Enquanto a soja avança, clima e meio
ambiente somem das eleições em Santarém
Em uma praia urbana
então conhecida como Vera Paz, a apenas 3 km do centro da cidade de Santarém,
no Pará, a multinacional do agronegócio Cargill construiu uma enorme geringonça
metálica com silos, guindastes e tubos numa área de 93 mil m². A construção,
inaugurada em 2003 e ampliada em 2014, inviabilizou um espaço popular de lazer
e alterou drasticamente a paisagem da cidade. O porto da Cargill, uma
transnacional que opera em 64 países, pode ser visto de todas as partes da orla
de Santarém. Ele é um lembrete cotidiano do avanço da monocultura na região do
Tapajós, com inúmeros e profundos impactos socioambientais.
<><> Por
que isso importa?
• A Agência Pública está percorrendo a
BR-163, entre os estados do Mato Grosso e Pará, e o município de Santarém é um
dos locais dessa rota onde nossa equipe investiga como o tema das mudanças
climáticas e meio ambiente vem sendo discutido nas eleições municipais. A
região é extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades
que registram grande adesão ao bolsonarismo.
O desmatamento avança
e plantações de arroz, soja e milho, principalmente, se espalham pela região.
Pequenos agricultores deixam ou vendem suas terras e vão inchar a zona urbana.
De forma contraditória, porém, o tema do meio ambiente desapareceu das principais
campanhas eleitorais à prefeitura de Santarém neste ano – com exceção da
candidata do PSOL em coligação com a Rede, a professora Izabel Sales, que na
campanha defende uma política do “bem viver”. Ela disse à Agência Pública que o
debate sobre meio ambiente está “silenciado” porque os outros dois principais
candidatos estão ligados ao agronegócio.
Sales menciona um
“medo” de alguns políticos, mesmo entre pessoas do campo da esquerda, de perder
votos ao questionar o papel do agro na região. Há duas semanas, a professora
participou de um vídeo usando uma camiseta com os dizeres “Agrotóxico Mata” e foi
censurada até por um familiar. “Para que discutir meio ambiente, se o eleitor
quer saber de asfalto na rua?”, perguntou o parente, segundo a candidata, que
também já participou de um protesto na frente do porto da Cargill.
“As pessoas não querem
que a gente fale nesse assunto porque está mascarado. Parece que é proposital,
fica parecendo que o problema é só meu, pois só eu estou falando. Eu estou
tentando fazer isso para puxar a pauta. Mas silencia. Não está ecoando, não está
reverberando. Por quê? Porque não está se discutindo na campanha. Tu não
consegues nem aprofundar a discussão com os outros candidatos”, disse a
professora, que tem apenas 28 segundos na propaganda eleitoral na TV.
Há também outros tipos
de medo. Um candidato a vereador pelo PSOL, integrante do movimento sindical
dos professores e servidor do Poder Judiciário, Márcio Pinto, contou que,
durante a pré-campanha, um amigo seu foi procurado por dois homens que se
diziam do agronegócio com a proposta de financiar sua candidatura para que,
assim, inviabilizassem a pré-candidatura de Márcio dentro do próprio PSOL. A
oferta foi recusada, mas o amigo de Márcio não se lançou candidato e avisou-o
sobre a abordagem. Poucos dias antes, Márcio havia gravado um vídeo de protesto
na frente da Cargill.
“Ele ficou preocupado
comigo. Ele não tinha qualquer relação com essas pessoas, e chegaram lá na casa
dele com a maior cara de pau. Entendo que pode ser um modus operandi para nos
fazer recuar. A gente sempre está fazendo esse enfrentamento a esses projetos
de desenvolvimento [que atacam o meio ambiente]”, disse o candidato.
Os dois candidatos a
prefeito que concentram as maiores atenções em Santarém, segundo pesquisas
divulgadas por meio de comunicação da região, são Zé Maria Tapajós (MDB),
apoiado pelo governador Helder Barbalho (MDB), e JK do Povão (PL), um
bolsonarista, filho de um ex-prefeito, que nos últimos dez anos ganhou fama na
cidade ao comandar um blog com supostas denúncias contra a prefeitura. JK está
na oposição ao atual prefeito, Nélio Aguiar (União Brasil), que, no cargo de
prefeito há quase oito anos, não pode mais se candidatar à reeleição e agora
apoia o nome do MDB, Zé Maria Tapajós.
Os dois candidatos —
que não quiseram falar com a Pública sobre meio ambiente, alegando compromissos
de campanha – têm profundas ligações com o agronegócio. A vice de JK do Povão,
de uma conhecida família ruralista, os Noimann, personifica um fenômeno cada
vez mais comum na região: nascida em Rosário Oeste (MT) em uma família com
raízes no Sul do país, Priscilla migrou com a família para Santarém há 20 anos.
Durante sete anos,
Priscilla foi a tesoureira do influente Sindicato Rural do município. Seu pai,
Adelino Avelino Noimann, é o atual vice-presidente da associação dos
sojicultores da região, a Aprosoja Pará.
Em 2023, Adelino
integrava o conselho de administração regional da onipresente Sicredi, a
cooperativa de crédito, poupança e investimento com incidência no norte do MT e
oeste do PA, uma instituição financeira autorizada pelo Banco Central que
oferece, entre outros serviços, um “instrumento de acesso das cooperativas de
crédito ao mercado financeiro e aos programas de financiamento”. Noimann
colaborou, até aqui, com R$ 5 mil para a campanha de JK do Povão. O grosso dos
gastos da sua candidatura (R$ 1,5 milhão) é bancado pela direção nacional do
PL.
O tema “meio
ambiente”, no programa de governo de JK, tem uma página e meia de um total de
33. Oito dos 17 parágrafos do tópico “meio ambiente” falam em “incentivo ao
agronegócio”, ao “desenvolvimento” e à “produção”.
Já o candidato Zé
Maria Tapajós é o nome do sistema político mais tradicional da região. Além de
ter o apoio do atual prefeito e do governador do estado, ele fechou uma aliança
com o PT e, por extensão, com o governo federal, que abriga um irmão de Helder,
Jader Filho, como ministro das Cidades.
Helder fala, em
entrevistas, sobre o uso “sustentável” da produção da soja e que as terras “já
mexidas, já antropizadas” no Pará são suficientes para que o estado seja “a
nova fronteira agrícola do Brasil”. Mas a realidade é mais amarga.
O porto da Cargill,
ironicamente instalado bem na frente dos prédios do Ibama e do ICMBio, é a mais
vistosa evidência do avanço do agronegócio na região. Só no município de
Santarém a área plantada de soja saltou de menos de 5 mil hectares, em 2004,
para aproximadamente 30 mil, em 2022. Como consequência direta, novos portos
para escoamento dos grãos estão em construção em diversos pontos do rio
Tapajós.
Em apenas dez anos, o
número de portos na região dobrou, segundo levantamento da organização não
governamental Terra de Direitos, que acompanha e disponibiliza o avanço dessas
obras em um detalhado site na internet.
Em Santarém, estão em
operação 13 portos. Em Itaituba, são 14, além de outros seis previstos e dois
em construção. Em Rurópolis, localizada no entroncamento entre a BR-163 e a
Transamazônica, há um porto em construção e mais quatro previstos.
Segundo a ONG, “nenhum
desses portos realizou o processo de consulta prévia aos indígenas, quilombolas
e demais povos e comunidades tradicionais”. As empresas se valem do chamado
“licenciamento corretivo”, ou seja, elas se “adaptam” desde que paguem uma multa,
o que compensa, ao final do processo.
“Arcar com multa do
licenciamento corretivo pode ser visto como mais rentável para as empresas do
que seguir os ritos ordinários do processo de licenciamento”, diz a Terra de
Direitos.
A doutora em direito
socioambiental pela PUC do Paraná Bruna Balbi, coordenadora do Programa
Amazônia da Terra de Direitos, disse que a grande expansão da soja na região do
Tapajós traz diversos impactos, como a própria movimentação das barcaças nos
rios da região ou o “uso muito intensivo de agrotóxicos”, passando pelo aumento
da movimentação das carretas nas rodovias. Um dos principais reflexos da
expansão da soja é a saída de pequenos agricultores das comunidades
tradicionais.
“A gente tem
comunidades inteiras que eram da agricultura familiar e que hoje viraram
plantações, grandes plantações de monocultura, principalmente soja e milho.”
Um estudo de 2024 do
Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectou a rápida “reconfiguração do
espaço agrário” em Santarém, com “o deslocamento de partes de pequenos
agricultores que ocupavam a área do planalto santareno em direção a áreas
periféricas da região de Santarém, assim como o deslocamento de alguns pequenos
produtores para os centros urbanos”. As áreas de agricultura familiar
diminuíram sua participação no território de 3,7% para 0,8% apenas entre 2004 e
2014.
Na prática, a
monocultura representa talvez a maior intervenção no modo de vida de Santarém
nos seus 363 anos de história. Mas a eleição municipal silencia essa marcha.
• MPF investiga falas racistas e discursos
de ódio contra indígenas do Baixo Tapajós, no Pará
O Ministério Público
Federal (MPF) instaurou inquérito civil e procedimento criminal para investigar
discursos racistas e incitadores de ódio contra povos indígenas do Baixo
Tapajós, no Pará. A medida foi adotada após inúmeras fontes compartilharem com
a instituição áudios enviados em aplicativo de mensagens, nos quais dois homens
questionam a legitimidade étnica de indígenas da Terra Indígena Cobra Grande,
localizada no município de Santarém (PA), para incitar outras pessoas contra o
direito deles ao território, liberdade e segurança.
Os áudios contrariam
portarias assinadas no dia cinco deste mês pelo Ministério da Justiça e
Segurança Pública (MJSP), que reconhece a posse permanente dos indígenas
Arapium, Jaraqui e Tapajó sobre a TI Cobra Grande, assim como aos indígenas
Borari e Arapium à TI Maró, também localizada na região. Os discursos tentam
deslegitimar a identidade étnica dos integrantes das comunidades ao afirmar que
eles estariam se autodeclarando indígenas, sem que o fossem.
As falas
discriminatórias e inflamatórias foram ditas em um contexto de reação a uma
operação de fiscalização ambiental realizada na TI Cobra Grande e no Projeto de
Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande. A ação ocorreu entre os dias
10 e 13 deste mês e foi executada pelo MPF, Polícia Federal (PF), Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
Recursos Renováveis (Ibama).
A operação, que já
vinha sendo planejada há meses, foi impulsionada pelo MPF por inquéritos civis
que apuram a falta de fiscalização e segurança coletiva no PAE Lago Grande –
que é cenário de graves e constantes ameaças a defensores e defensoras de direitos
humanos -, além de possíveis invasões à TI Cobra Grande.
Ou seja, ao contrário
do que alegam os autores dos áudios, a operação não teve nenhuma ligação com os
documentos declaratórios assinados pelo ministro da Justiça e Segurança
Pública, Ricardo Lewandowski.
Logo depois dos
áudios, o MPF passou a receber postagens de várias outras pessoas com
insinuações racistas, afirmando que os indígenas da TI Cobra Grande fingiam ser
indígenas, além de outras em tom de ameaça contra a segurança daquela
coletividade, insinuando algum tipo de retaliação.
Ainda, o MPF recebeu
foto de uma placa fixada na entrada da Vila Socorro, próxima à TI Cobra Grande,
de nítido caráter discriminatória e segregatório, cujo conteúdo proibia entrada
de indígenas.
O MPF destaca que
devem ser combatidas todas as formas de racismo e discurso de ódio, como
aqueles que questionem o princípio da autoidentificação ou desqualifiquem a
identidade cultural de determinado grupo, com o objetivo de induzir ou incitar
à anulação ou à restrição de seus direitos, tais como o direito ao território,
à segurança e à liberdade.
<><>
Providências
Diante das falas e
ações cometidas pelos dois homens, o MPF instaurou procedimento criminal para
apurar a ocorrência de crime de racismo contra indígenas do Baixo Tapajós,
especialmente da TI Cobra Grande. Além disso, está investigando no âmbito cível
a prática de discurso de ódio e violação aos direitos da personalidade, também
contra as mesmas comunidades tradicionais.
A instituição também
reitera que vai voltar a cobrar dos órgãos competentes a realização de
fiscalizações periódicas na área, como forma de coibir ameaças a lideranças do
PAE Lago Grande e desestimular infratores ambientais.
Fonte: Por Rubens
Valente, da Agência Pública/MPF-PA
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