Creomar L. Carvalho de Souza: ‘Afinal, o
que estamos discutindo nas eleições municipais de 2024?’
As eleições municipais
costumam ser um momento de aferição de tendências que, processadas pelas
máquinas partidárias, orientam a definição das listas de candidatos e
estratégias para a corrida eleitoral ao Congresso Nacional. Além disso, ajudam
a moldar os discursos para postos majoritários de governadores e presidente da
República, antecipando elementos que devem integrar a estratégia de
alinhamentos e acordos partidários.
Este ano, há um novo
fator a ser considerado. Além da consolidação de três grandes forças —
lulopetismo, bolsonarismo e aquilo que nos acostumamos a chamar de centrão —, o
efeito Pablo Marçal surge como novidade que transforma olhares e parece ter
impacto em várias corridas eleitorais ao redor do país.
Neste exato momento,
pouco importa se o candidato que, em algum sentido, rivaliza com o próprio
Bolsonaro em torno das preferências eleitorais à direita será ou não vencedor
da eleição na capital paulista. De certa forma, já conseguiu mudar a equação,
ainda que em sentido deletério à civilidade e à política como espaço de
deliberação democrática. A sua atuação, que vai de ofensas pessoais a físicas,
serve simbolicamente para demonstrar uma encruzilhada da política e do próprio
debate público nacional.
Para colocar em uma
fórmula sintética, a encruzilhada se expressa na seguinte questão: afinal, para
que servem as eleições municipais? A resposta objetiva do ponto de vista
jurídico é a de que este momento serve para a definição dos gestores
municipais, que, supostamente, devem aportar soluções para as nossas cidades.
No entanto, quando nos debruçamos sobre os humores do eleitorado, a resposta
corre o risco de ser distinta e com duas importantes implicações práticas.
A primeira, mais
complexa do ponto de vista de economia de atenção, é a disposição das mídias,
seus profissionais e analistas em todo o país de focarem a maior parte do seu
tempo e atenção na eleição em São Paulo, em detrimento daquilo que acontece nas
demais cidades. Tal constatação, surgida de um diálogo com um motorista em uma
capital do sul do Brasil, gerou alarme: "Se fala tanto de Marçal que
parece que ele é o candidato a prefeito daqui".
Esse movimento atesta
a capacidade do candidato de capturar atenções nacionalmente, mas gera a
externalidade negativa do empobrecimento da reflexão sobre o debate em âmbito
local. Parece claro e urgente a necessidade de compreender que o efeito
gravitacional da discussão em São Paulo atende a muitos atores e vende notícia,
mas ignora as necessidades de aprofundamento do debate público naquele que é o
nascedouro da democracia, o município.
A segunda implicação,
decorrência lógica da primeira, é a emulação de estratégias, ações e
comportamentos eleitorais que, inspirados pelo sucesso midiático de figuras
antissistêmicas, deixam de lado a discussão de propostas para a cidade e passam
a discutir temas etéreos ou prosaicos, quando não descambam para o surreal.
Tais discussões, simbolizadas pela hipótese falseável de que há uma guerra
entre brasileiros e que esta é a definidora do nosso futuro, servem
efetivamente para transformar as eleições em campo de batalha. Essas são
discussões alimentadas por uma polarização persistente, ao mesmo tempo em que
torna os cidadãos/eleitores cada vez mais reféns de uma agenda nociva ao bem
público.
É preciso, portanto,
que os cidadãos e as forças vivas da sociedade encontrem maneiras de colocar em
marcha uma nova lógica política. Deve ser uma lógica capaz de compreender
efetivamente a importância dos municípios como nascedouro de soluções para os problemas
que afetam a coletividade. Isso ajudaria a valorizar a política local, ajudando
a tornar evidente que não há atores políticos mais importantes e necessários
para a melhoria da qualidade da política do que vereadores e prefeitos.
Se houver uma
consciência mais apurada dessa importância, talvez seja possível um novo
alvorecer da democracia brasileira, não mais baseada em enfrentamento e
descrições pobres da realidade, mas, sobretudo, na ideia de que a compreensão
real da cidadania e seu exercício são o único meio eficaz de recolocar os
políticos na função de verdadeiros servidores públicos. O risco da reprodução
da encruzilhada acima descrita é de um ciclo que se repete, cuja deterioração
que o fenômeno Marçal tão bem simboliza é o aprofundamento de problemas reais
que afetam a qualidade de vida e que, não enfrentados em nível local, jamais
serão efetivamente resolvidos nacionalmente. A perda da cidade é a perda da
cidadania.
• Os municípios onde um único voto pode
eleger prefeito em 2024
Só um voto será
necessário para eleger o prefeito ou prefeita de 213 municípios brasileiros em
2024.
Isso acontece em
locais onde há apenas um candidato concorrendo ao cargo. Ou seja, a vitória é
garantida mesmo que apenas o próprio candidato vote em si mesmo.
Um levantamento da
Confederação Nacional de Municípios (CNM) revela que o número de municípios com
candidatos únicos praticamente dobrou em relação a 2020: passou de 107 para o
maior número registrado nas últimas sete eleições municipais.
A BBC News Brasil
ouviu Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional de Municípios, e o
cientista político Eduardo Grin, da FGV EAESP (Escola de Administração de
Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), sobre as razões para o
recorde de candidaturas únicas nas eleições municipais deste ano.
• O que explica candidaturas únicas
Um dos fatores mais
evidentes, segundo Ziulkoski, está no Estado com o maior número de municípios
com apenas um candidato concorrendo, o Rio Grande do Sul.
"As prefeituras
de muitos municípios do Rio Grande do Sul passaram por dois fenômenos muito
sérios neste mandato: a pandemia, que afetou todos de maneira igual, mas também
a devastação pelas chuvas que ocorreu recentemente".
Para Ziulkoski, que é
formado em Direito e foi prefeito de Mariana Pimentel (RS), os desafios a serem
enfrentados pelas prefeituras de diversos municípios gaúchos desestimulam
possíveis candidatos a concorrerem pelo cargo.
Outro fator que pode
desestimular a concorrência são os municípios com prefeitos que têm muito apoio
local e estão bem-avaliados para continuar no cargo.
"Candidatos de
oposição muitas vezes não veem vantagem em enfrentar um prefeito popular, com
boas chances de vitória. Além disso, essas situações acontecem principalmente
em cidades pequenas, onde é difícil formar uma segunda força política com estrutura
suficiente para enfrentar o prefeito", aponta o cientista político Eduardo
Grin.
"Outro fator
importante é o aumento de recursos financeiros para prefeitos em reeleição, que
muitas vezes vêm de emendas parlamentares. Isso proporciona aos prefeitos mais
recursos para campanhas, criando uma vantagem financeira significativa. Dessa
forma, o oponente, que já sabe que terá menos recursos, desiste de
concorrer."
Grin acrescenta que
"em cidades menores, como é o caso dessas 214, muitas vezes não há uma
sociedade política organizada, com ONGs, sindicatos, imprensa ou universidades
que possam reproduzir ou criar um polo político diferente daquele que domina na
cidade."
O presidente da CNM
destaca também a polarização intensa como algo que reflete na falta de mais
candidatos — em um cenário que há, diz ele, "um baixo nível" de
diálogo político na internet.
"As próprias
famílias desestimulam seus entes a ingressarem na vida pública, que é uma coisa
nobre e importante, por medo de exposição e ataques. Muitos que poderiam fazer
uma boa administração acabam não indo, e esse espaço é ocupado por pessoas que
talvez não sejam tão competentes", diz Ziulkoski.
O Brasil tem cerca de
59 mil vereadores, 5.570 prefeitos, 5.570 vice-prefeitos e cerca de 40 mil
secretários municipais — um total de aproximadamente 110 mil agentes políticos
nas prefeituras do Brasil, segundo a CNM.
• O problema da falta de concorrência
A falta de oposição é
preocupante, como destaca Grin.
"Em um contexto
democrático, é importante que a população tenha mais de uma opção política.
Isso permite que os cidadãos ponderem sobre os candidatos e, se necessário,
punam o prefeito por uma má gestão. Uma candidatura única elimina essa
possibilidade, pois, com votos suficientes, alguém pode ser eleito sem
concorrência", diz Grin.
As consequências,
segundo o cientista político, incluem sensação de acomodação política na
cidade, enfraquecimento do debate político e exclusão de visões políticas
diferentes, o que reduz o debate democrático e a transparência na administração
pública, já que apenas um grupo político mantém o controle.
"Eleições mais
competitivas, com pelo menos duas candidaturas, permitiriam maior controle da
população, forçando os candidatos a apresentar propostas mais viáveis e a
evitar promessas que não podem cumprir, garantindo assim que a população tenha
a oportunidade de optar."
Ziulkoski complementa
que um debate com vários candidatos ajuda a garantir um controle mais eficiente
do poder local.
"Quando há apenas
uma candidatura, ela tende a se consolidar facilmente, mas a falta de oposição
na Câmara de Vereadores pode levar a distorções e problemas ao longo do tempo,
já que não há um equilíbrio que permita questionar e fiscalizar as ações do
governo local."
• Regiões e perfis dos 'candidatos únicos'
O levantamento da CNM
mostra que, nos municípios de candidatura única, 72% são candidatos à
reeleição, enquanto nacionalmente esse percentual é de 55%.
Entre as cidades de
candidato único, a média populacional encontrada foi de 6,7 mil habitantes, de
Borá (SP), com 907 habitantes até Batatais (SP), com 58.402 moradores.
Avaliando os recortes
regionais, o Sudeste concentra 68 das 213 cidades com candidaturas únicas
(32%), seguido pela região Sul (66 candidaturas ou 31%), Nordeste (37
candidaturas ou 17%), Centro-Oeste (30 candidaturas ou 15%) e Norte (11
candidaturas ou 5%).
E qual é o perfil dos
candidatos únicos nas eleições municipais de 2024?
Em comparação à média
nacional, esses candidatos apresentam um percentual maior de homens brancos (4
pontos percentuais a mais), casados (4 pontos percentuais a mais) e com menor
nível de escolaridade (2 pontos percentuais a mais).
"Nessas
localidades, as mulheres estão bastante sub-representadas na política, e por
isso muitos prefeitos se destacam como candidatos únicos", afirma Grin.
Além disso, a média de
idade dos candidatos únicos é de 49 anos, inferior à idade média de 51 anos dos
demais concorrentes.
"O estudo também
mostra que os partidos do 'centrão', especialmente o MDB, o PSD e o União
Brasil, predominam, ou seja, nesses 'currais eleitorais' do interior, os
partidos tradicionais historicamente dominam a política", avalia Grin.
"Essas cidades
são controladas por máquinas partidárias muito vinculadas a partidos
conservadores ou de direita, como o MDB, que até 2020 era dominante na política
local."
Os entrevistados
acreditam que o número de candidaturas únicas pode crescer ainda mais nas
próximas eleições.
"Se o sistema de
transferência de verbas federais via emendas de parlamentares continuar
aumentando, como parece ser o caso, criaremos uma disputa política nas cidades
muito mais desigual, já que quem já é prefeito tende a receber mais dos
diversos tipos de emendas, o que desestimulará ainda mais outras
candidaturas", diz Grin.
As emendas
parlamentares permitem que deputados e senadores atuem na destinação de
recursos públicos do Executivo para suas bases eleitorais — Estados e
municípios.
"Isso gera um
ciclo vicioso: partidos que criam máquinas locais dominam a política, elegem
mais vereadores e formam maiorias na Câmara Municipal, o que reforça o apoio ao
governo", diz o cientista político da FGV.
Na ausência de
candidaturas plurais, Grin sugere que a sociedade busque criar suas próprias
forças políticas mobilizando os grupos presentes nas pequenas cidades, como
sindicatos, associações de bairro e movimentos sociais, para criar oposição e
cobrar autoridades locais.
Fonte: Correio
Braziliense/BBC News Brasil
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