Petrobras participou de tortura e monitorou orientação sexual de funcionários na Ditadura
A dificuldade de acesso a uma refinaria de petróleo,
em São Francisco do Conde, no interior da Bahia, levou à construção de
alojamentos para os funcionários da unidade, gerenciada pela Petrobras entre 1953 e 2021. Um dos espaços que deveria
ser usado para descanso no intervalo de trabalho, no entanto, foi transformado
num centro de torturas de pessoas consideradas “subversivas”, após o golpe que
inaugurou a ditadura militar no Brasil, em março de 1964.
Carlos Alves* foi uma das vítimas na Bahia. O
ex-operador de máquinas que à época tinha 27 anos fazia parte das “listas de
subversivos” elaboradas a partir da investigação de militares infiltrados na
estatal. Nos anos de ditadura (1964-1985), Carlos era filiado ao Sindipetro-BA
(Sindicato dos Petroleiros da Bahia) e hoje, com 87 anos, reside em Manaus
(AM). Ele convive com problemas de saúde que dificultam a sua comunicação; o
episódio de tortura, contudo, foi relatado pelo ex-colega de cela. “Ele deitou
no chão e eles com calcanhar de coturno arrancaram as unhas desse colega. Até
quando eu falo fico emocionado porque foi um ato de covardia. […] além das
unhas arrebentaram ele todo”.
Carlos teria recebido dos próprios militares as
unhas arrancadas durante a tortura. A refinaria estava em pleno funcionamento
no momento da agressão, ocorrida em 1964, e o fluxo de militares dentro da
empresa era constante, conforme entrevistas as quais a Agência
Pública teve acesso em um material que faz parte do projeto“A
responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”,
um trabalho de pesquisa que envolveu 55 pesquisadores e foi conduzido pela
Universidade Federal de São Paulo, através do Centro de Antropologia e Arqueologia
Forense (CAAF/Unifesp) em parceria com o Ministério Público Federal e o
Ministério Público do Estado de São Paulo.
Os dados coletados no caso Petrobras apontam que a
companhia e o Exército atuaram juntos na instauração de inquéritos e no
levantamento de 3 mil suspeitos, com abertura de cerca de 1,5 mil processos de
investigação e indiciamento de 712 operários.
Os relatos apontam ainda a participação da Petrobras
em casos de tortura, operações do regime militar, monitoramento e perseguição
aos trabalhadores, sobretudo sindicalistas.
Edson Teles, o coordenador do projeto pelo
CAAF/Unifesp avalia que “é preciso fazer dessas informações um ato de justiça”.
“O acesso a essas histórias é fundamental pra gente entender o que nós somos
enquanto país, enquanto sociedade, o que nós somos enquanto estado de direito”,
e reforça: “Agora, insisto, só vai ter efeito se a gente juntar o direito
à memória e à verdade com o direito à justiça”.
·
Simulação de fuzilamento
A violência não era só física, descreveu João
Paulo*, ex-funcionário da Petrobras. Ele disse ter sido levado, ainda em 1964,
ao quartel do Exército localizado no bairro Amaralina, em Salvador (BA). No
local, passou por uma simulação de fuzilamento para “falar” — não especificou
quais informações os militares buscavam.
“Me ouviram e perguntaram se eu não estava disposto
a falar. Eu disse que não. Então eles disseram que eu ia ser fuzilado. Me
levaram para um negócio todo de fuzilamentos, botaram o pelotão, exatamente o
pelotão. Aí começam vai ou não vai. Eu falei: ‘não’. Aí os caras com aquela
‘apresentar armas, atirar e bummm!’ Aquele tiro de pólvora seca, né?”, narrou.
O trauma o fez perder parte do movimento das pernas
por uma semana. “Quando eu terminei, rapaz, as pernas estavam que eu não
conseguia andar. Eu não conseguia andar. (…) Fui recuperando aos poucos, eu
pegava assim, ia levantando [a perna] até que me levantei, né?”.
·
Relação com a ditadura Pinochet
Um telegrama do consulado brasileiro no Chile
enviado ao MRE (Ministério de Relações Exteriores) a respeito de um chileno que
concorria a uma vaga de emprego na Petrobras diz: “Segundo informações do
departamento de investigações do Ministério da Defesa Nacional do Chile nada
consta sobre”.
O documento é datado em 30 de março de 1981, quando
as terras governadas atualmente pelo democrata Gabriel Boric viviam na
autocracia de Augusto Pinochet, o ex-ditador que esteve no poder entre 1973 e
1990.
A solicitação de dados passou pelo Ministério de
Minas e Energia antes de chegar ao MRE e ser recebida pelo consulado, detalhou
Luci Praun, pesquisadora da Universidade Federal do Acre e uma das responsáveis
pelo relatório da CAAF/Unifesp. “A questão principal que está colocada ali é a
relação entre as ditaduras, a internacionalização da perseguição e da repressão
política”, avalia.
A estrutura da empresa também seria utilizada pelo
regime. Pesquisadores identificaram a participação direta em pelo menos uma
operação do Exército: “Operação Pajussara”, que buscou, em 1971, capturar
Carlos Lamarca, um dos maiores nomes da resistência contra a ditadura. A
Petrobras colaborou, informa o relatório do próprio Exército, com pelo menos um
motorista e um veículo.
·
Vigilância e Controle
Os documentos também revelam monitoramentos
realizados por órgãos internos criados pela Petrobras, a exemplo da DIVIN
(Divisão de Vigilância e Informação). Uma lista de controle da frequência de
entrada e saída de pessoas numa das dependências do DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social), em São Paulo, e mostra a visita de dois membros da DIVIN em
7 de maio de 1975.
Outra evidência de cooperação com a ditadura está no
pedido de buscas datado de 30 de outubro de 1969. O assunto em questão:
“investigação política-social”. E, com isso, solicita ao DOPS informações sobre
alguns funcionários. A resposta foi enviada em 14 de novembro do mesmo ano e
tinha observações relacionadas a filiações partidárias e participações em
sindicatos.
Um dos nomes é descrito pelo DOPS como funcionário
do Terminal do Porto de São Sebastião — município paulista com atuação da
petrolífera — onde é considerado “elemento perigoso ao regime democrático”. O
adjetivo “democrático” classifica, nesse caso, o período marcado por violações
de direitos humanos, censura, torturas, assassinatos e prisões de opositores
políticos no Brasil.
A narrativa controversa também consta no parecer da
Comissão Geral de Investigações da Petrobras relativo a empregados da Bahia.
Nele, um trabalhador demitido após 9 anos de casa é identificado como alguém
que não negou “ter colaborado com movimentos antidemocráticos”. Logo abaixo, é
recomendada a “exclusão” de um funcionário que atuava na empresa por, entre
outras alegações, ser “comunista autuante”.
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Perseguição à sexualidade
Além dos ideais políticos, os serviços de vigilância
da Petrobras também teriam monitorado a orientação sexual de seus
trabalhadores. Isso ocorria no contexto das “listas sujas” — caracterizadas
pelo compartilhamento de informações entre redes de segurança de companhias em
realocações no mercado de trabalho. O levantamento da Unifesp identificou ao
menos 10 situações em que os trabalhadores eram perseguidos por questão da
sexualidade.
Um documento assinado por um dos chefes da DIVIN,
Prospero Punaro Baratta Neto, por exemplo, cita um trabalhador: “(…) tem uma
apresentação pessoal anormal, com todas as características de quem pratica a
pederastia, incompatível com as atividades de trabalho em turno numa plataforma
marítima”. “Pederastia” foi um termo homofóbico editado durante a ditadura no
Código Penal Militar, que punia “atos sexuais” em lugares sujeitos à
administração das Forças Armadas.
Em relatório, chefe de órgão da Petrobras faz observação
homofóbica sobre trabalhador da empresa
A norma discriminatória estabelecia pena de detenção
de 6 meses a um ano ao militar que praticasse ou permitisse que com ele se
praticasse “ato libidinoso, homossexual ou não”. Em 2015, o STF (Supremo
Tribunal Federal) reconheceu a inconstitucionalidade das expressões
“pederastia” e “homossexual ou não”. A decisão atendeu à ação ingressada pela
PGR (Procuradoria-Geral da República), que classificou os termos como oriundos
de um período de autoritarismo e intolerância às diferenças.
Um outro relatório, de 22 de agosto de 1973, reforça
a ocorrência de ações discriminatórias. Descreve o afastamento de um assistente
administrativo, de 38 anos, por ser “conhecido como elemento pederasta passivo”
e que no local de trabalho “defendia tese do reconhecimento do ‘3º sexo”, mais
um termo homofóbico e pejorativo utilizado nas justificativas à época.
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Sindicatos eram investigados
Uma avalanche de intervenções em sindicatos
iniciou-se junto com o golpe militar em 1964. Em 7 de abril daquele ano, o
Jornal Folha do Norte, anunciou que o Ministério do Trabalho havia
decretado intervenção nos Sindicatos dos Trabalhadores da Indústria de Extração
de Petróleo dos estados do Pará, Amazonas e Maranhão. A notícia abordava o mito
da escalada comunista no Brasil e enfatizava que os sindicalistas teriam
trocado correspondências com Moscou e outras capitais, “funcionando ativamente
o recebimento de material subversivo”.
No mesmo dia da intervenção nos estados das regiões
Norte e Nordeste, o superintendente da refinaria de Presidente Bernardes, José
Augusto Angrisani, em Cubatão (SP), publicou uma convocação para o retorno de
trabalhadores — possivelmente em greve — ao serviço, no prazo máximo de 24
horas. Caso contrário, alertava o superintendente, os contratos seriam
rescindidos. O comunicado destacava: “o interesse e a segurança nacionais não
podem estar sujeitos a manifestações isoladas de indisciplina”.
Postulantes a funções de presidentes sindicais
também estavam na mira da repressão. Em 9 de agosto de 1976, um ofício foi
encaminhado ao titular da DOPS com a solicitação de informações de
“antecedentes político-ideológicos” dos candidatos às eleições que seriam
realizadas pelo Sindicato dos Petroleiros, em Cubatão.
Os sindicalistas identificados como “subversivos”
eram denunciados de forma imediata. Uma auditoria da Justiça Militar
encaminhada pelo auditor em exercício, João Nunes das Neves, ao então
presidente da Petrobras, em 15 de maio de 1969, evidencia como opositores
seriam tratados. O auditor solicita informações de oito pessoas vinculadas à
empresa e esclarece que o pedido se faz necessário para que o presidente da
estatal denunciasse os funcionários no IPM (Inquérito Policial Militar)
instaurado com o objetivo de “apurar atividades subversivas em sindicatos de
classe”. Na mesma página, o auditor enfatiza a urgência do pedido por
configurar processo de “subversão”.
“Tem uma
eleição que é um pedido de intervenção direta com um pedido proveniente da
superintendência para impugnar uma candidatura. Inicialmente a Delegacia do
Trabalho impugna essa candidatura e mais tarde os trabalhadores conseguem na
justiça o direito de concorrer. Isso por óbvio antes do AI-5 [Ato Institucional
nº 5 emitido em 13 de dezembro de 1968 e que deu início ao período mais
violento da ditadura]. Aí essas questões se tornam mais difíceis”, frisou Alex
Ivo, pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da
Bahia e integrante da pesquisa da Unifesp.
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Agentes infiltrados
IPMs tomaram conta de unidades da Petrobras entre
abril e outubro de 1964. Os recrutados para vigiar os funcionários, segundo os
relatos obtidos pela Pública, eram jovens que serviam às Forças Armadas.
Militares também eram colocados em funções estratégicas de acesso a dados pessoais
dos trabalhadores. “Normalmente os militares tinham atividade no setor de
recursos humanos, sempre era na área de recursos humanos porque assim,
facilitava ‘pra’ eles passar informações caso a pessoa se envolvesse em
atividade política ou sindical”, descreve o relato documentado de um
ex-operário.
Em meio aos inquéritos, a troca de informações entre
regime e empresa tornou-se ainda mais frequente — um dos exemplos é o ofício de
um interventor ao DOPs, em 18 de julho de 1964. São encaminhados nomes e filiações
dos membros da diretoria do sindicato que atendia a trabalhadores de Cubatão,
Santos e São Sebastião, em São Paulo.
Há também indícios de que os órgãos de classe eram
monitorados mesmo antes de a ditadura ser instalada e que a Petrobras contratava
infiltrados para fragilizar a atuação sindical. Um dos possíveis espiões é
descrito na solicitação feita por meio da DIVIN, em 29 de julho de 1965. O
documento requeria dados sobre um empregado que à época do golpe de 1964
exercia cargo-chefe na empresa. O DOPS, por sua vez, respondeu que o
funcionário desempenhava função para a segurança nacional e seu contato com o
sindicato obedecia o “prévio plano”. O texto, porém, não detalha o cerne do
“plano” articulado.
Relatório aponta que possível infiltrado da
Petrobras cooperava com a ditadura e seguia “plano prévio”
A reportagem entrou em contato com a Petrobras via
assessoria de imprensa para que comentasse o conteúdo publicado, mas não obteve
retorno até a publicação.
Esse acervo da Petrobras com documentos e
testemunhos que por décadas ficou escondido faz parte de um relatório ainda
inédito que será enviado ao Ministério Público Federal e que pretende servir de
base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar. “Um
dos objetivos era reunir elementos, indícios e provas para que o MP pudesse
abrir ações judiciais, inquéritos ou procedimentos administrativos contra essas
empresas”, diz Edson Teles, coordenador do projeto.
Fonte: Por Dyepeson Martin, da Agência Pública
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