Precarização e estigma contra as camgirls
O que aconteceria se a
Uber ou o iFood não pagassem os entregadores durante sete dias? Imagine então
se esses mesmos trabalhadores fossem impedidos de trabalhar, perdessem acesso
às suas contas e não pudessem sacar os valores que ficaram lá retidos. Parece
absurdo? Mas é o que está acontecendo com criadoras de conteúdo sexual da maior
plataforma de transmissão ao vivo do Brasil.
No dia 2/9, a Camera
Prive alterou seus termos de uso, incluindo em suas cláusulas, entre outras
coisas, o impedimento de que criadoras transmitam simultaneamente em outras
plataformas. Entretanto, antes mesmo da divulgação das alterações, no dia 30/8,
criadoras já relataram o bloqueio de suas contas – e de seus pagamentos.
O Camera Prive é uma
empresa do ramo da Tecnologia da Informação que inicialmente fornecia serviços
de streaming, como a transmissão de aulas EAD. Hoje, é a maior empresa no ramo
do camming da América Latina, contando com uma filial nos Estados Unidos.
O camming consiste de
um serviço pago para relações online, sexuais ou não. A estrutura do Camera
Prive é estratificada em salas e perfis, nas quais cada camgirl pode organizar
sua própria coleção de fotos e vídeos — como nos perfis encontrados em redes sociais.
Em cada perfil, as criadoras delineiam os serviços oferecidos durante os
“bate-papos”, categorizados em formatos públicos ou privados/exclusivos. Após a
interação, é possível atribuir uma classificação que varia de zero a cinco
estrelas, além de escrever comentários.
A remuneração
algorítmica funciona da seguinte forma: dentro do Camera Prive há uma tabela
delineando faixas de preço para cada tipo de chat: no chat padrão, caracterizado por conversas
com vários clientes conectados simultaneamente, o valor é de R$ 1,20 a R$ 2,10
por minuto por usuário conectado. No chat privado, com interação apenas entre a
criadora e o cliente, as tarifas variam de R$ 2,10 a R$ 3,00 por minuto.
No chat privado,
existe a opção de um voyeur — um indivíduo que observa o diálogo privado sem a
capacidade de intervir —, que paga uma taxa de R$ 1,20 a R$ 2,40 por minuto. E
uma modalidade exclusiva, com interação apenas entre a criadora e o cliente, com
taxas de R$ 2,70 a R$ 3,60 por minuto.
Outras modalidades
foram introduzidas recentemente incluindo o Prive Call, que permite que
clientes façam chamadas diretas para as criadoras mesmo que elas não estejam
aparecendo na plataforma, a um custo de R$ 3,00 a R$ 4,20 por minuto, e o Prive
Toy, pelo qual clientes operam remotamente um brinquedo sexual utilizado pela
criadora durante a apresentação, custando entre R$ 0,60 e R$ 2,10 por minuto.
A remuneração das
criadoras é estruturada de forma análoga à dos aplicativos de transporte e
entrega: aproximadamente 30% a 50% de seus ganhos são destinados à
empresa/plataforma e o restante é depositado às trabalhadoras.
• ‘Só hospedagem’
Um aspecto
interessante: o termo “prostituição” é tratado nos termos de uso do Camera
Prive como atividade ilegal. O que se oferece ali são duas categorias de
serviços: hospedagem de conteúdo e facilitação de transações de pagamento entre
criadoras e clientes. Consequentemente, afirmam serem as criadoras que
contratam o serviço de “aluguel” da plataforma, e não o contrário – o que exige
um procedimento de envio de documentos e validação de dados.
Ainda que os termos de
uso procurem se distanciar da promoção de serviços sexuais, é notório que o
camming tenha se estabelecido como uma modalidade de trabalho sexual mediada
por plataforma. Pelos termos usados em seus contratos, o Camera Prive se distancia
da possibilidade de ser enquadrado juridicamente como “cafetinagem digital” ou
intermediação de serviços sexuais. A empresa busca, assim, distanciar sua
atividade da exploração sexual ou de ser caracterizada como um ambiente de
prostituição, conforme previsto nos artigos 229 e 230 do Código Penal.
Especificamente no
contexto brasileiro, as plataformas, cientes da informalidade histórica
associada ao trabalho sexual, implementam medidas e definições estratégicas
para evitar qualquer reconhecimento como facilitadoras de um empreendimento
informal e estigmatizado. Essa falta de regulamentação formal traz implicações
não apenas para as pessoas que desempenham serviços sexuais.
• Estigma e exploração do trabalho
A imposição do estigma
social, das campanhas morais e da coerção pública culminam na terceirização das
responsabilidades governamentais para entidades privadas. Como na empresa
citada, a visibilidade das criadoras pode ser diminuída a qualquer momento e as
alterações nos termos de uso passam a obrigá-las a se adequarem a condições de
trabalho coercitivas — e a enfrentar condições financeiras cada vez mais
voláteis.
As alterações nos
termos de uso e contrato ocorridas no dia 2/9 ilustram esse cenário. De acordo
com a criadora de conteúdo Karina [nome fictício], a plataforma costuma alterar
seus termos de uso sem aviso ou negociação com as criadoras. E possui um histórico
de divulgações não autorizadas de conteúdo/imagem das mesmas, além de atrasos
no repasse dos ganhos.
Segundo a advogada
Letícia Viana, que representa algumas dessas profissionais, o contrato vigente
antes de 2/9 permitia a realização de transmissões simultâneas em outras
plataformas, não previa exclusividade. E, caso uma modelo não concorde com as
novas condições, a empresa não pode sancioná-la, já que impor mudanças
unilaterais configuraria violação de contrato.
A tentativa de
modificar os termos contratuais de forma unilateral, com sanções que visam
forçar a aceitação, argumenta a advogada, caracteriza abuso de poder econômico.
Conforme o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), práticas abusivas
são proibidas e sujeitas a punição.
Para além do âmbito
jurídico, o caso evidencia as complexidades do trabalho sexual digital. Embora
o trabalho sexual não seja crime e seja reconhecido como profissão pela
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), ele continua a passar por
transformações que aumentam sua precariedade e informalidade. Com a expansão do
trabalho sexual, que pode ser realizado de forma híbrida (presencial e
digital), muitas pessoas recorrem a essa atividade para complementar sua renda
ou como fonte principal de sustento. Ainda assim, o estigma e o preconceito
persistem nas relações de trabalho.
• Vulnerabilidade e abuso
Ao se apresentar como
uma prestadora de serviços às modelos, oferecendo espaço para o exercício de
suas atividades, a empresa tenta redefinir a relação de trabalho, classificando
as profissionais como autônomas e empreendedoras, num movimento semelhante ao
que ocorre com trabalhadores de plataformas como iFood e Uber. No entanto, as
exigências impostas pela empresa podem, em muitos casos, configurar uma relação
de trabalho, ainda que não formalmente reconhecida como tal.
Temos uma classe
trabalhadora diversa, marcada pela informalidade e pela precariedade,
constantemente afetada pelo estigma que a acompanha, tanto pelo não
reconhecimento formal da profissão quanto pelas brechas legais que isso gera.
As plataformas se aproveitam dessa vulnerabilidade para submetê-la a contratos
abusivos, jornadas de trabalho extenuantes, sem garantias de segurança ou
dignidade, nem condições mínimas de trabalho adequadas.
Que medidas podem ser
tomadas para assegurar os direitos dessas profissionais? Esse caso ilustra, de
maneira concreta, a urgência de uma regulação específica para as plataformas
digitais. Uma empresa privada não deve nem pode assumir um papel regulatório
que direcione os rumos de um mercado que serve como principal fonte de renda
para uma categoria profissional.
Fonte: Por Carolina
Bonomi e Cristiane de Melo, especial para a Ponte Jornalismo
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