terça-feira, 30 de maio de 2023

Abin alertou governo Bolsonaro sobre aumento do garimpo ilegal em terras indígenas

Desde ao menos 11 de maio de 2020 o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) já sabia que a pandemia de Covid-19 poderia gerar aumento no desmatamento e no garimpo ilegal na Amazônia, crimes que proporcionariam o contágio da população indígena com o coronavírus. O governo foi avisado dos riscos pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que elaborou um relatório e o enviou para a Casa Civil, então comandada pelo general da reserva do Exército Walter Braga Netto. 

Criada em 1999, a Abin tem como uma de suas atribuições, previstas na lei 9.883/99, obter e analisar dados “para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República”.

“A atual crise do coronavírus coloca desafio (sic) adicionais à atuação do Estado no combate ao garimpo ilegal na Amazônia”, aponta o relatório sigiloso de sete páginas denominado “Desmatamento, queimadas e garimpos no contexto do covid-19”.

O documento integra um conjunto de 170 arquivos produzidos pela Abin de março a junho de 2020 ao qual a Agência Pública teve acesso via Lei de Acesso à Informação, após dois anos e meio de negativas do governo de Jair Bolsonaro (PL).

“Devem ser destacados o risco de propagação do vírus para populações indígenas relativamente isoladas bem como a aceleração da abertura de novas áreas e a intensificação da exploração de áreas antigas em virtude das dificuldades enfrentadas pelos órgãos estatais, em geral, e pelos órgãos de fiscalização e repressão, em especial”, alertou a Abin em maio de 2020.

O relatório também apontou que “a crise relacionada à pandemia de Covid-19 conforma contexto potencialmente mais propício às ações de desmatamento” e ressaltou que “os alertas de desmatamento na região amazônica foram maiores para o primeiro quadrimestre de 2020, comparados aos mesmos períodos dos últimos quatro anos”. 

Mesmo de posse das informações da agência de inteligência, o ex-presidente Bolsonaro negou o desmatamento em declarações públicas durante o seu governo. Por exemplo, em seu discurso na 76ª Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova York em setembro de 2020, Bolsonaro mentiu ao dizer que o desmatamento havia caído e que 84% da Amazônia estava intacta. Em fevereiro de 2022, também afirmou que a destruição da floresta era “coisa que não existe”.

Ao longo do governo Bolsonaro, numa confirmação da advertência da Abin, de fato explodiu a atividade de mineração ilegal no país, inclusive a partir de falhas e omissões do Executivo federal. O estudo “Terra Arrasada”, divulgado em 2023, apontou que a “fragilidade institucional” se agravou durante o governo Bolsonaro, levando a recordes de destruição da floresta amazônica provocada pelo garimpo ilegal. O aumento pode ser calculado a partir dos valores das operações financeiras com ouro feitas por um grupo de oito grandes DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários). Em 2018, o grupo havia operado R$ 1,4 bilhão com o minério; em 2021, o valor saltou para R$ 7,4 bilhões. Grande parte desse ouro, segundo o estudo, foi retirada de áreas protegidas e “esquentada” como se viesse de garimpos legalizados.

·         Garimpo e negligência com povos indígenas

“Há indícios de que a atividade de garimpo ilegal se encontra em expansão na Amazônia Legal”, afirma o relatório da Abin. O texto cita “relatos de lideranças indígenas e pesquisadores” que indicariam “a expansão da atividade sobretudo nas áreas de exploração mais conhecidas, como o sul do estado do Pará e as regiões de floresta do estado de Roraima”.

Em Roraima, por exemplo, fica a Terra Indígena Yanomami, que vive uma emergência sanitária e humanitária decorrente da invasão de mais de 20 mil garimpeiros ao longo dos últimos anos. Em março de 2020 — a relatório é de maio daquele ano — a Funai produziu um documento sobre indígenas isolados na TI Yanomami, obtido pela Pública, onde se registra que “o garimpo tem sido a principal ameaça à reprodução física e cultural dos Moxihatëtëma, cujo território se encontra cercado pela invasão garimpeira”.

O texto da Abin demonstrou ainda preocupação com as consequências do crescimento do garimpo para a “imagem do Estado brasileiro” e ressaltou que a atividade “incide com maiores consequências sociais e ambientais, bem como com maiores impactos negativos para a imagem do Estado brasileiro” quando é realizada no “território protegido de Terras Indígenas”.

Além da própria atividade ilegal, surgiriam ainda problemas decorrentes dela, como a exposição de indígenas ao coronavírus, explicou a Abin no documento enviado à Casa Civil. “Uma nova dimensão, especialmente preocupante, dessa expansão é a possibilidade de contágio de populações indígenas pelo novo coronavírus.”

Em fevereiro deste ano, a Pública revelou que o governo Bolsonaro só se movimentou para controlar a disseminação do vírus e proteger os indígenas depois que foi obrigado pelo STF, em agosto de 2020, a formular um plano de enfrentamento.

O plano de contingência específico para terras indígenas apresentado pelo Executivo só foi aceito pelo STF meses depois, em 16 de março de 2021, depois de ser recusado quatro vezes por ser “genérico”. Ao final de 2022, mais de 900 indígenas haviam morrido de Covid-19 em todo o país.

Covid-19 entre indígenas era “especialmente preocupante”, dizia Abin

·         Abin cita dados do INPE, acusado por Bolsonaro de “mentir”

O relatório da Abin enviado à Casa Civil em maio de 2020 também descreveu a situação do desmatamento em alguns estados da Amazônia Legal de 2019 a 2020 usando dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), acusado por Bolsonaro de mentir sobre os dados em 2019.

De acordo com o relatório da Abin, “as maiores taxas de desmatamento da série histórica do PRODES (INPE) são do Pará”, onde se localizavam “cinco dos dez municípios com maior desmatamento potencial nos últimos doze meses”.

“Das dez áreas de proteção com maior desmatamento nos últimos doze meses, oito estão no Pará. A Floresta Nacional do Jamanxim (PA); a Área de Proteção Ambiental do Tapajós (PA); e a Reserva Extrativista Chico Mendes (AC) foram as mais impactadas”, ressaltou a agência de inteligência.

Além do destaque ao Pará, o crescimento do desmatamento no Amazonas também chamou a atenção do órgão: “a presença de Lábrea/AM, Apuí/AM e Novo Aripuanã/AM na lista dos municípios com maior desmatamento é indicativo de uma fronteira de desmatamento no sul do Amazonas, estado com maior área preservada do país”.

De acordo com o documento, um dos motivos para a situação propícia ao desmatamento gerada pela Covid-19 seria a menor “capacidade repressiva estatal, considerando que recursos humanos e materiais do Estado estão empregados, prioritariamente, no tratamento da situação de saúde”.

O órgão também alertou: caso o número de operações de fiscalização ambiental e de autuações emitidas pelo Ibama continuassem a cair, como já havia ocorrido em 2019, poderiam haver “reações judiciais” contra o Estado brasileiro. 

“A quantidade de Autos de Infração lavrados pelo Ibama em 2019, de acordo com dados apresentados pelo Ministério Público Federal, é a menor em 20 anos, apesar de os números consolidados do desmatamento no ano terem sido historicamente elevados. Nesse sentido, eventual redução, em 2020, do número de operações de fiscalização e de autuações feitas por órgãos ambientais, a exemplo do verificado nos dados de 2019, tende a dar ensejo a reações judiciais promovidas pelos Ministérios Públicos Estaduais e Federal”, alertou a Abin.

A Pública já mostrou que o então presidente do Ibama, Eduardo Bim, tentou invalidar autuações ambientais feitas entre 2008 e 2019 durante sua gestão. O despacho em questão foi anulado em março deste ano.

Ex-presidente do Ibama, Eduardo Bim tentou invalidar autuações ambientais que poderiam custar ao menos R$ 3,6 bilhões à União

·         O papel da Abin no combate à Covid-19 do governo Bolsonaro

O relatório “Desmatamento, queimadas e garimpos no contexto do covid-19” integra um conjunto de relatórios produzidos pela Abin na época do combate à Covid-19, que na Presidência da República de Jair Bolsonaro ficou sob a coordenação do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP) da Casa Civil. A memória das reuniões da CCOP foi revelada com exclusividade pela Pública na série de reportagens As Atas Secretas da Covid-19.

Tanto as atas secretas da CCOP quanto os documentos agora revelados não foram acessados nem analisados pela CPI da Pandemia, que funcionou no Senado Federal em 2021. Após a publicação da série de reportagens, a cúpula da comissão aventou a possibilidade de pedir a reabertura de inquéritos arquivados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com base na revelação das atas secretas.

Na maior parte do tempo, os trabalhos do CCOP foram coordenados pelo tenente-coronel reformado do Exército Heitor Freire de Abreu, então subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil – um subordinado direto do general Braga Netto.

Conforme apurado pela Pública, parte dos materiais produzidos pela Abin era entregue pessoalmente à assessoria do então ministro da Casa Civil, em papel e com a informação sobre qual setor da agência era responsável pela confecção dos documentos. Os materiais da Abin não eram levados para as reuniões do comitê.

 

Ø  Indígenas preparam banco de dados sobre violações de direitos humanos. Por Fernanda Couzemenco, no Século Diário

 

Quais as principais violações de direitos humanos e impactos nas terras indígenas homologadas e não homologadas? Quais comunidades já possuem seu protocolo de consulta, referente à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)? Quais vitórias foram alcançadas frente a situações de conflito dentro dos territórios? Um grande mapeamento dessas e outras questões fundamentais está em elaboração pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme), para auxiliar a luta pela garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas em toda essa grande região do País.

“É mais uma ferramenta para utilizar no dia a dia. Vamos criar um banco de dados com todas essas informações, para nos auxiliar na luta”, afirma Paulo Tupinikim, liderança em Caieiras Velha, em Aracruz, no norte do Estado, e coordenador-geral da Apoinme.

No caso capixaba, ele cita como exemplo de questões que irão alimentar o banco de dados, o cumprimento das condicionantes sociais e ambientais dos quase 40 empreendimentos instalados dentro ou no entorno das Terras Indígenas Tupinikim e Guarani. Apesar do Fórum criado pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2017 para organizar o diálogo entre as empresas e as comunidades, predomina a falta de atendimento a obrigações básicas previstas no licenciamento ambiental para instalação ou ampliação das atividades, como os planos básicos ambientais indígenas, que não foram entregues nem por empresas há muito estabelecidas, como Suzano e Vale, tampouco pelas mais recentes, como Imetame e Jurong.

A elaboração dos protocolos de consulta, em referência à OIT 169, é outra ação prioritária a ser mapeada e monitorada pelo banco de dados. “Muitos empreendimentos chegam nos territórios sem consultar as comunidades. Ou só conversam com uma comunidade e as outras não. Fazem audiência pública no município, mas não consultam os indígenas. O protocolo de consulta obriga os empreendimentos a dialogar”, explica.

Um impacto industrial em específico merece um estudo à parte nesse levantamento, que é o crime da Samarco/Vale-BHP. “Apesar do rompimento ter ocorrido fora do território, em Mariana, Minas Gerais, os rejeitos chegaram dentro do território, prejudicaram muito as comunidades e ainda está sem definição de como isso vai ser resolvido. A gente espera que tenha uma solução agora dia 26 de junho, com a audiência marcada pelo juiz”, expõe Paulo.

A audiência, lembra, é resultado da ocupação dos trilhos da Vale realizada durante 42 dias no final de 2022, que forçou uma intervenção da Justiça Federal para garantir que as mineradoras dialogassem a fim de revisar o acordo imposto pela Fundação Renova e que foi lesivo às famílias atingidas.

Outra questão que de antemão já se sabe vai integrar o mapeamento, é o processo de reconhecimento e homologação de algumas comunidades que começam agora a reivindicar a regularização dos seus territórios tradicionais. “Os Botocudos de Areal, os Pataxós de Itaúnas, os Guarani do Caparaó e os Tupinikim na Chapada do A, em Anchieta”, elenca.

·         Corte Interamericana

A construção do banco de dados da Apoinme é mais uma ação de defesa dos povos indígenas do Espírito Santo, Minas Gerais e Nordeste. Uma conquista recente foi a denúncia da violência sofrida pelo povo Pataxó da Bahia, aceita na Corte Interamericana de Direitos Humanos no último dia 24 de março.

A denúncia envolveu, além da Apoinme, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR), o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH), o Instituto Hori Educação e Cultura, a Justiça Global e a Terra de Direitos.

Confirme noticiado na época pela Apib, a denúncia à Corte Interamericana foi necessária para contrapor a narrativa do governo, cujo relatório afirma que “o Estado tem buscado pacificar os conflitos narrados na área em questão, investigar os crimes ocorridos e, em sede judicial, tem assegurado os direitos dos indígenas”. Porém, afirma a Apib, até o momento os esforços para conter as investidas dos fazendeiros e milicianos contra a vida dos povos indígenas da região se mostraram ineficazes e a íntima relação de policiais da Bahia com os fazendeiros têm tornado as instituições de segurança inacessíveis e ameaçadoras para os indígenas.

Com a denúncia à Corte, o caso toma relevância internacional, o que pode ajudar sobremaneira e proteger a vida e o território do povo Pataxó da Bahia.

 

Fonte: Por Alice Maciel, Bruno Fonseca, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Thiago Domenici e Rubens Valente, da Agencia Pública

 

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