro
partidário alemão – a ponto de a ministra (verde) das Relações Exteriores,
Annalena Baerbock afirmar que sustentará a participação no conflito
independentemente do que pensem os eleitores (segundo sondagem recente, 65% são
favoráveis a um cessar-fogo e 68% a negociações de paz). Segundo, política
“ambientalista” baseada não no investimento público (os fundos públicos para
transição energética estão congelados), mas em relacionar a crise climática com
decisões individuais e em impor à população o ônus da mudança.
Boa parte da
impopularidade da coalizão no governo deve-se, aliás, à elevação do preços do
diesel para agricultores e exigência de uso de bombas de calor, muito caras,
para aquecimento das residências (a medida foi revogada por sua repercussão
especialmente negativa). E tudo pode ficar pior. Às vésperas das eleições na
Turíngia e Saxônia, sempre em nome do “déficit zero”, o ministro das Finanças,
Christian Lindner, líder do FDP liberal, insistia em novo corte nos gastos
sociais, agora de 50 bilhões de euros…
Por fim, o
próprio Partido de Esquerda (Die Linke), do qual a BSW surgiu no início do ano como dissidência,
mostrou-se pouco capaz de confrontar o establishment, talvez
por prezar demais seus vínculos como o poder. O governo da Turíngia, governado
até as últimas eleições pela agremiação, somou-se, há muitos meses, ao
movimento pelo envio de armas à Ucrânia.
“Até que lançássemos a
BSW, a ultradireita era a única que criticava este leque de políticas”, diz
Sahra Wagenknecht à New Left Review. A frase explica tanto o
sucesso do novo partido quanto a cilada em que estão se trancando o antigo
centro político e também a esquerda que insiste em mimetizá-lo – bem no momento
histórico de seu colapso… O cientista político alemão Wolfgang
Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck,
descreve o fenômeno com ácida ironia, no livro Entre Globalismo e Democracia (ainda sem tradução para o português):
“A
resistência das elites em crise e de suas escolas de pensamento desprovidas de
senso de realidade parece não ter limites. Até mesmo em tempos de crise, elas
insistem em manter a mesma rota, ocasião após ocasião, muito convencidas de
poder arrombar o muro na próxima tentativa, com sua cabeça tão dura como o
cimento”…
Sahra Wagenknecht é
uma intelectual pública, um tipo cada vez mais raro nos parlamentos e governos
contemporâneos. Formada em Filosofia e Literatura, publicou em 1988, ao
graduar-se, o primeiro livro – um estudo sobre Goethe e sua poesia, em que ela
vê uma crítica precoce do capitalismo.
Chegou à militância após a leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Migrou para a Economia, tendo escrito duas dezenas de obras, entre as
quais um exame da crítica do jovem Marx a Hegel, uma análise das conferências
de Rosa Luxemburgo, e trabalhos teóricos voltados à intervenção política, como
“Liberdade sem capitalismo”, “Os mitos modernizadores”, “Contraprograma para a
comunidade e a coesão”, “Liberdade sem capitalismo” e “Contra a esquerda
neoliberal” (nenhum deles foi ainda traduzido ao português). Mas este amor à
cultura e à teoria não a impediram de afastar-se do que chama de esquerda
lifestyle – cuja prepotência e desejo de diferenciar-se das minorias
são, para ela, uma das causas do crescimento da ultradireita.
Esta atitude estaria
na base do que Wagenknecht vê como ênfase exagerada nas pautas de costume. Por
um lado, ela pensa, a esquerda renunciou compreender as novas realidades em que
estão mergulhadas as maiorias, e a formular saídas para seus dramas atuais. Por
outro, encantou-se com um novo público: a classe média que descola-se dos
velhos preconceitos relacionados a sexo, gênero, “raça” e comportamento – mas
que não está disposta a refletir (e, menos ainda, a agir) sobre as
estruturas que produzem a desigualdade e a opressão.
O resultado é algo que
– o leitor reconhecerá – ocorre também no Brasil. Salvo raras exceções, não há
mais “trabalho de base”. Nas periferias, por exemplo, quase só atuam as igrejas
evangélicas. Mas será fácil encontrar múltiplos “ativismos” críticos (dos
partidários aos antirracistas e antipatriarcais) nos shows (às vezes
caríssimos) de artistas bem-pensantes, em restaurantes e bares diferenciados
(em especial, os étnicos), nas mostras de cinema, nos entrepostos de comida
orgânica, nos lançamentos de livros que saúdam a condição LGBTIA+.
Surge uma cisão
indesejável. Esta esquerda estilo de vida afasta-se do
quotidiano popular e de seus símbolos (“Narciso acha feio o que não é
espelho”…). “O ecossistema progressista rejeita tudo o que vem da cultura de
massas”, como aponta, num vídeo
inspirado, a comunicadora Débora Baldin. Ao mesmo
tempo as maiorias, que identificam a esquerda com esta classe média descolada,
veem-na não apenas como distante – mas como afetada, normativa e, em última instância,
parte do establishment que as oprime.
“Ninguém gosta de que
os políticos lhe ‘ensinem’ o que comer, que termos usar, como pensar”, frisa
Wagenknecht. A ultradireita tem sido extremamente sagaz em preencher a brecha.
No terreno comportamental, exalta seus vínculos com os aspectos mais sombrios
da formação cultural e psíquica das sociedades. Ergue o espantalho da
masculinidade e da branquitude supostamente ameaçadas. No campo das relações de
classe, seus laços com o grande capital – e em especial, o rentismo – são
notórios (vide a relação Bolsonaro – Paulo Guedes). Mas, como a esquerda não
propõe outro horizonte às maiorias (por estar aprisionada por sua obsessão com
a “disciplina fiscal”), é fácil aos neofascistas fazer discursos genéricos em
favor do bem-estar. Ao conversar com os assistentes de um comício da AfD na
Turíngia, o repórter da revista Economist notou que eles pareciam atraídos não pelo
discurso de ódio aos imigrantes, mas pelo fechamentos de hospitais e ausência
de professores nas escolas.
A BSW e sus líder são
às vezes acusados, por alguns setores de esquerda, de adotarem postura
antiimigrante. Na entrevista à New
Left Review, a deputada contra-ataca, ao classificar como
“neoliberais” as políticas migratórias defendidas por seus opositores. ´
A partir de 2010,
chegaram à Alemanha ondas sucessivas de imigrantes e refugiados. São hoje cerca de 15 milhões, pouco menos de 20% da população.
Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte deles
tem, além de abrigo (majoritariamente, nos estados do Leste), direito a escolas
e hospitais públicos. Todas as pesquisas de opinião apontam que este fenômeno
está diretamente associado ao crescimento da ultradireita. Como ele coincide
com o ataque ao estado de bem-estar social, abundam os casos em que os
imigrantes disputam com os alemães mais pobres o acesso aos serviços sociais.
Wagenknecht pensa que
a política de acolhimento fácil é generosa apenas na aparência – por dois
motivos. Do ponto de vista imediato, o agigantamento da imigração, frisa ela, é
resultado direto das guerras promovidas pelo Ocidente (com participação direta
ou apoio da Alemanha). Os refugiados provêm, muito majoritariamente, de países
(Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Yêmen, Ucrânia) em que as intervenções da
OTAN destruíram as relações sociais, a infraestrutura e, em alguns casos, o
próprio Estado nacional). De que serve receber alguns milhões de refugiados,
depois de destruir seu país e deixar para trás um número muito maior de pessoas
vivendo em condições indignas?
Numa análise a médio e
longo prazos, prossegue a deputada, a “política neoliberal de imigração”
reforça – ao invés de amenizar – as desigualdades internacionais e as relações
colonialistas. Na Alemanha, ela devasta as condições de luta e barganha do conjunto
dos trabalhadores. Os imigrantes são pressionados, pelas próprias políticas
públicas que supostamente os favorecem, a encontrar qualquer trabalho, o mais
rapidamente possível. Tendem a aceitar salários e direitos rebaixados.
Nos países de origem,
a situação é ainda pior. A imigração priva as sociedades, em geral, dos
trabalhadores mais capacitados, anulando o enorme esforço social dispendido em
sua formação. Um dos casos mais dramáticos é o das enfermeiras. Há cerca de um
ano, o site Peoples’ Health Dispatch mostrou, em matéria (traduzida por Outra Saúde) como, para tapar
buracos em sua força de trabalho, governo alemão desfalca sistemas de saúde ao
redor do mundo – violando inclusive códio de práticas da Organização Mundial de
Saúde.
Wagenknecht frisa que
sua posição não é xenófoba. Lembra que tanto a liderança quanto a representação
parlamentar da BSW são as mais multiculturais do espectro político alemão (ela
mesma é filha de uma alemã e um iraniano, e alterou seu nome – de Sarah para
Sahra – para deixar claro o vínculo). Propõe alternativas concretas. Em
primeiro lugar, tentar interromper as guerras do Ocidente, cessando
completamente a participação da Alemanha na campanha da OTAN contra a Rússia na
Ucrânia e o apoio (vultosíssimo) ao massacre de Israel contra ao palestinos.
Além disso, inaugurar políticas de redistribuição internacional de riquezas,
com transferência obrigatórias (e não “caritativas”) de recursos para financiar
o desenvolvimento sustentável dos países do Sul.
O futuro da BSW é
incerto. No curto prazo dos próximos doze meses, há três desafios. Obter, no
próximo domingo, nas eleições do estado de Brandenburgo (que faz o entorno de Berlim), um novo resultado positivo,
quer permita chegar ao Parlamento local. Participar, em seguida, de modo que
impacte o eleitorado, das negociações para formação dos governos da Turńgia,
Saxônia e do próprio Brandenburgo. (O partido é essencial para formar maioria
que supere a AfD; mas tem dito que não busca cargos – e que não apoiará nenhum
governo que não assuma posição clara contra a guerra. Nessas condições, um
impasse parece contratado).
Por fim, o partido
prepara-se para as eleições federais alemãs, que
ocorrerão no máximo até setembro de 2025. Nelas, o multimilionário Friedrich
Merz, que liderou o CDU para posições ultraliberais, aparece hoje como
favorito; mas mas políticas surpreendentes da BSW podem levá-la a exercer um
papel destacado, como frisa o cientista político Antonious Souris, ouvido pela agência de notícias Deutsche Welle.
No médio e longo
prazos é que tudo se complica. No Ocidente, a esquerda segue sem perspectivas
claras, pelo menos desde a crise de 2008. Cada novo intento tem resultado em
esperança seguida de frustração. Em 2011, a
ocupação das praças espanholas levou
à criação do Podemos – um partido-movimento que se embriagou com a
possibilidade de dividir o poder; esqueceu sua base e sua proposta de sacudir a
velha política com um banho de participação direta; e ao fazê-lo, terminou
tragado. Entre 2011 e 2013, houve gigantescas manifestações pelos direitos
sociais em Portugal (1 2), na Turquia e no Brasil, mas os movimentos que as convocaram e dirigiram não tinham
programa claro para continuá-las (e, no caso brasileiro, nem estofo
organizativo para evitar que fossem capturadas pela direita). De 2015 a
2020, Jeremy Corbyn manteve-se
na liderança do Partido Trabalhista do Reino Unido, e ao fazê-lo transformou-o numa
ferramenta de reflexão política e mobilização social (especialmente dos
jovens). Porém, fracassou no plano tático, ao aceitar o desafio dos
conservadores para disputar uma eleição que não poderia vencer. Em 2019, os
jovens e os movimentos sociais chilenos enfrentaram repressão duríssima da
polícia, provocaram o fim de um governo conservador e chegaram a eleger um
presidente da República e uma Assembleia Constituinte em que as forças
anticapitalistas tinham ampla maioria. Mas sucumbiram em poucos meses, devido à
ausência de um programa claro de mudanças e à ilusão de que, à falta dele,
poderiam bastar gestos simbólicos, como a eleição de uma mulher Mapuche para a
presidência da Assembleia.
Exemplos semelhantes
abundam – e não é algo inteiramente novo. No 18 Brumário de Luís
Bonaparte, Marx lembrou Shakespeare para comparar o proletariado – a
classe revolucionária de seu tempo – a uma velha toupeira. Ela avança com
desenvoltura sob a terra, cava a possível ruína de seus opressores mas, uma vez
emersa à superfície, mostra-se cega e incapaz de encontar os caminhos que
levarão à transformação social.
Ainda assim, cada
tentativa acrescenta uma peça ao quebra-cabeças da reviravolta possível. Com o
Movimento Passe Livre brasileiro aprendemos que, em tempos de crise, vinte
centavos podem levar milhões às ruas. O Chile mostrou a força das coalizões de
movimentos sociais díspares, mas sintonizados na mesma busca de vida livre das
lógicas neoliberais. Com Corbyn, soubemos que os mesmos Estados que imprimem
dinheiro para multiplicar a riqueza dos rentistas podem fazê-lo em favor dos
serviços públicos de excelência e da garantia de ocupações dignas para todos.
Seja qual for o futuro
do BSW e de Sarah Wagenknecht, estamos compreendendo com sua emergência notável
que a ultradireita não nasce por geração espontânea – mas das grandes brechas
abertas pelas ausências da esquerda; que é possível reparar estes vazios; mas
que, para isso, os movimentos empenhados em superar o capitalismo precisam,
como disse certa vez Bertolt Brecht, “saber abandonar a si mesmos”
Fonte: Outras Palavras
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