‘No
garimpo, o que tem dentro das tuas pernas não é teu: tem que dar lucro’, relato
de uma venezuelana
Quando vivia junto com o pai de meu filho, ainda em
2018, escutei várias pessoas falarem do garimpo. Não sabia seu significado, até que não pude aguentar a curiosidade e
perguntei por que ele não ia, já que estávamos passando por uma forte crise de
dinheiro e eu estava sem trabalho, assim como ele, e já estava grávida. “Tá
louca? Eu não vou morrer na mão de ninguém lá, muito menos por ouro. Ninguém
sabe se eu vou pegar, se vão me matar.” Eu disse: “A gente tem que ir sempre
nos projetos com a mente positiva, pra tudo dar certo. Se tu confia em Deus, eu
sempre tenho Deus presente ao meu lado, meu irmão, tu vai ser bom ganhador!”.
Mas pra ele tudo era não, era eu prefiro comer arroz com manteiga, mas para lá
eu não vou… Naquela época eu comecei a escutar que mulheres iam para lá. Eu
pensei: eu já trabalhei na rua, já me estupraram, quase fomos assassinadas e
enterradas, minha prima e eu, por quatro rapazes dentro de um carro, e a gente
já nem dormia direito pra fazer 400, 500 reais. Já passamos perigo, por que eu
não vou pra lá? Eu vou me arriscar sim! Eu vou me arriscar. E tomei a decisão.
Na época que decidi ir, eu estava separada do pai do meu filho, morando em uma
vila na periferia de Boa Vista, sem trabalho. Era junho de 2021.
Eu falei com uma amiga que tinha conhecimento de
como era o garimpo, e ela comentou que uma conhecida estava lá e que, no lugar
onde ela estava, a patroa precisava de uma mulher para trabalhar no cabaré. A
passagem de ida eram 15 gramas de ouro [cerca de 3 mil reais]. Eu conversei com
a minha vizinha, a gente fez uma boa amizade na época: “Eu tô indo amanhã pro
garimpo e não tenho com quem deixar o meu filho”. Ela disse: “Será que também
pode ir o meu marido?”. Ela também estava numa crise econômica bastante forte.
A gente pegou o número da dona do cabaré e acertou para o esposo dela ir. Isso
foi assim, rápido.
PREPARATIVOS PARA UMA NOITE NO CABARÉ
Perto dos itens de pedicure, uma arma: quando a
patroa precisou se ausentar por uns dias, Patri ficou responsável por sua
própria segurança e a das colegas. Ela aproveitou para praticar tiro com alguns
garimpeiros. Foto: arquivo pessoal/Patri
No outro dia, eles ligaram: “Olha, aqui tem o número
do dono do avião, ele vai pra sua casa, vai pesar as suas coisas, vai pesar
você, o rapaz, as coisas dele, e às 5 horas da manhã vai te pegar pra levar pra
fazenda [de onde saem os voos]. É só esperar que chegue o avião pra você entrar
no garimpo”. Nesse dia choveu muito. Aí eles ligaram antes das 22, 23 horas:
“Se continuar chovendo, não vai dar certo viajar hoje, mas amanhã com certeza a
gente busca uma fazenda pra você ir embora, porque sua passagem já está paga. A
sua passagem vai ser 15 gramas de ouro e, quando você chegar lá, você se
resolve com a dona”. Me explicaram que existem três tipos de avião: um com
capacidade máxima de 300 quilos, outro de 500 quilos e o “tubarão”, que leva
mais de mil quilos. Na época eu estava bem magra, lembro que estava pesando 52
quilos, algo assim. Fui no avião de 500 quilos, e junto comigo foram as
mercadorias pra dona do cabaré: comida, bebida e balas [para armas]. Nós não
conseguimos viajar nesse dia, só no dia seguinte. “Montem, que a gente vai
levar vocês pra longe daqui, pra uma fazenda, porque lá não chega a polícia”,
disseram. Eu não sei exatamente onde era nem quem era o dono do lugar, só sei
que era muito longe. Demoramos umas duas ou três horas para chegar e levamos 15
minutos de carro para percorrer o trajeto do portão de entrada até chegar no
galpão onde ficavam os aviões. Ao redor eu só via mato, não tinha nenhuma
construção, nenhuma casa, era no meio do nada.
·
Sexo com homem fedorento e cheio de cachaça: o que
eu fiz?
O avião ficou dentro do garimpo até amanhecer o
outro dia. Ele foi embora, e nós fomos para o cabaré. Fomos andando, eu não
tinha botas. Não sabia o que a gente tinha que ter. Estava só com minhas
sandálias pretas, uma calça jeans rasgada e uma blusa verde bem folgada. Tinha
um detalle no meu pescoço, um cordãozinho prata com a letra Z,
que é a inicial do nome da minha irmã mais nova. Quando por fim cheguei,
cansada, fui [falar] com a patroa, a Bruxa [nome fictício], e com a amiga da
minha amiga, que me disse: “Se puder, seja cega, surda e muda, trate de ser
muito paciente e calma e não fale muito”. Ao me dizer isso, deixou claro que
ali não era um lugar onde eu poderia me equivocar e que é tu e somente tu.
Quando a Bruxa se aproximou, eu pensei: cadê a patroa? Na foto do WhatsApp ela
era mais jovem e forte. Mas quando ela se aproximou parecia mesmo uma bruxa.
Ela era uma mulher da terceira idade, com um aspecto físico muito descuidado.
Magra, alta, com muito cabelo, mal pintado, pele ressecada e um rosto marcado
por linhas de expressão. Ela chegou e alisou o meu cabelo, me abraçou e me
falou pra tomar um banho e me arrumar pra sentar no salão. O salão era uma área
aberta, coberta só por lona, com um pau no meio para as mulheres fazerem
striptease e com bancos grandes de madeira onde se sentam todas as mulheres de
programa e começam a debater entre elas quem é o seu cliente. Não senti uma boa
energia da minha patroa, nenhum tipo de conforto. Eu estava supermorta de
cansaço, mas suponho que para ela isso não importava. Quanto mais rápido eu me
apresentasse a seus clientes, mais rápido ela recuperaria seus gramas [de
ouro].
Quando me encontrava pronta pra me sentar no salão,
um senhor de uns 70 anos chegou e perguntou pra patroa: “Ela é nova, é?”. “Sim,
ela chegou agora, mas tu não vai ficar com ela não.” Ela já tinha um cliente
específico pra mim. Tinha [também] uma menina que havia chegado um dia antes e
ainda não havia trabalhado. Então o cara tava dando 15 gramas [3.000 reais] por
ela, pra levar ela pro barraco dele. Entendi que esse era um outro tipo de
contrato. Quando você aceita ficar mais tempo com o cara no barraco dele, tem
que lavar a roupa, fazer comida e não pode fazer programa com outro cliente
durante esse período. Só que, quando esse senhor me viu, ele disse: “Não, não
quero ela não. Quero essa mira”. Ele me chamou de mira porque
eu era a única venezuelana [em Roraima, os venezuelanos são pejorativamente
chamados de mira]. “Eu vou pagar 20 gramas [4.000 reais] pra levar
ela pro meu barraco por sete dias.” Só que a dona não queria me soltar.
Quando você chega lá [no garimpo], o que tu tem
dentro das tuas pernas não é teu, é da dona. Tu até pode falar que não vai
ficar. Mas tua consciência sabe que tu tá devendo. Então ela está te mandando.
Tu tem que ir. Ou, pelo menos, dar lucro. Se tu não tá acostumada a beber
cachaça, tu vai ter que fazer o cara gastar tomando cachaça. A dona da cantina
vende balas, e tem um monte de peões com arma. E acabam as balas, porque,
normalmente, quando ficam bêbados, eles ficam atirando no ar. Tu vai e tu fala
“bora lá me ensinar a disparar, a atirar”. Só pra fazer o pessoal consumir. Tu
tá na “trampa”, como eles falam. Está no jogo. Tu tem que aprender a jogar,
porque nem todo tempo tu vai querer perder. Se tu perde, vai sair dali lisa,
sem nada no bolso. Quando tu paga teus 15 gramas, dali pra frente tu quer
continuar ali no cabaré fazendo dinheiro. Mas tudo é caro dentro do garimpo,
ali se ganha, ali se gasta. Pra tu poder te alimentar toda semana, tu tem que pagar
1 grama de ouro pra cozinheira [cerca de 200 reais]. Se um cabaré tem sete
mulheres, todas elas têm que pagar 1 grama de ouro pra essa cozinheira toda
semana. Esse é um lucro pra dona, porque é ela que gerencia também o trabalho
da cozinheira. É a dona do cabaré que faz a gestão do voo que traz a
mercadoria, porque tudo vem da rua. Pra acessar a internet, você tem que pagar
até 60 gramas de ouro [12.000 reais].
Normalmente os primeiros pagos, se tu é
habilidosa, porque tem mulher habilidosa, caem na tua mão. Se tu sabe fazer
teus negócios, se tu já era acostumada, já era esperta na matéria, esse ouro
vai chegar na tua mão e tu vai pagar depois pra dona. Mas se tu é novata, como
eu, que nem a outra menina que chegou antes de mim, vai cair na mão da dona. E
nem sabe quanto o cliente pagou. Eu, por exemplo, transei com quatro caras e
praticamente foi de graça. Pra mim nunca chegou nada, e ela disse que pra ela
nunca chegou, mas eles juraram, e brigaram com ela, que pagaram até 4 gramas
[800 reais] por noite pra mim. Os primeiros dois, três dias foram um pouco
complicados pra mim porque, na verdade, ser garota de programa no garimpo foi
pior do que ser garota de programa na rua. Minhas expectativas ficaram no chão.
Porque todos esses peões, eles não tomam banho direito, obviamente. Porque a
higiene lá é bem perturbada mesmo. Você tem que pedir pra ir pro rio, tomar
banho nas grotas dos rios. Tu não fica com aquela privacidade de tomar banho em
um banheiro real, fazer cocô em um banheiro real. Você tem que se adaptar a
muitas coisas. E o clima fez mal pra mim, sou alérgica aos carapanãs
[mosquitos], e aquele medo da escuridão… E era muita pessoa com cachaça, todo
dia.
A maioria das donas de cabaré vem com uma história
bem marcada dentro do garimpo, marcada no sentido de que elas são bem
reconhecidas pela trajetória que têm dentro do garimpo antes de serem donas,
antes de terem lucro ou respeito dentro do garimpo, porque tudo é tipo um
território. Quando eu cheguei no garimpo, eu tinha medo de tudo, até de falar grosso
pra uma pessoa ou de recusar uma proposta. Aí eu percebi que no meio do tráfico
as pessoas marcam território de poder. Porque não se chama outra coisa. Isso é
tráfico. Não tem outra palavra pra descrever essa situação de drogas, pistolas, balas, armas, ouro, gasolina, entre outras
coisas – muitas – que eu comecei a perceber em poucos
dias. No caso, a dona do primeiro cabaré em que cheguei vinha com uma história
muito forte. Quando ficava muito bêbada, ela começava a desabafar seu relato de
vida pessoal. Ela foi estuprada, vendida a homens do garimpo. Sempre escutei
ela falar quanto se esforçou para criar seus dois filhos e ter o que ela tinha
naquele momento. E ela era assim muito arrogante, muito imponente do seu jeito.
Mas às vezes eu sentia pena dela, porque quando ela ficava muito bêbada ficava
lembrando que ela tinha matado uma pessoa, porque ela foi estuprada e não teve
outro jeito, teve que matar para fugir daquele garimpo. E ela praticamente se
tornou a pessoa que era naquele momento devido à situação de vida dela. Então
eu fiquei com pena e fui criando uma amizade com ela, não sei como. Não sei se
foi porque me senti um pouco complementada com a história dela.
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Perder dinheiro no Pix ou me arriscar?
Bater pano é quando a pessoa, o homem que trabalha
com máquina e que uma vez por semana limpa aquela máquina, tira o que se chama
de cobertor, onde fica o ouro. Eles limpam, passam aquela química, como é que
se chama? Mercúrio! E fazem aquele processo pra fazer o ouro. Todo fim de
semana, ou antes do final de semana, na sexta ou de sábado pra domingo, eles
batem pano. É quando vem mais ouro, quando as cantinas, os cabarés, o jogo de
sinuca, as apostas [fervem], até os índios ficam muito bêbados. Quando eles
batem pano é muito bom. Muitas vezes tem mulheres de programa que se relacionam
muito com um cliente, e o fato de dar muita confiança pra só um cliente faz com
que outros peões não te vejam mais como mulher de programa, mas como mulher
desse peão. Mas se tu não tá relacionada com nenhuma pessoa, então tu faz até
quatro, cinco programas por noite [quando eles batem pano]. O ouro na rua é 300
reais 1 grama. Mas dentro do garimpo, como tem muito ouro, é 180 reais. E te
cobram uma taxa por cada Pix que varia entre 50 e 70 reais. Então,
literalmente, você está perdendo dinheiro vendendo o teu ouro no garimpo.
Agora, tem outra opção: tu tem 10 gramas de ouro e quer mandar pra rua. Pode
fazer, mas está arriscando. O que acontece? [Dá o ouro pra uma pessoa] e mais
tarde essa pessoa pode vir com uma história: “Me pegou a polícia, pegou o
ouro”. O ouro chegou chueco, ou seja, incompleto: em vez de 10
gramas, chegaram 5 gramas. Pra mim, então, era melhor pelo menos mandar 180
reais do que mandar 300 reais [que talvez nunca chegassem].
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O dia em que o velho me levantou com a faca
Na segunda vez que voltei pro garimpo, em 2022, vivi
um momento muito difícil. Um dia chegou um cliente que era trabalhador do dono
do cabaré, um homem que não só ganhava com o cabaré, mas também com suas
máquinas [de extração de ouro]. Bueno, esse cliente bebeu tanto que
me disse que iria ao banheiro, e quando eu fui ao meu fuscon encontrei
um velho bêbado dormindo na minha cama. Comunico isso ao meu patrão, que estava
com sua amante nos seus aposentos. Ele me diz: “Dorme em outro, já que as suas
outras amigas foram embora”. Ou seja, que fueran pal coño. Fui e me
deitei [no fuscon] ao lado. Por volta das 2 ou 3 horas da
madrugada, chegou alguém. Escutei passos e alguém entrou no meu fuscon e
me chamou. Eu respondi: “Não estou aí, estou ao lado”. O tipo entra e diz que
vem de longe pra me fazer uma proposta: “Tenho 3 gramas [600 reais] e 250 reais
em dinheiro. O outro grama [200 reais] te pago depois”. O tipo tinha um cheiro
horrível nas suas patas, além do que estava quase pra quebrar a minha paciência
querendo tirar o preservativo. Eu sugeri que, se ele continuasse, poderia pegar
seu dinheiro e ir embora. Porque eu trabalho me cuidando, não concordando com
essa forma. Ele, ao final, viu que não conseguiria nada e me disse: “Ok, não
te molesto porque senão não vou acabar [gozar] nunca”. O velho
que estava dormindo dentro do meu fuscon, ao lado, acordou, e eu
senti alguma coisa palpitando dentro de mim, tipo um alerta. Só puxou aquele
facão e rasgou o fuscon: “Vai, acorda, filha da puta! Onde que tu
tá?”. Eu abri o outro lado do fuscon e saí correndo. Ele foi
atrás de mim, me xingando, dizendo: “Maldita venezuelana, vou te matar, tu acha
que eu sou o quê? Um otário? Sou um homem, tu me respeita, maldita. Vou te
matar agora!”. Ele me levantou com a faca, colocou bem no meu pescoço e falou:
“Levante, levante, filha da puta! Tou falando!”. No momento em que eu levantei,
ele virou o facão, reto, pra me cortar e falou: “Vai e manda mensagem pro seu
filho e se despeça do seu filho, porque tu vai morrer hoje”. No momento que
esse homem falou isso, meu corpo todo tremeu de frio. Chorei, pedi piedade:
“Por amor de Cristo você não faz nada comigo, por favor. Não marquei nada com
você”. Teve um momento em que eu estava na frente, mas não sei como, em questão
de segundos, virei e fiquei nas costas do cara com quem eu tava dormindo [o do
cheiro horrível nas patas]. E o cara, que tinha um revólver embaixo do colchão,
disse assim: “Ei, flaco, tu baixa esse facão e deixa a menina,
porque você tá errado. A menina não tá contigo, não tá te acompanhando”.
Levantei e fui rapidinho na área onde estavam
dormindo os meus patrões, porque era um casal, e expliquei [o que estava
acontecendo]. Eles ficaram só sorrindo, achando graça. Aí tu vê a realidade,
que tu não é protegida por ninguém. Lembro direitinho do cliente falar “eu vou
dar os 6 gramas [1.200 reais] pra tu, mas tu hoje tem que sair desse cabaré,
porque se tu não sair hoje desse cabaré tu vai morrer”. O cara me falou assim,
um velho já experiente de garimpo: “Tu vai morrer, sai”. Tu acha que eu dormi
naquela noite? Eu acordei às 6 horas, tomei café muito sem vontade, sem cabeça,
sem orientação. E o dono viu e me falou na brincadeira: “E aí, mira, como é que
foi?”. Aí eu olhei e falei sabe o quê? “Vai se foder, você e seu maldito
cabaré! Peço pra Deus que você não pegue nem mais 1 grama de nós, de todas as
mulheres que tão aqui.” Aí o cara disse: “Se você tem vontade de ir embora pode
ir, mas você tem que me pagar 19 gramas [3.800 reais] de ouro agora”. E eu
respondi: “Como 19 gramas? A gente tinha combinado que eram 13 gramas [2.600
reais] pra eu vir aqui”. E ele: “Não, são 19 gramas. Se tu quer, pode sair. Se
não, não”. Lembro exatamente que eu tinha 21 gramas [4.200 reais] de ouro, e
isso foi antes do começo do mês. Eu falei que ia pagar os 19 gramas porque
tinha ódio da cara dele, falei um monte de coisas pra ele. A gente se xingou, e
ele disse que nós, venezuelanos, éramos mal-agradecidos.
Nesse dia eu fui na grota, chorei muito, tomei um
banho, um banho de água bendita. Lembro que esse dia foi o que mais me
impactou, que pensei estou aqui, viva, tomando água da natureza, sentindo a
água me tocar. Tou aqui, chocada, mas aqui. A grota é um buraco com uma ponte em
cima, e lá tu pode lavar roupa, pode tomar água, pode se banhar, porque a água
vai correndo… E eu deitei ali e fiquei um montão de tempo. Não queria chegar no
cabaré. O homem do lado da gente falando… “gostosa”. Eu não queria estar ali.
Aí terminei de tomar meu banho, me assear, lavar minha roupa, fui estender a
roupa, esperei o almoço, fui comer. E os outros peões falavam: “O que foi,
mira? Bora, te levo pra outro garimpo”. Eu falei: “Como?”. E eles: “A gente te
leva, tem uns índios que levam as mulheres [para outro garimpo próximo]”. E eu
perguntei: “Onde fica isso?”. E eles: “É longe daqui, tem que andar duas horas,
mais ou menos, dentro do mato. Tem que ser um índio de confiança”. Lembro que peguei minha roupa, dobrei, fiz
minhas malas, paguei os 19 gramas, me despedi da cozinheira, ela gostava muito
de mim, me despedi dos trabalhadores desse homem, dono do cabaré, que tinha
máquina, além do cabaré tinha máquina, tinha cantina, tinha muito dinheiro. E
fui.
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Nunca tive um cliente índio
Quando passou uma hora [de caminhada], descansei no
meio do mato com dois índios e dois brasileiros que iam pelo mesmo caminho. Os
índios viajam de um acampamento pra outro e nunca me faltaram ao respeito. Pelo
contrário, a gente buscava brincar com eles: “Ah, tu gosta de mulher, tu gosta
de chupar?”. E eles diziam: “Eu não, eu casado, minha mulher”.Nunca tive um
cliente índio. Se eu tivesse estado com um índio, eu teria sido expulsa na
hora. Ou pelo menos eu teria sido recusada por todos os peões, me veria
obrigada a sair desse garimpo, porque não teria clientela nenhuma. Pra maioria
das pessoas, os índios não têm higiene, não têm aquele cuidado. E são
praticamente inocentes, é como estar se aproveitando de uma situação que não
tem nada a ver. Se é por sexo, tem muito peão brasileiro que está aí pra sexo e
se é por ouro, são os mesmos brasileiros que podem te oferecer ouro. Mas um
índio? Não sei, é um pensamento aqui que a gente tem sobre eles.
·
Corre, as índias vão nos matar!
Tinha duas semanas que eu havia chegado no novo cabaré,
da Pequena [nome fictício], e inesperadamente aconteceu um grande problema pra
todas as mulheres que trabalhavam de puta. Recordo de me levantar pra tomar um
banho, como de costume. Era comum ver os índios a toda hora andando no rio,
assim não percebi nada demais. Vi a Rubi [nome fictício], ela levava uma torta
em suas mãos pra celebração do aniversário do famoso Sorriso [nome fictício],
um cara muito poderoso, invejado por outros homens e que pagava bem pra todas
as mulheres.
Depois de alguns minutos, ela veio correndo, com o
rosto aterrorizado, e dizendo: “As índias, as índias, elas vêm para nos matar!
Corre, corre!”. Eu saí correndo como uma bala pra despertar minhas amigas, aos
gritos.
Dulce [nome fictício] estava confusa e a Branca
[nome fictício] estava tão nervosa que queria correr pra dentro da mata. E eu
pensava: não, de que vale nos esconder dentro da mata se vão nos alcançar? Elas
conhecem suas montanhas como se fossem a palma das mãos. “Pequena, Pequena”,
gritamos todas, mortas de medo. Ela despertou, porque as índias romperam parte
da sua cantina com a ponta de um machado, enquanto diziam muitas coisas em seu
idioma. Eu não entendia a menor palavra. Eram muitas, entre 50 mulheres
indígenas e 13 jovens, todas já com filhos e filhas. Estavam pintadas de cor
vermelha. Outras somente tinham uma massa em seus rostos de cor branca, que
eram cinzas de seus parentes defuntos. Isso identificava que elas estavam de
luto, mas mesmo assim elas foram à luta contra todos os garimpeiros. Havia uma
senhora mais velha de joelhos, chorando com uma grande dor, expressando
tristeza, nojo, raiva, impotência. Havia outro índio que falava um português
perfeito e também o idioma deles, e então ajudou a traduzir o que a senhora
falava.
Ela falava que estava cansada de ver [em sua xapona]
os homens chegarem bêbados. Os homens, que deveriam defender suas esposas e
filhas, chegavam brigando e batendo nas suas esposas, brigando com seus irmãos
indígenas ao grau de se matarem. Senti seu choro em meu coração. Quis abraçar a
velha e dizer que tudo isso ia acabar, mas pra quê, se era uma grande mentira?
O tradutor dos indígenas disse o seguinte sobre o pedido de toda a sua
comunidade:
“Garimpeiro não vende cachaça pra índio! Índio toma
cachaça, índio cabeça doida, índio mata outro irmão, índio trata mal a chinoca,
chinoca chora muito. Índio antes tranquilo. Cabeça louca, culpa de cantineiro.
Filho pequeno fica doente, água suja. Cantineiro vende só comida pra índio. Se
índio souber que rapariga, cantineiro, garimpeiro vende cachaça, índio vem e
mata todo mundo. Todos vocês respeitem a índia, a criança, tudo mais, tá bom?”.
Então as índias fizeram a gente cozinhar pra todos eles, colocaram a gente a
cozinhar peixe, frango, carne. E elas vendo a gente cozinhar. Era uma
humilhação, sabe? E a gente vai fazer o quê? Não vai poder falar que não. E aí
saíram todas as mulheres cozinhando, cada uma 2, 3 quilos de arroz, carne,
frango na brasa. E elas estavam todas sentadas assim, com um monte de filhos
pequenos, os homens indígenas protegendo elas. Era muita coisa. Elas ficaram
desde as 7 horas da manhã até as 5 horas da tarde, uma hora antes de o sol se
esconder. Eles têm uma cultura muito bacana nesse sentido. Eles têm um horário
pra tudo. E eles foram dormir na xapona deles.
As mulheres indígenas proibiram vender cachaça pro
esposo, tava proibido dar licor pra mulher e proibido dar armamento. Aí o filho
[da mulher que falou] disse: “Não, armamento sim!”. O outro indígena dizia que
precisava se proteger contra o inimigo, do outro garimpo. Percebi que para os
homens era importante a arma, mas que as mulheres não gostavam, porque eles
começavam a disparar quando ficavam bêbados, e a agressão na comunidade tinha
aumentado muito. Todas as mulheres nos apontavam como se fôssemos as culpadas
de suas tragédias, entre raiva e gritos nos suplicavam pra que a gente deixasse
suas vidas tranquilas. Pediram também que depois das 9 horas da noite a gente
abaixasse o volume da música, porque a xapona ficava muito perto, a uns 250
metros, e era difícil pra eles dormir com barulho, ao som de Marília Mendonça,
Gusttavo Lima, todo tipo de sertanejo, ou funk. Com toda essa situação, entendi
que as mulheres estavam brigando por sua tranquilidade, por seus direitos.
Dentro de mim recordei então que em minhas veias corre o sangue índio de meus
ancestrais. Os garimpeiros, por um momento, creio que se sentiram mal, mas seus
objetivos continuavam em suas cabeças. Às 7 horas da noite, todas as mulheres
dos cabarés e os donos de máquina se reuniram para falar sobre o que tinha
acontecido. O cabaré estava cheio de clientes. Trabalhamos muito nesse dia, o
serviço foi até 4 horas da madrugada. Música baixa, mas todo mundo ali.
·
Para os indiozinhos, cachaça e cacos de 51
Um dia eu tava bêbada e deixei meu fuscon aberto.
E como todo indígena, dá pra perceber isso deles, que eles são muito curiosos,
parecem crianças. E quizás eles viram a mala aberta, viram
algumas coisas que lhes chamaram a atenção, pegaram xampu, pegaram desodorante,
um lençol novo, cremas, esse tipo de coisa que eu acho que eles
gostaram. E depois, aos poucos, eu vi uma índia com o meu lençol, que era do
meu filho. Mas eu acredito que não foi ela, que foi o esposo que pegou, porque
ela tem um bebê. E aí eu pensei: deixa! Mas fiquei assim, porque era o lençol do
meu filho, quando era bem bebezinho. Era um lençol de panda branco com preto, e
eu gostava demais desse lençol. Aí eu perguntei pra ela: “Quem te deu esse
lençol?”. E ela me olhou como quem não sabia, que não hablaba mi idioma.
E eu: “Ai, índia safada, tu sabe sim, tu roubou o meu lençol, era do meu filho,
eu tenho um filho também”. E ela sorriu pra mim. A gente brincava com elas, com
as índias, né? Nós dávamos muitos dulces, eles comem muitos dulces de
pacote, balinha, pirulito, bolacha Maria. Os donos de cabaré, de cantina,
também dão um monte de dulces para as crianças.
Os garimpeiros, a maioria bota aquelas caixas de 51
[cachaça] e quebra, eles jogam ela no ar e atiram e terminam quebrando. E os
índios são acostumados a andar no mato descalços, é seu hábito natural, ninguém
mais conhece isso melhor que eles. E um indiozito desses de 4
anos, bem parecido assim com o meu filho, cortou o dedo, faltava só um
pouquinho pra sair do lugar. Entrou uma coisa assim no meu corpo, ele chorava
com aquele sentimento. E eu fui ajudar o indiozinho. Peguei ele, sentei na área
onde dançam as mulheres, as stripteasers [que ganham menos, cerca de 100 reais,
pra ficar nuas no cabaré], e ele botava um monte de sangue. Era um sangue que
não parava. Peguei umas meias e coloquei em cima dele, fui dar um medicamento e
meu patrão falou assim pra mim: “Não é para dar nenhum medicamento para eles
não, porque se acontece alguma coisa eles vêm pra cá pra tirar a sua cabeça.
Eles não deixam que ninguém ajude eles. Deixa eles, não sei onde está a mãe”.
Tristeza, eu senti pena deles. Porque às vezes a
consciência da pessoa que tá estudada, que sabe as consequências dos atos,
quando chega no garimpo se transforma, parece bicho. Se transforma em bicho,
perde a essência de educação, de empatia, de preocupação. Então a maioria dos
garimpeiros não está nem aí se prejudica os bebezinhos. Os garimpeiros dão
cachaça pras crianças. Eu vi essas situações, não aceito, mas não tinha outra
[opção]. Não aceitava, mas fazer o quê? Eu sozinha ali, se nem eu mesma podia
me cuidar, me proteger. Tinha um grupo que vendia maconha, haxixe, pedra, coca,
distribuía pros novatos, os jovens que entravam no garimpo. Alguns jovens
indígenas também compravam droga com o ouro que conseguiam fazendo algum tipo
de serviço pros donos das máquinas. A diária paga pros jovens era de 1 grama de
ouro [200 reais] pra descarregar as mercadorias do avião e levar até o barraco
do patrão ou pra buscar a madeira pra construção dos barracos.
·
Quando descobri que os índios têm sentimentos
A gente tinha que subir uma colina, atravessar as
máquinas e chegava na xapona deles. Normalmente nós não somos bem recebidos lá,
porque é a intimidade deles, mas eu cheguei a entrar em um lugar desses. Foi
por circunstância de emergência, porque tinha acontecido algo muito forte entre
eles. Eles se golpearam, uma guerra entre eles mesmos. Um queria expulsar o
outro grupo porque tinham roubado e já não era a primeira advertência do chefe
na área deles. O outro não aceitava porque sentia que tinha o mesmo direito do
chefe. E se pegaram com pau de bambu, começaram a dar um contra o outro na
cabeça. Eles literalmente partiam a cabeça. Era desde o más pequeño,
desde os 6 anos, até o mais velho. Entre toditos, isso foi uma
guerra assim visual que eu vi. Estavam pintados de preto, outros com pintura
vermelha na cara.
Nesse mesmo dia, à noite, chegou alguém deles e
pediu à cantineira que chamasse um piloto que viesse buscar um fulano de tal,
que estava morrendo. E todo mundo tava assim: quer ajudar, mas dá um trabalho,
vai demorar, melhor amanhã… Claro, não é a família deles, né? E o cara
insistindo: “Liga, liga, liga por rádio”. Lembro que mandei uma mensagem: “Mira,
aqui está um índio, está morrendo e necessitam sacá-lo, porque se não sacam vai
ser outro problema”. Quando eu entro na xapona [em alguns momentos, Patri usa a
palavra xapona para falar da comunidade, e não necessariamente da parte de
dentro da casa] tem outro índio pior que ele, porque arrebentaram a coluna
dele. Estavam velando esse índio. E eu pensava que era um velório em uma caixa,
tipo a gente. Mas não, penduraram ele em uma árvore, na mata, por três, quatro
dias. Que vaina és esa? Una vaina que yo nunca había visto. Meu
Deus do cielo amado! Me saque de aquí.
Me deu tudo, me deu asco o cheiro. Mas tavam
chorando o morto. E o morto ali na mata, na árvore. No outro dia vi as índias
com as cinzas no corpo. E elas têm que ficar com as cinzas no corpo por um mês,
esse é o luto deles por um irmão, um parente. E eu aprendi uma coisa nova na
minha vida. Quando chegamos, todos estavam chorando, cantando, muito bêbados,
cantando uma canção muito bonita. Não sei o que diziam, o que significa, mas
com aquele sentimento. É difícil aceitar a forma como velam um parente, mas é
sua cultura. Me senti muito triste, porque eles estavam muito tristes. Eu achei
humano, [porque] eu pensava que eles não tinham esse tipo de sentimento, tinha
uma ideia de que eles eram brutos, selvagens e violentos. Mas eu descobri que
eles se sentem doídos por um ser querido deles. Eles sofrem por seus parentes,
eles choram, eles velam seus mortos, eles cuidam dos seus filhos. Da sua
maneira, mas fazem.
·
Mesmo com a brutalidade, que marca, eu voltei
O que faz uma pessoa querer voltar pro garimpo? O
dinheiro, o ouro. Ter um sonho e uma expectativa de ganhar dinheiro rápido.
Acreditar em algo que você não sabe se vai dar certo, mas tem que testar.
Ninguém te abre a porta se você não bate nela. Não é nem luxo, porque luxo é na
cidade. Mas é ambição. E acho que nessa categoria eu posso me colocar, porque
aqui na cidade eu vou lutar, mas não vou obter o mesmo resultado em pouco
tempo. É arriscado, é perigoso, sim, mas é um projeto, uma perspectiva. De toda
a minha experiência, eu ressaltaria não a satisfação de ter ouro no bolso, mas
a brutalidade com que a mulher é tratada e que marca. É o que mais eu
experimentei. Nunca gostei do trato, o respeito é muito pouco, a consideração,
mínima. A autoestima da mulher sempre tá como puta, não como uma mulher
guerreira. Tem que ser muito forte, tem que ter uma leoa dentro de você se te
ofendem. Sabendo que podem te matar, você vai ter que brigar.
Fonte: Sumaúma
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