Com
apoio de Damares, governo Bolsonaro pagou missionários religiosos em terra
Yanomami
Enquanto a crise humanitária na Terra Indígena
Yanomami se aprofundava sem a devida assistência do Estado, o governo Jair
Bolsonaro destinou R$ 215,8 mil a uma iniciativa desenvolvida no território
para enfrentar uma suposta prática de “infanticídio indígena”. As informações
foram obtidas pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação
(LAI). Essa é uma pauta ligada a organizações evangélicas que contribui para
disseminar o racismo em relação aos povos indígenas, conforme denunciam
lideranças e especialistas.
O valor foi direcionado pela Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai) ao projeto Ulu, de acolhimento a crianças Yanomami que
teriam sido rejeitadas por suas comunidades, realizado por missionários
indígenas e não indígenas em uma aldeia Sanumá – um dos grupos Yanomami – na
região de Auaris, perto da fronteira com a Venezuela.
Embora o dinheiro tenha sido cedido pela Funai, foi
o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), comandado de
janeiro de 2019 a abril de 2022 pela hoje senadora Damares Alves
(Republicanos-DF), que atuou para viabilizar o apoio à iniciativa, segundo
informações enviadas à reportagem pela atual gestão da pasta, que voltou a se
chamar Ministério dos Direitos Humanos (MDH). Damares deixou o cargo para
concorrer às eleições.
Enquanto agiu para favorecer o projeto ligado a
missionários, o ministério de Damares se eximiu de suas responsabilidades no
enfrentamento à crise humanitária entre os Yanomami, de acordo com relatório publicado pelo MDH no fim de janeiro. O
documento aponta que, ao receber pedidos e recomendações de entidades como a
Organização das Nações Unidas (ONU), Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) e Ministério Público Federal sobre a situação, o MMFDH
redirecionou casos de sua competência a outros órgãos ou simplesmente os
arquivou. Por outro lado, quando o tema era “combate ao infanticídio” entre os
Yanomami, diz o texto, a atenção era outra e o tema aparecia de modo
“recorrente nas justificativas de viagem”.
Em 20 de janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) decretou emergência em saúde pública devido ao
cenário de desassistência à população Yanomami, agravado pela invasão de cerca
de 20 mil garimpeiros ilegais no território, segundo entidades indígenas. Desde
então, têm surgido indícios de que a gestão Bolsonaro não agiu de maneira
adequada para enfrentar a situação, embora tenha sido alertada sobre o assunto
em diversas ocasiões.
Novos documentos analisados pela Pública revelam que a Funai também não tomou as medidas necessárias ao
receber solicitações de intervenção em relação à crise Yanomami entre 2018 –
último ano do governo Michel Temer – e 2022. Durante esses cinco anos, quando
questionado, o órgão respondeu que sua atuação estava limitada por fatores como
baixo orçamento e falta de pessoal e promoveu apenas ações pontuais que não
atacaram as raízes do garimpo ilegal na terra indígena.
O médico Paulo Cesar Basta, da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), que trabalha com saúde nas comunidades Yanomami há 20 anos, destaca
que as altas taxas de mortalidade infantil observadas no território não estão
ligadas à prática de infanticídio, mas são decorrentes, sobretudo, de doenças
evitáveis, como desnutrição, diarreia, malária e pneumonia.
Em dezembro de 2022, a Pública mostrou que crianças Yanomami morrem 13 vezes mais por causas evitáveis do que
a média nacional. “Coisas que podem ser resolvidas com ações
simples, como mais médicos, insumos e estrutura de saúde”, afirma Basta.
“Taxativamente, a alta taxa de mortalidade infantil no território Yanomami não
pode ser atribuída, de modo nenhum, ao infanticídio”.
Os R$ 215,8 mil destinados ao Ulu pela Funai entre
setembro e outubro de 2022 tinham como finalidade a construção de uma casa para
acolher crianças Yanomami que seriam “portadoras de deficiência física e
neurológica” e estariam “em situação de risco e vulnerabilidade social”, de
acordo com proposta apresentada ao órgão pela Ypassali Associação Sanumá,
entidade que representa os Sanumá e é responsável pelo projeto.
Por LAI, a Funai comunicou que o valor foi
executado, mas que a casa de acolhimento não chegou a ser construída. Os
recursos foram disponibilizados pela sede em Brasília à Coordenação Regional de
Roraima para a compra de ferramentas, material de construção e elétrico,
combustível, pagamento de diárias de servidores e colaboradores e locação de
aeronaves para transporte de pessoal à aldeia Olomai, onde a casa seria
construída, acessível apenas por avião. A reportagem perguntou à Funai e à
Ypassali Associação Sanumá por que as obras não foram realizadas e qual destino
foi dado ao dinheiro, mas não recebeu resposta até o fechamento deste texto.
Pastora evangélica, Damares elegeu o combate ao
“infanticídio indígena” como uma de suas bandeiras, junto do ativismo
antiaborto. Ela trabalha pelo avanço do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 119/2015, em
trâmite no Senado, que propõe alterar o Estatuto do Índio a fim de aumentar a
atuação de órgãos do Estado contra o suposto infanticídio em comunidades
indígenas, entre outros pontos. A matéria, apoiada pela Frente Parlamentar
Evangélica, havia sido arquivada ao fim da última legislatura, mas a senadora
solicitou seu desarquivamento logo que tomou posse. O pedido foi atendido no
fim de março, e o PLC voltou a tramitar na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania da Casa – a próxima etapa é a designação de um relator.
O retorno do projeto à pauta do Senado soou um
alerta entre entidades indígenas e pesquisadores. Para eles, além de difundir o
preconceito em relação aos povos originários, o projeto pode facilitar a
atuação de missionários evangélicos nas comunidades. Maurício Terena,
coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
classificou o desarquivamento do PLC como “extremamente equivocado”. Ele diz
que a bandeira do combate ao “infanticídio indígena” contribui “cada vez mais
para que os povos indígenas sofram com racismo e também com a rejeição da
sociedade, porque alimenta estereótipos que foram construídos durante a
constituição territorial do país”. Para Terena, “olhar para a causa indígena
sob uma perspectiva cristã é perpetuar a violência colonial que aconteceu
contra os povos indígenas”.
No início de março, Damares se candidatou a uma das
vagas da comissão temporária do Senado que acompanha a crise Yanomami, mas ficou de fora. Mesmo assim, ela tem acompanhado as audiências
públicas e encontros do colegiado. Em fevereiro, o PSOL protocolou uma
representação contra ela no Conselho de Ética do Senado pedindo sua cassação
por suposta relação com a crise humanitária no território indígena. O documento
diz que, enquanto ministra, Damares teria utilizado a máquina pública para
promover uma política “etnocida e racista” contra os povos originários,
sobretudo os Yanomami. Ela nega.
·
Articulação do lobby missionário
Um levantamento realizado pela atual gestão do MDH
em documentos internos indica que, em setembro de 2019, Mateus Sanumá,
presidente da Ypassali Associação Sanumá, enviou uma carta diretamente a Damares solicitando
recursos e ajuda na construção de uma “casa de proteção” do projeto Ulu. A
partir daí, o MMFDH realizou uma série de reuniões com outros órgãos sobre o
assunto e mandou pedidos à própria Funai e à Secretaria de Saúde Indígena
(Sesai) do Ministério da Saúde para que dessem suporte à iniciativa, o que
efetivamente aconteceu por meio da Funai apenas quando o governo Bolsonaro
estava prestes a terminar.
Os documentos obtidos pela reportagem mostram que a
ideia do ministério de Damares era tornar o Ulu “um projeto piloto” a ser
replicado em outros territórios. Uma análise da própria Funai em novembro do ano passado,
entretanto, recomendou que alguns pontos do projeto fossem revistos. A nova
administração do órgão informou à reportagem que fará uma reavaliação da
questão junto aos Sanumá de Olomai “sem que haja interferência de qualquer
entidade religiosa”. Comunicou ainda: “o Estado é laico e uma de nossas
prerrogativas constitucionais é o respeito às organizações próprias dos povos
indígenas, de seus costumes e tradições”.
Em dezembro de 2022, no apagar das luzes do governo
Bolsonaro, a Ypassali foi agraciada pelo MMFDH com a Ordem do Mérito Princesa Isabel, entregue a 120
pessoas e organizações “que se destacaram no atendimento e na assistência aos
públicos-alvo do MMFDH, em âmbitos nacional ou internacional”, segundo a pasta.
Também receberam a honraria o ex-presidente Jair Bolsonaro, a própria Damares,
igrejas evangélicas e parlamentares bolsonaristas.
Embora a Ypassali seja formalmente presidida,
segundo a Receita Federal, pelo indígena Mateus Sanumá, quem recebeu a
homenagem foi o missionário Ademir Santos Silva, ligado à organização
evangélica Jovens com Uma Missão (Jocum) e à Missão Evangélica da Amazônia
(Meva). Nos documentos analisados pela Pública, Silva é descrito como o
“interlocutor” entre o governo e os indígenas responsáveis pelo projeto Ulu.
Natural da Bahia, ele trabalha com os Sanumá desde a década de 1990, quando foi
levado pela Jocum às comunidades. Conhecido pelo nome indígena “Mimica”, é
fluente no idioma tradicional Sanumá e atua como tradutor dos indígenas, como
Renato Sanumá, liderança evangélica que coordena o projeto Ulu.
Damares tem relação próxima com a Jocum: junto a
dois de seus missionários, o casal Edson e Marcia Suzuki, fundou a ONG Atini, cujo
objetivo principal é “erradicar o infanticídio indígena” no Brasil. A Atini
descreve o “infanticídio indígena” como as supostas mortes de “centenas de
crianças” todos os anos em aldeias do país por terem nascido de relações
extra-conjugais, com deficiência física ou mental ou por serem gêmeas, entre
outros fatores. A organização diz também que crianças com essas características
são abandonadas por suas comunidades. Não há, entretanto, dados que corroborem
essas afirmações.
A atuação missionária e a causa aproximaram Damares
e Ademir Santos Silva. Em 10 de outubro do ano passado, ele chegou a ser citado
pela ex-ministra em um evento de campanha de Jair Bolsonaro em Boa Vista (RR),
quando o ex-presidente disputava o segundo turno das eleições com Lula. “Há 15
anos, o Mimica falou para o mundo que em algumas comunidades, as crianças
indígenas com deficiência não são bem aceitas. Sofreu junto comigo, mas agora
tá trabalhando comigo, porque tem um presidente da República que protege
crianças com deficiência”, disse a então recém eleita senadora, segundo reportagem do jornal local Folha BV.
A Pública perguntou a Damares e Silva se
eles mantêm relação de amizade. Silva não respondeu aos questionamentos
enviados. Já a senadora, em mensagens de áudio, disse que sabia que a Ypassali
trabalhava “cuidando de crianças em situação de vulnerabilidade”. De acordo com
ela, “crianças Yanomami órfãs, crianças Yanomami com deficiência, com doenças
crônicas ou com doenças raras”.
Damares afirmou ainda que conheceu o trabalho de
Ademir Santos Silva, o Mimica, “há muitos anos” e disse ser sua “apoiadora”.
“Vou fazer o que eu puder fazer pra apoiar Mimica, Mateus, todos que trabalham
com crianças Yanomami em situação de vulnerabilidade”, declarou. A senadora
negou omissões do ministério, quando estava sob o seu comando, em relação à
crise Yanomami, ou que tenha favorecido o projeto Ulu em detrimento de outras
iniciativas. “Apoiar uma iniciativa dessa não quer dizer que está deixando as
outras para trás”, afirmou.
f“Quero dizer que não só apoiamos uma iniciativa que
protege a vida de crianças [como] todas as iniciativas que protegem a vida
de crianças que foram apresentadas ao ministério. Todas as crianças, de todos
os povos, criança cigana, criança quilombola, criança indígena, criança
ribeirinha, as iniciativas que salvavam vidas de crianças, no que estava dentro
da atribuição do MMFDH, foram apoiadas”, complementou a senadora.
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Alegação sobre “infanticídio indígena” não tem
comprovação
Em várias ocasiões nos últimos anos, Damares fez
falas públicas sobre a suposta prática de infanticídio em aldeias indígenas. Em
entrevista concedida em 2019, seu primeiro ano à frente do ministério, disse
que “mais de 1.500 crianças são assassinadas por ano nas aldeias do
Brasil”. Questionada pela Pública sobre a fonte do número, ela alegou
que se tratava apenas de “uma estimativa”.
“Quando começamos a falar sobre o sacrifício de
crianças por motivações culturais, lá nos anos 2000, e quando comecei a falar
dentro do Congresso Nacional, pessoas que trabalhavam com o tema trouxeram para
nós que é impossível a gente dizer com precisão quantas crianças são vítimas do
sacrifício”, admitiu, em resposta às perguntas da reportagem.
O número, porém, não está amparado na realidade.
Segundo pesquisadores em saúde indígenas ouvidos pela reportagem, não há
registros oficiais atualizados disponíveis de quantas crianças indígenas seriam
vítimas de infanticídio anualmente no Brasil. O Código Penal, que criminaliza a
prática na sociedade como um todo – não apenas entre os povos originários –, a
define como “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho,
durante o parto ou logo após”.
Uma reportagem da Revista Época de janeiro de 2019 cita duas
notas técnicas sobre o tema produzidas pela Sesai. A última, de 2016, indicava
que os casos de neonaticídio – termo que o documento utilizou em substituição a
“infanticídio”, de acordo com a revista – entre os povos indígenas brasileiros
foram de 42 em 2014 e de 41 em 2015, muito abaixo das 1.500 mencionadas pela
ex-ministra. A Pública pediu à Sesai acesso aos levantamentos, que
não são públicos, mas o órgão informou, por meio de sua assessoria de imprensa,
não ter conseguido localizá-los.
Apesar disso, a secretaria afirmou à reportagem que
“as alegações da senadora Damares Alves não se sustentam quando observados os
dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi)”. Segundo o
órgão, crianças indígenas menores de um ano morrem no país principalmente
devido a “doenças do sistema respiratório; doenças do período perinatal (entre
22 semanas completas de gestação e uma semana de nascimento); infecções e
parasitismos e problemas nutricionais e metabólicos”, chamadas causas evitáveis
[Leia aqui a nota na íntegra].
De acordo com a Sesai, entre 2018 e 2022, 3.792
crianças indígenas morreram dessas causas, em razão do baixo acesso à
assistência em saúde básica. No mesmo período, ocorreram 207 óbitos por
agressão em crianças indígenas menores de um ano. Esses dados, no entanto, “não
podem ser usados para basear qualquer suposição como a levantada pela
senadora”, conforme a secretaria, por não indicarem “a identidade do agressor”.
“Os números incluem crianças mortas por diversas violências, como ataques de
garimpeiros, por exemplo”, comunicou.
Tampouco existem dados específicos sobre a Terra
Indígena Yanomami que possam justificar a necessidade de uma ação no território
para combater o suposto problema. Segundo o médico Paulo Cesar Basta, da
Fiocruz, o infanticídio ocorre entre os indígenas, mas “não se pode afirmar que
é uma prática corrente, nem que acontece com frequência”, como pregam Damares e
as organizações missionárias.
“Não dá para associar as mortes de crianças com uma
possível prática de infanticídio por má formação congênita, porque crianças com
má formação congênita, entre os nascidos vivos, são uma ocorrência baixíssima
nos dados dos nascidos vívos em nível nacional”, explica.
Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho
Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY) e uma das
lideranças mais atuantes na denúncia e combate à crise de saúde no território,
reforça que “desnutrição, malária, falta de assistência de saúde são as
principais causas de morte de crianças” entre seu povo. Para ele, crianças e
mulheres indígenas foram abandonadas pelo Estado brasileiro nos últimos anos:
“[o governo] Bolsonaro tinha conhecimento total dos problemas do território.
Garimpeiros violentando mulheres, malária, outros problemas. Ainda estamos
bebendo água contaminada pelo garimpo”.
Basta pontua também que as ocorrências de
infanticídio entre os Yanomami podem ter ligação com violência sexual. “Lá, no
meio da floresta, o Estado está ausente. Não garante direitos humanos. Lá, no
meio da floresta, não tem como a mulher ter acesso ao aborto legal.”
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“Inspiração” para o Ulu, Atini é alvo de processos e
investigações
Desde sua fundação em 2006, a Atini direciona todos
os seus esforços a combater o “infanticídio indígena”, que atribui a
questões tradicionais dos povos originários e descreve como uma “prática
cultural nociva”. Mas essa associação é duramente contestada por estudiosos do
tema, segundo os quais serve para criminalizar as comunidades indígenas.
“O debate coloca [o infanticídio] como se fosse uma
prática exclusiva de povos indígenas, como se não acontecesse todos os dias na
sociedades não indígenas também. A partir do momento em que se qualifica como
sendo uma prática tradicional, cultural, que é imposta pelo coletivo,
promove-se uma estigmatização”, aponta a antropóloga Ana Carolina Saviolo
Moreira, que estudou a construção política da pauta do “infanticídio indígena”
em sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) em 2022.
Ela explica ainda que essa definição “homogeneiza”
os povos originários. “Temos mais de 300 povos indígenas no Brasil com
diferentes línguas, padrões de cultura e de organização social, mas o debate
sobre ‘infanticídio indígena’ coloca [a questão] de forma blocada e homogênea,
como se fizesse parte [de toda a] cultura indígena. Isso não ajuda em nenhuma
medida, porque as pessoas são leigas, não conhecem essa imensa diversidade”,
frisa.
A Atini também tem sido protagonista na discussão do
PLC 119/2015 no Congresso Nacional, apresentado em 2007 pelo então deputado
federal Henrique Afonso, à época do PT do Acre (na Câmara dos Deputados, a
matéria tramitou como PL 1057/2007), e apoiado por parlamentares evangélicos.
Representantes da ONG participaram de boa parte das audiências públicas sobre o
projeto, que foi debatido por oito anos e aprovado em 2015 na Câmara.
Naquela Casa, o projeto recebeu o apelido de “Lei
Muwaji”, nome de uma indígena do povo Suruwahá do Amazonas que teria procurado
missionários evangélicos para impedir que a filha nascida com paralisia
cerebral fosse sentenciada à morte. O PLC chegou a figurar em uma lista de 35 matérias que o ex-presidente
Jair Bolsonaro colocou como prioridade de seu governo no Congresso Nacional em
2021, mas acabou arquivado ao fim da última legislatura e voltou agora à pauta
do Senado a pedido de Damares.
Especialistas contestam a utilidade da uma lei com
foco em casos de infanticídio cometidos por povos indígenas. “O Código Penal
Brasileiro, em seu Art. 123, tipifica e emite sanção (de dois a seis anos de
detenção) para o crime de infanticídio – o que contempla toda e qualquer
cidadã, indígena ou não, já que a tipificação do crime, no caso brasileiro,
incide apenas sobre as mulheres – pois é considerado como efeito do estado
puerperal do pós-parto. Qual a necessidade de criar uma especificação para o
‘infanticídio indígena’?”, questionou a antropóloga Marianna Holanda,
professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora de Bioética e
Direitos Humanos, em artigo publicado em 2018 sobre o tema.
Para Ana Carolina Saviolo Moreira, a mobilização da
bancada evangélica em torno do PLC carrega outros significados. “A gente
entende que foi uma espécie de sequestro da pauta para mobilizar outros tipos
de interesse. Quando os parlamentares evangélicos falam: ‘tem indígena matando
criança dentro das terras’, [subentende-se que] não se pode então demarcar
terras para essas pessoas, porque elas estariam fazendo coisas que são
contrárias aos direitos humanos e à nossa Constituição Federal”, indica.
Além disso, a Atini elaborou cartilhas e lançou
produções audiovisuais sobre o tema. Um dos vídeos colocou a entidade como alvo
de investigações do Ministério Público Federal (MPF) em Rondônia e no Distritro
Federal: a ONG mostra supostas cenas de prática de infanticídio em uma
comunidade Suruwahá. De acordo com o MPF de Rondônia, o filme produzido pela
Jocum usou encenações de crianças e adultos do povo Karitiana para contar uma
história falsa como se fosse verdadeira.
Em Ação Civil Pública, o MPF de Rondônia pediu
indenização por danos morais e coletivos ao povo Karitiana e disse que o
material “incita ódio contra indígenas”. A ação ressaltou ainda que o “infanticídio
indígena” não é realizado pelos Karitiana e que “são raros os registros de
povos indígenas na Amazônia que adotam tal prática”.
A experiência da Atini foi a inspiração para o
projeto Ulu, disse Renato Sanumá, a liderança evangélica à frente do projeto,
durante uma pregação na igreja Batista da Mooca, em São Paulo, em
junho de 2021, ao lado de Ademir Santos Silva. “Não somente esse projeto nasceu
no meu coração. Foi algo que aconteceu com a Márcia e com o Suzuki há muito
tempo atrás, quando eles deram um primeiro pontapé para um projeto como esse.
Eu vi que eles salvaram uma criança pequena e eles trabalharam muito, lutaram muito
por aquela criança. Assim como Suzuki fez, também tenho seguido os passos de
Deus, levando o exemplo desses missionários”, declarou. A Atini explicitou essa
ligação em um post no Facebook em junho de 2021, em que afirma que o “pastor
Renato Sanumá”, ao assistir “ao filme da Atini”, “se investiu de coragem e
propagou esta voz e esta força nas matas Yanomamis”.
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Ministério de Damares articulou com Sesai e Funai
apoio para projeto
Dias após a carta de Mateus Sanumá chegar a Damares
em setembro de 2019, o pedido da Ypassali Associação Sanumá foi encaminhado por
“ordem da ministra” para “conhecimento e providências urgentes” a Sandra
Terena, então secretária Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
do MMFDH. Também ligada à Atini, Terena dirigiu um dos filmes produzidos pela
organização sobre o “infanticício indígena”. Entre os roteiristas estão ela e
seu marido, o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, que pediu asilo no
Paraguai para evitar a prisão, determinada pelo ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) Alexandre de Moraes sob alegação de participação e incitação de
atos antidemocráticos.
Começaram aí as tentativas de articulação do
ministério com Funai, Sesai e outros órgãos para viabilizar recursos para a
construção da casa de acolhimento do projeto Ulu, conforme mostram documentos
enviados à reportagem pela atual gestão da pasta e pela Funai, via Lei de
Acesso à Informação. Foram pouco mais de três anos até que a Funai efetivamente
disponibilizasse os valores.
Uma nota técnica publicada no sistema interno da Funai, em
2022, à qual a reportagem teve acesso, informa que a casa acolheria “22
crianças Sanumás na faixa etária de 0 a 6 anos em situação de risco extremo na
aldeia de Olomai; sendo 4 crianças com limitações físicas e 4 com dificuldade
locomotora”. Um dos objetivos do Ulu, segundo a nota, seria “promover
atendimento e acompanhamento multiprofissional de saúde a crianças e
adolescentes Sanumás portadoras de deficiência física e deficiência neurológica”.
Dentro da própria Funai, porém, houve resistência ao
projeto. Uma análise produzida em novembro de 2022 por servidoras
da Coordenação de Acompanhamento de Saúde Indígena (Coasi) da Funai, então
subordinada ao comando de Dias, aponta que é atribuição da Sesai e do Sistema
Único de Saúde (SUS), e não da autarquia, executar atividades de atenção à
saúde indígena ou contratar equipes para essa finalidade, e recomendam que o
órgão “atue no estrito escopo de suas atribuições”.
O texto afirma também que não há estatísticas
demonstrando maior incidência de casos de infanticídio, homicídio ou maus
tratos entre os povos indígenas do que na sociedade no geral e que o projeto
Ulu poderia “reforçar a associação dos Yanomami a denúncias de práticas de
infanticídio”. Sugere ainda que a Funai tente compreender as noções de
“deficiência” e “abandono parental” sob a perspectiva tradicional dos Yanomami,
diferente dos conceitos dos não-indígenas.
As ressalvas feitas pelas servidoras da Coasi,
porém, não chegaram a tempo. Algumas semanas antes haviam sido assinados dois
pedidos de liberação de verba à Coordenação Regional de Roraima para a construção
da casa de apoio do projeto Ulu.
Fonte: Por Anna Beatriz Anjos e Mariama Correia, da
Agencia Pública
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