Violência
na terra Yanomami novamente põe em xeque as Forças Armadas
Dois
episódios de violência na Terra Indígena Yanomami no final de semana
demonstraram a resistência armada de garimpeiros no território em aberto
desafio às forças públicas e ao estado democrático de direito. Infelizmente um
Yanomami, agente comunitário de saúde, foi assassinado por garimpeiros e outros
quatro mineradores foram mortos por agentes da PRF e do Ibama em tiroteios
distintos no sábado (29) e no domingo (30) – todas as mortes devem ser
lamentadas, inclusive dos invasores. Outros dois Yanomami, feridos a bala pelos
garimpeiros, passaram por atendimento de emergência no hospital de Boa Vista.
Ao fim dos primeiros 90 dias do decreto presidencial de Luiz Inácio Lula da
Silva que determinou a retirada dos invasores e o socorro aos Yanomami, a
sensação é de que a hora da verdade chegou para a ação de expulsão dos
intrusos.
Em
especial para os militares. Eles detêm, a partir do dinheiro público
proveniente dos impostos pagos por todos os cidadãos, os meios de transporte,
os armamentos e o pessoal para fazer cumprir a ordem presidencial. Têm aviões,
helicópteros, barcos, lanchas, aparelhos de comunicação, milhares de soldados e
oficiais, tudo entregue a eles pelos civis para que desempenhem suas funções.
Deveriam vir a público para explicar, mas não vão, por que essa imensidão de
recursos não está sendo usada com toda força e eficiência a fim de completar a
expulsão dos invasores.
Quem
acompanha as reportagens veiculadas pela Agência Pública sobre a crise
humanitária na Terra Indígena Yanomami e leu esta newsletter do final de
fevereiro sabe as dúvidas que pairam sobre o papel crucial que as Forças
Armadas deveriam desempenhar na desintrusão do território. Em fevereiro, já
havíamos alertado que os militares “pouco faziam” para a retirada dos
garimpeiros. Não criaram bases temporárias de ocupação do território. Mudaram
duas vezes a data limite para o fechamento do espaço aéreo, gerando
desinformação e demonstrando hesitação. Em março, o Ministério da Defesa se
recusou a corrigir 46 pistas de pouso que a presidente da Funai, Joênia
Wapichana, apontou como prioritárias tanto para o socorro sanitário quanto à
própria operação de desintrusão.
O
comandante do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, vinculado ao Ministério
da Defesa, o almirante de esquadra Renato Rodrigues de Aguiar Freire, na
ocasião respondeu à Joênia por escrito que o assunto deveria ser resolvido por
outro órgão público. Chamou de “consulta” o pedido urgente da Funai. Em
síntese, mandou a Funai passear. Há ainda diversas reclamações contra os militares
a respeito de demora e falhas na distribuição de cestas básicas.
Como
dito algumas vezes pelos servidores públicos dos órgãos mais diretamente
envolvidos na operação de desintrusão – a saber, Ibama, Funai, Polícia Federal,
Força Nacional e Polícia Rodoviária Federal –, a participação dos militares
precisa ser definitiva.
“Hoje
as principais dificuldades no combate aos garimpos ilegais são o transporte
aéreo e o efetivo controle do tráfego de aviões do garimpo. Isso foi explicado
com todas as letras à Pública pelo diretor de Amazônia e Meio Ambiente da
Polícia Federal, Humberto Freire de Barros, no início de abril. O delegado
disse que “tem demandado ao Ministério da Defesa que efetivamente haja esse
controle [do espaço aéreo] e que efetivamente seja estancada a logística aérea
para dentro da terra Yanomami, só sendo permitida aquelas autorizadas pela
própria Força Aérea”.
Os tiroteios recentes na terra Yanomami colocam a nu as Forças Armadas. A ordem
do presidente da República dirigida indiretamente aos generais, almirantes e
brigadeiros aguarda cumprimento. No domingo, uma equipe do Ibama e da PRF foi
recebida a tiros assim que chegou, de helicóptero, a um garimpo na região de
Waikás. É a sexta vez que isso ocorre no território. A Pública revelou o ataque
anterior mais sério, em 14 de março, quando um helicóptero do Ibama foi
alvejado.
Onde
estão os militares enquanto garimpeiros disparam contra fiscais em pleno
exercício das suas funções? Nesta segunda-feira (1) descobriu-se que um dos
mortos na operação de domingo, Sandro Moraes de Carvalho, era conhecido como
integrante de uma facção criminosa e foragido da Justiça do Amapá sob acusação
de roubo qualificado. Ele aparece em vídeos e fotos ostentando e usando
diversas armas, incluindo um fuzil. Só essas informações dão a medida dos
riscos enfrentados pelos servidores civis que atuam no território Yanomami.
Em
todos os casos anteriores, ficou evidente que o número mobilizado de
profissionais do Ibama e da PRF para a fiscalização não impressionou os garimpeiros.
São órgãos infinitamente menores do que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica.
Uma das regras básicas nas operações de desintrusão é que o Estado apareça com
um peso tão grande, em termos de agentes e equipamentos, que desestimule
imediatamente qualquer reação armada. É exercer o poder de dissuasão. Os
militares estufam o peito quando falam sobre esse conceito, e com base nisso
vão às compras todos os anos. Os Yanomami e os servidores federais civis querem
saber onde estão esses equipamentos. Se não servem para defender um território
que faz uma extensa fronteira seca com a Venezuela, para quê serviriam?
É
verdade que os militares têm apoiado ações da Polícia Federal. Mas elas também
têm sido pontuais e não abarcam todas as necessidades da desintrusão. Uma força
militar permanente de acompanhamento, com toda a logística possível, deveria
ser adotada a cada saída de cada fiscalização, seja do Ibama, seja da PF – isso
para ficar no aspecto mais simples.
Em
entrevista coletiva nesta segunda-feira (1) em Boa Vista (RR), a ministra Sonia
Guajajara (Povos Indígenas) de novo pediu que os garimpeiros saiam de forma
pacífica e voluntária do território indígena e a ministra Marina Silva (Meio
Ambiente) prometeu que o governo vai “intensificar as ações”. Novamente caberá
às Forças Armadas demonstrar o quão rápido querem – ou se querem – mudar o
cenário na terra Yanomami.
Ø
Governo federal
inicia operação para retirar 1.600 invasores de terra indígena no Pará
Sem
providência há quase 10 anos, ordem judicial para a retirada de invasores da
Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará, começa a ser cumprida pelo governo
federal por meio de uma grande operação que envolve diversos órgãos e
ministérios sob coordenação da Secretaria-Geral da Presidência da República. O
governo deu um ultimato aos invasores para que deixem o território até o
próximo dia 1º de junho. A partir de então, a operação diz que recorrerá à
força policial. Em julho deverá ocorrer a destruição de acessos e instalações.
No
último dia 24, a juíza federal de Paragominas (PA) Lorena de Sousa Costa
acolheu o plano apresentado pelo governo – medida cobrada pelo Judiciário desde
2018 – e determinou “o perdimento dos bens e semoventes [animais] existentes
dentro da área, a serem destinados em favor da coletividade indígena”, caso
“não seja realizada a desocupação [voluntária] da área no prazo estabelecido”,
ou seja, 1º de junho.
O
governo estima cerca de 1.600 invasores em diversas porções do território com
casas de madeira e de alvenaria, criações de animais, áreas desmatadas e roubo
e venda de madeira. A operação mobiliza Ibama, MPI (Ministério dos Povos
Indígenas), Funai, Polícia Federal, PRF (Polícia Rodoviária Federal), Incra,
Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Força Nacional e Ministério da
Defesa. A operação deverá ser anunciada à imprensa ainda nesta semana pela
ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas).
Com
cerca de 280 mil hectares, a Alto Rio Guamá é considerada um dos mais antigos
territórios indígenas reconhecidos pelo Estado brasileiro. Foi identificado e
reservado ainda em 1945 pelo extinto SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e
homologado pela Presidência há 30 anos, em 1993, no governo de Itamar Franco.
Hoje vivem no território cerca de 2.500 indígenas das etnias Tembé, Ka’apor e
Awá-Guajá em cerca de 41 aldeias.
A Agência Pública teve acesso ao
comunicado que será distribuído aos invasores da terra indígena. Ele afirma que
em 9 de abril de 2014 a Justiça Federal reconheceu, em decisão, o pedido de
retirada dos invasores feito em uma ação civil pública ajuizada pelo MPF
(Ministério Público Federal). Porém, a União não agiu. “Como não houve o
cumprimento da ordem judicial, houve o pedido de pagamento de multa pela União,
e foi ordenado que a União, o Incra e a Funai adotassem medidas para a retirada
de todos os não indígenas da área”, diz o texto. O comunicado adverte que os
invasores “precisam deixar a área e levar todos os seus pertences, inclusive as
criações de animais, até o dia 1 de junho. Contamos com a compreensão e
colaboração de todos”.
América
Tembé, liderança da TI Alto Rio Guamá, disse que é grande a expectativa sobre a
operação de desintrusão da terra indígena. Ela falou à Pública durante o ATL
(Acampamento Terra Livre) realizado em Brasília na semana passada. Cerca de 60
Tembé integraram a comitiva que veio de ônibus, em três dias de viagem. O grupo
manteve conversas com o governo federal para saber da retirada dos invasores.
Ordem
judicial começa a ser cumprida pelo governo federal na TI Alto Rio Guamá
“Isso
é um sonho nosso, isso é uma luta nossa que tem 40 anos para a desintrusão da
nossa terra demarcada. Ela já foi demarcada e vai ser ‘desintrusada’ agora. A
Justiça está indo lá e disseram que é para nós não nos envolver. Já entraram
lá, entregaram as cartas para os colonos e agora já foram mesmo para
desapropriar [retirar]”, disse América. A liderança Tembé disse que a presença
dos invasores tem enormes consequências para a vida dos povos indígenas no Alto
Rio Guamá.
“[A
invasão] traz muitos problemas. É a falta de caça, é a nossa liberdade de ir e
vir na nossa área. E conflitos mesmo de roubo de madeira. E até plantio de
maconha, de droga. Desmatamento. Sem contar a poluição dos rios, dos igarapés,
porque eles querem transformar tudo em pasto, né? Porque nós dependemos da área
para nosso alimento, nossa cultura, nosso artesanato”, disse América. Ela
calculou em 1.500 famílias de invasores, não 1.600 invasores, como estima o
governo.
A
liderança Tembé disse ainda que, ao longo do governo de Jair Bolsonaro
(2019-2022), a comunidade indígena pediu providências, mas nada foi feito.
“Pedimos muitas vezes, nós nunca tivemos êxito. Ele mesmo [Bolsonaro] dizia ao
público que não demarcava um milímetro de terra indígena, então não adiantava
nem pedir. Nós questionamos muito”, disse América.
Durante
o governo Bolsonaro, a invasão se aprofundou e passou a contar com uma ajuda
aberta de prefeituras da região, como a de Garrafão do Norte (PA). No final do
ano passado, em recomendação dirigida à prefeitura de Garrafão, o Ministério
Público Federal escreveu que “os ocupantes irregulares” da terra indígena em
sua maioria “praticam a agricultura ou pecuária no interior da terra indígena,
em total desconformidade com as normas constitucionais e legais”. O MPF afirmou
ainda que, durante uma reunião realizada em 8 de novembro passado entre MPF e a
prefeitura, “restou evidenciado que a municipalidade, por meio da Secretaria de
Agricultura, promove o auxílio dos moradores que ocupam irregularmente” a terra
indígena, “inclusive com a disponibilização de trator para auxiliar os
agricultores em trabalhos agrícolas”.
O MPF advertiu que “essa
atuação do município favorece a permanência da utilização irregular da terra
invadida, em total afronta aos direitos” indígenas.
Em
2021, uma outra recomendação do MPF advertiu as prefeituras de Garrafão, Viseu
e Nova Esperança do Piriá a suspenderem “obras irregulares, que incluem aterros
sanitários, escolas e rede de energia elétrica, em áreas onde invasores da
terra indígena se instalaram”. Em recomendação à concessionária Equatorial
Energia, o MPF pediu que a empresa paralisasse imediatamente “a execução de
todo e qualquer projeto de instalação de rede elétrica dentro da terra
indígena”. Em julho de 2022, o MPF ajuizou uma
denúncia contra
a empresa por empreendimento em outra terra indígena, a Cachoeira Seca.
De
acordo com o MPF, a invasão à terra indígena Alto Rio Guamá começou durante a
ditadura militar, quando o governo transferiu para a região grupos de colonos
de outras partes do país. Houve uma longa disputa territorial e também uma
batalha judicial que envolveu Funai e Incra. O órgão responsável pela reforma
agrária chegou a tentar cortar uma parte da terra indígena, mas a disputa foi
resolvida em 1993, com a homologação presidencial. Naquela época, o governo
identificou a presença de cerca de 1.100 não indígenas dentro do território.
No
decorrer dos anos, o governo passou a indenizar e dar novos lotes, fora da
terra indígena, aos ocupantes de boa-fé. De 1997 a 2013, o Incra transferiu
aproximadamente 522 famílias para assentamentos da reforma agrária na região.
Em 2003, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o governo fez uma
operação e retirou cerca de 190 famílias.
Mas
muitos invasores permaneceram na terra indígena. Em 2014, o Judiciário acolheu
a ação civil pública ajuizada pelo MPF em 2012 e determinou a saída dos
invasores. Quatro anos depois, o juiz federal de Paragominas (PA) Paulo Cesar
Mon Anaiss condenou a União a apresentar um plano de desintrusão num prazo de
120 dias, sob pena de uma multa diária de R$ 2 mil até o máximo de R$ 400 mil.
Também
em 2018, fartos de aguardar providências do governo federal, os indígenas Tembé
criaram seu próprio grupo de “Guardiões da Floresta” com o objetivo de fazer a
fiscalização da terra indígena Alto Rio Guamá, a exemplo da experiência de
outros povos, como os Guajajara. Em setembro de 2020, um grupo de 40
“guardiões”, com os rostos pintados, uniformizados e pilotando motos, cercou
nove invasores e deu-lhes um ultimato para deixarem o território.
Alto
Rio Guamá: os indígenas Tembé criaram seu próprio grupo de “Guardiões da
Floresta”
Depois
da ação, o cacique Sergio Muti Tembé gravou uma mensagem para o então
presidente da República: “Bolsonaro, presidente, você tem que ter o respeito
com a nossa população indígena. Foi eleito, alguns indígenas, nós votamos em
você. Você tem que ter um respeito pela nossa cultura, nossa tradição. Quando
vocês chegaram aqui no Brasil, nós já estávamos aqui, vocês vieram invadir.
Então, presidente, tem que ter respeito, junto com seus deputados, senadores,
parlamentares. Porque nós somos seres humanos, somos gente e somos brasileiros.
Peço para você ter um respeito por nós. Não venha nos massacrar, não venha
falar coisa de nós”.
Fonte:
Por Rubens Valente, da Agencia Pública
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