Abin
alertou governo Bolsonaro sobre aumento do garimpo ilegal em terras indígenas
Desde ao menos 11 de maio de 2020 o governo do
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) já sabia que a pandemia de Covid-19 poderia
gerar aumento no desmatamento e no garimpo ilegal na Amazônia, crimes que
proporcionariam o contágio da população indígena com o coronavírus. O governo
foi avisado dos riscos pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que
elaborou um relatório e o enviou para a Casa Civil, então comandada pelo
general da reserva do Exército Walter Braga Netto.
Criada em 1999, a Abin tem como uma de suas
atribuições, previstas na lei 9.883/99, obter e analisar dados “para a produção
de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República”.
“A atual crise do coronavírus coloca desafio (sic)
adicionais à atuação do Estado no combate ao garimpo ilegal na Amazônia”,
aponta o relatório sigiloso de sete páginas denominado “Desmatamento, queimadas
e garimpos no contexto do covid-19”.
O documento integra um conjunto de 170 arquivos
produzidos pela Abin de março a junho de 2020 ao qual
a Agência Pública teve acesso via Lei de Acesso à Informação,
após dois anos e meio de negativas do governo de Jair Bolsonaro (PL).
“Devem ser destacados o risco de propagação do vírus
para populações indígenas relativamente isoladas bem como a aceleração da
abertura de novas áreas e a intensificação da exploração de áreas antigas em
virtude das dificuldades enfrentadas pelos órgãos estatais, em geral, e pelos
órgãos de fiscalização e repressão, em especial”, alertou a Abin em maio de
2020.
O relatório também apontou que “a crise relacionada
à pandemia de Covid-19 conforma contexto potencialmente mais propício às ações
de desmatamento” e ressaltou que “os alertas de desmatamento na região
amazônica foram maiores para o primeiro quadrimestre de 2020, comparados aos
mesmos períodos dos últimos quatro anos”.
Mesmo de posse das informações da agência de
inteligência, o ex-presidente Bolsonaro negou o desmatamento em declarações
públicas durante o seu governo. Por exemplo, em seu discurso na 76ª Assembleia
Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova York em setembro de 2020,
Bolsonaro mentiu ao dizer que o desmatamento havia caído e que 84% da Amazônia
estava intacta. Em fevereiro de 2022, também afirmou que a destruição da
floresta era “coisa que não existe”.
Ao longo do governo Bolsonaro, numa confirmação da
advertência da Abin, de fato explodiu a atividade de mineração ilegal no país,
inclusive a partir de falhas e omissões do Executivo federal. O estudo “Terra Arrasada”, divulgado em 2023, apontou
que a “fragilidade institucional” se agravou durante o governo Bolsonaro,
levando a recordes de destruição da floresta amazônica provocada pelo garimpo
ilegal. O aumento pode ser calculado a partir dos valores das operações
financeiras com ouro feitas por um grupo de oito grandes DTVMs (Distribuidoras
de Títulos e Valores Mobiliários). Em 2018, o grupo havia operado R$ 1,4 bilhão
com o minério; em 2021, o valor saltou para R$ 7,4 bilhões. Grande parte desse
ouro, segundo o estudo, foi retirada de áreas protegidas e “esquentada” como se
viesse de garimpos legalizados.
·
Garimpo e negligência com povos indígenas
“Há indícios de que a atividade de garimpo ilegal se
encontra em expansão na Amazônia Legal”, afirma o relatório da Abin. O texto
cita “relatos de lideranças indígenas e pesquisadores” que indicariam “a
expansão da atividade sobretudo nas áreas de exploração mais conhecidas, como o
sul do estado do Pará e as regiões de floresta do estado de Roraima”.
Em Roraima, por exemplo, fica a Terra Indígena
Yanomami, que vive uma emergência sanitária e humanitária decorrente da invasão
de mais de 20 mil garimpeiros ao longo dos últimos anos. Em março de 2020 — a
relatório é de maio daquele ano — a Funai produziu um documento sobre indígenas
isolados na TI Yanomami, obtido pela Pública, onde se
registra que “o garimpo tem sido a principal ameaça à reprodução física e
cultural dos Moxihatëtëma, cujo território se encontra cercado pela invasão
garimpeira”.
O texto da Abin demonstrou ainda preocupação com as
consequências do crescimento do garimpo para a “imagem do Estado brasileiro” e
ressaltou que a atividade “incide com maiores consequências sociais e
ambientais, bem como com maiores impactos negativos para a imagem do Estado
brasileiro” quando é realizada no “território protegido de Terras Indígenas”.
Além da própria atividade ilegal, surgiriam ainda
problemas decorrentes dela, como a exposição de indígenas ao coronavírus,
explicou a Abin no documento enviado à Casa Civil. “Uma nova dimensão,
especialmente preocupante, dessa expansão é a possibilidade de contágio de
populações indígenas pelo novo coronavírus.”
Em fevereiro deste ano, a Pública revelou
que o governo Bolsonaro só se movimentou para controlar a disseminação do vírus
e proteger os indígenas depois que foi obrigado pelo STF, em agosto de 2020, a
formular um plano de enfrentamento.
O plano de contingência específico para terras
indígenas apresentado pelo Executivo só foi aceito pelo STF meses depois, em 16
de março de 2021, depois de ser recusado quatro vezes por ser “genérico”. Ao
final de 2022, mais de 900 indígenas haviam morrido de Covid-19 em todo o país.
Covid-19 entre indígenas era “especialmente
preocupante”, dizia Abin
·
Abin cita dados do INPE, acusado por Bolsonaro de
“mentir”
O relatório da Abin enviado à Casa Civil em maio de
2020 também descreveu a situação do desmatamento em alguns estados da Amazônia
Legal de 2019 a 2020 usando dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE), acusado por Bolsonaro de mentir sobre os dados em 2019.
De acordo com o relatório da Abin, “as maiores taxas
de desmatamento da série histórica do PRODES (INPE) são do Pará”, onde se
localizavam “cinco dos dez municípios com maior desmatamento potencial nos
últimos doze meses”.
“Das dez áreas de proteção com maior desmatamento
nos últimos doze meses, oito estão no Pará. A Floresta Nacional do Jamanxim
(PA); a Área de Proteção Ambiental do Tapajós (PA); e a Reserva Extrativista
Chico Mendes (AC) foram as mais impactadas”, ressaltou a agência de inteligência.
Além do destaque ao Pará, o crescimento do
desmatamento no Amazonas também chamou a atenção do órgão: “a presença de
Lábrea/AM, Apuí/AM e Novo Aripuanã/AM na lista dos municípios com maior
desmatamento é indicativo de uma fronteira de desmatamento no sul do Amazonas,
estado com maior área preservada do país”.
De acordo com o documento, um dos motivos para a
situação propícia ao desmatamento gerada pela Covid-19 seria a menor
“capacidade repressiva estatal, considerando que recursos humanos e materiais
do Estado estão empregados, prioritariamente, no tratamento da situação de
saúde”.
O órgão também alertou: caso o número de operações
de fiscalização ambiental e de autuações emitidas pelo Ibama continuassem a
cair, como já havia ocorrido em 2019, poderiam haver “reações judiciais” contra
o Estado brasileiro.
“A quantidade de Autos de Infração lavrados pelo
Ibama em 2019, de acordo com dados apresentados pelo Ministério Público
Federal, é a menor em 20 anos, apesar de os números consolidados do desmatamento
no ano terem sido historicamente elevados. Nesse sentido, eventual redução, em
2020, do número de operações de fiscalização e de autuações feitas por órgãos
ambientais, a exemplo do verificado nos dados de 2019, tende a dar ensejo a
reações judiciais promovidas pelos Ministérios Públicos Estaduais e Federal”,
alertou a Abin.
A Pública já mostrou que o então
presidente do Ibama, Eduardo Bim, tentou invalidar autuações ambientais feitas entre 2008 e 2019 durante sua gestão. O despacho em questão foi anulado em março deste ano.
Ex-presidente do Ibama, Eduardo Bim tentou invalidar
autuações ambientais que poderiam custar ao menos R$ 3,6 bilhões à União
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O papel da Abin no combate à Covid-19 do governo
Bolsonaro
O relatório “Desmatamento, queimadas e garimpos no
contexto do covid-19” integra um conjunto de relatórios produzidos pela Abin na
época do combate à Covid-19, que na Presidência da República de Jair Bolsonaro
ficou sob a coordenação do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de
Crise da Covid-19 (CCOP) da Casa Civil. A memória das reuniões da CCOP foi
revelada com exclusividade pela Pública na série de reportagens As Atas Secretas da Covid-19.
Tanto as atas secretas da CCOP quanto os documentos
agora revelados não foram acessados nem analisados pela CPI da Pandemia, que funcionou no Senado
Federal em 2021. Após a publicação da série de reportagens, a cúpula da
comissão aventou a possibilidade de pedir a reabertura de inquéritos arquivados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com base na
revelação das atas secretas.
Na maior parte do tempo, os trabalhos do CCOP foram
coordenados pelo tenente-coronel reformado do Exército Heitor Freire de Abreu,
então subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil – um subordinado direto
do general Braga Netto.
Conforme apurado pela Pública, parte dos
materiais produzidos pela Abin era entregue pessoalmente à assessoria do então
ministro da Casa Civil, em papel e com a informação sobre qual setor da agência
era responsável pela confecção dos documentos. Os materiais da Abin não eram
levados para as reuniões do comitê.
Ø Indígenas preparam banco de dados sobre violações de direitos humanos.
Por Fernanda Couzemenco, no Século Diário
Quais as principais violações de direitos humanos e
impactos nas terras indígenas homologadas e não homologadas? Quais comunidades
já possuem seu protocolo de consulta, referente à Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT)? Quais vitórias foram alcançadas frente a
situações de conflito dentro dos territórios? Um grande mapeamento dessas e
outras questões fundamentais está em elaboração pela Articulação dos Povos e
Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme),
para auxiliar a luta pela garantia dos direitos fundamentais dos povos
indígenas em toda essa grande região do País.
“É mais uma ferramenta para utilizar no dia a dia.
Vamos criar um banco de dados com todas essas informações, para nos auxiliar na
luta”, afirma Paulo Tupinikim, liderança em Caieiras Velha, em Aracruz, no
norte do Estado, e coordenador-geral da Apoinme.
No caso capixaba, ele cita como exemplo de questões
que irão alimentar o banco de dados, o cumprimento das condicionantes sociais e
ambientais dos quase 40 empreendimentos instalados dentro ou no entorno das
Terras Indígenas Tupinikim e Guarani. Apesar do Fórum criado pelo Ministério
Público Federal (MPF) em 2017 para organizar o diálogo entre as empresas e as
comunidades, predomina a falta de atendimento a obrigações básicas previstas no
licenciamento ambiental para instalação ou ampliação das atividades, como os
planos básicos ambientais indígenas, que não foram entregues nem por empresas
há muito estabelecidas, como Suzano e Vale, tampouco pelas mais recentes, como
Imetame e Jurong.
A elaboração dos protocolos de consulta, em
referência à OIT 169, é outra ação prioritária a ser mapeada e monitorada pelo
banco de dados. “Muitos empreendimentos chegam nos territórios sem consultar as
comunidades. Ou só conversam com uma comunidade e as outras não. Fazem
audiência pública no município, mas não consultam os indígenas. O protocolo de
consulta obriga os empreendimentos a dialogar”, explica.
Um impacto industrial em específico merece um estudo
à parte nesse levantamento, que é o crime da Samarco/Vale-BHP. “Apesar do
rompimento ter ocorrido fora do território, em Mariana, Minas Gerais, os
rejeitos chegaram dentro do território, prejudicaram muito as comunidades e
ainda está sem definição de como isso vai ser resolvido. A gente espera que
tenha uma solução agora dia 26 de junho, com a audiência marcada pelo juiz”,
expõe Paulo.
A audiência, lembra, é resultado da ocupação dos
trilhos da Vale realizada durante 42 dias no final de 2022, que forçou uma
intervenção da Justiça Federal para garantir que as mineradoras dialogassem a
fim de revisar o acordo imposto pela Fundação Renova e que foi lesivo às
famílias atingidas.
Outra questão que de antemão já se sabe vai integrar
o mapeamento, é o processo de reconhecimento e homologação de algumas
comunidades que começam agora a reivindicar a regularização dos seus
territórios tradicionais. “Os Botocudos de Areal, os Pataxós de Itaúnas, os
Guarani do Caparaó e os Tupinikim na Chapada do A, em Anchieta”, elenca.
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Corte Interamericana
A construção do banco de dados da Apoinme é mais uma
ação de defesa dos povos indígenas do Espírito Santo, Minas Gerais e Nordeste.
Uma conquista recente foi a denúncia da violência sofrida pelo povo Pataxó da
Bahia, aceita na Corte Interamericana de Direitos Humanos no último dia 24 de março.
A denúncia envolveu, além da Apoinme, a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Associação de Advogados/as de
Trabalhadores/as Rurais (AATR), o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores
de Direitos Humanos (CBDDH), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a
Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH), o Instituto Hori
Educação e Cultura, a Justiça Global e a Terra de Direitos.
Confirme noticiado na época pela Apib, a denúncia à
Corte Interamericana foi necessária para contrapor a narrativa do governo, cujo
relatório afirma que “o Estado tem buscado pacificar os conflitos narrados na
área em questão, investigar os crimes ocorridos e, em sede judicial, tem
assegurado os direitos dos indígenas”. Porém, afirma a Apib, até o momento os
esforços para conter as investidas dos fazendeiros e milicianos contra a vida
dos povos indígenas da região se mostraram ineficazes e a íntima relação de
policiais da Bahia com os fazendeiros têm tornado as instituições de segurança
inacessíveis e ameaçadoras para os indígenas.
Com a denúncia à Corte, o caso toma relevância
internacional, o que pode ajudar sobremaneira e proteger a vida e o território
do povo Pataxó da Bahia.
Fonte: Por Alice Maciel, Bruno Fonseca, Caio de
Freitas Paes, Laura Scofield, Thiago Domenici e Rubens Valente, da Agencia
Pública
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