Lula
diz ter 'firme convicção' de que é preciso 'reavivar compromisso com a
integração sul-americana'
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abriu
nesta terça-feira (30) a cúpula de presidentes dos países da América do Sul, no
Palácio Itamaraty, em Brasília.
A reunião foi organizada pelo presidente Lula com o
intuito de retomar a cooperação entre as nações vizinhas.
No discurso, Lula ressaltou a vontade do país de
retomar instrumentos de integração regional, como a União de Nações
Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e
Caribenhos (Celac).
"A América do Sul tem diante de si, mais uma
vez, a oportunidade de trilhar o caminho da união. E não preciso recomeçar do
zero. A Unasul é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor, sete
países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de
construção, mas, ao fazê-lo, é essencial avaliar criticamente o que não
funcionou e levar em conta transições", disse.
No discurso de abertura, Lula sugeriu uma série de
propostas para o desenvolvimento da América do Sul. Entre elas, investimentos
em:
• projetos
de infraestrutura e fomento;
• enfrentamento
às mudanças climáticas;
• cobertura
vacinal;
• constituição
de um mercado de energia;
• programas
de mobilidade acadêmica;
• e na
área de defesa.
• Além
da 'divergência ideológica'
Segundo o presidente brasileiro, nos últimos anos, o
governo permitiu que diferenças ideológicas afastassem o Brasil dos fóruns
regionais de integração.
"Na região, deixamos que as ideologias nos
dividissem e interrompessem o esforço de integração. Abandonamos canais de
diálogos e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos", disse
Lula.
"Tenho firme convicção de que precisamos
reavivar nosso compromisso com a integração sul-americana. Quando assumi a
presidência, em 1º de janeiro deste ano, a América do Sul voltou ao centro da
atuação diplomática brasileira", seguiu.
"Os elementos que nos unem estão acima de
divergências de ordem ideológica. Da Patagônia e do Atacama à Amazônia, do
Cerrado e dos Andes ao Caribe, somos um vasto continente banhado por dois
oceanos. Somos uma entidade humana, histórica e cultural, econômica e
comercial, com necessidades e esperanças comuns", continuou Lula.
• Guerra,
pandemia e atos golpistas
No discurso de abertura da Cúpula de presidentes dos
países da América do Sul, como é chamado o evento, Lula também citou os
impactos da invasão da Rússia sobre o território da Ucrânia para os países
sul-americanos.
Enumerou, ainda, a pandemia da Covid e atos
antidemocráticos no Brasil e no exterior como causas de retrocessos para
indicadores sociais na América do Sul.
"Todos sofremos as consequências da guerra. O
conflito da Ucrânia desestabilizou o mercado de energia e fertilizantes, e
provocou a volatilidade dos preços dos alimentos, deteriorando nossas condições
de vida. Quando as cadeias de suprimentos globais foram afetadas por esses
fatores, nossas carências em infraestrutura e nossas vulnerabilidades externas
foram expostas", disse.
"A região parou de crescer, o desemprego
aumentou e a inflação subiu. Alguns dos principais avanços sociais logrados na
década passada foram perdidos em pouco tempo. No Brasil e em outros países,
recentes ataques às instituições democráticas, inclusive às sedes dos poderes
constitucionais, nos ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos
extremistas que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de
desinformação e discursos de ódio", seguiu.
• Copa
2030
Durante sua declaração, Lula ainda citou a
candidatura conjunta de Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina para sediar a Copa
do Mundo de 2030.
De acordo com o presidente brasileiro, a iniciativa
“talvez seja a expressão mais acabada dessa identidade sul-americana em
construção” e da capacidade da região de “cooperar para além do campo de
futebol e de nossas próprias fronteiras”.
• Reforma
nas instituições
No discurso, Lula também enumerou algumas diretrizes
que considera importantes para a reforma dos mecanismos de integração regional,
como a Unasul.
"Nossas decisões só terão legitimidade se
tomadas e implementadas de forma democrática, mas a regra do consenso poderia
estar restrita a temas substantivos, evitando que impasses na esfera
administrativa paralisem nossas atividades", declarou.
Lula também pregou que esses fóruns não se
restrinjam aos governos, mas incluam empresários, acadêmicos, parlamentares e a
sociedade civil.
A reforma de mecanismos como Unasul e Celac deve ser
um dos temas tratados ao longo do dia na Cúpula do Sul.
Embaixador
argentino defende integração sul-americana
Pré-candidato à Casa Rosada, o embaixador da
Argentina no Brasil, Daniel Scioli, enxerga na integração cada vez mais
profunda entre os dois países como um jogo em que todos saem ganhando. Mas,
para o ex-governador de Buenos Aires e diplomata, isso não gira em torno
somente da promessa que Luiz Inácio Lula da Silva fez, no começo deste mês, ao
presidente Alberto Fernández de trabalhar por investimentos e no
desenvolvimento de projetos conjuntos com o país vizinho. Para Scioli, a
conexão mais estreita entre Brasil e Argentina freia a agressiva política
comercial da China e, conforme frisou, serve de exemplo para a construção de um
modelo de integração na América do Sul que pode se estender para a América
Latina. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio Braziliense.
• O que
a Argentina espera da promessa de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, feita na visita do presidente Alberto Fernandes, no começo deste mês?
O que a Argentina solicita é que o Brasil encontre
um mecanismo para financiar suas indústrias para maior volume de exportações. A
Argentina não quer dinheiro, mas, nesta conjuntura de restrições nas reservas
de dólares, que o Brasil encontre um sistema de financiamento para seus
exportadores, que vendem para a Argentina insumos, matérias primas, autopeças… Essa
cúpula de presidentes da América Latina é para recriar, atualizar o espírito de
integração, para sermos mais fortes juntos. Dará oportunidade, também, de
avaliar os avanços deste momento positivo para a indústria brasileira, como
disse recentemente o presidente (Josué Gomes) da Fiesp (Federação das Indústria
de São Paulo).
• O
senhor foi considerado muito habilidoso em vencer a resistência do
ex-presidente Jair Bolsonaro na relação bilateral com a Argentina. Mas, agora,
o que mudou?
Minha missão aqui começou em agosto de 2020, com o
objetivo de reconstruir a relação com o Brasil. Uma agenda comum, positiva,
para que o Brasil volte a ser o parceiro número um de Argentina. Depois do
primeiro ano, solucionamos disputas comerciais e tivemos um recorde no comércio
internacional nos últimos nove anos. Passada essa etapa, agora com o novo
governo, com o compromisso que Lula tem com o Mercosul, com a relação
privilegiada com a Argentina, com o desejo de recriar a Unasul, agora se está
construindo um acordo executivo profundo decidido em 23 de janeiro, com a
visita do presidente brasileiro a Buenos Aires. Definimos quase que a
totalidade e estamos, agora, concluindo os últimos pontos do acordo, que é a
integração financeira. Outro, é a integração energética, com a liberação de
restrições para que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social) avalize o financiamento dos dutos para continuar com o segundo tronco
do gasoduto (de Vaca Muerta) que beneficiará muito o Brasil, que comprará gás
com preços melhores e de forma mais sustentável. A Argentina também vai se
beneficiar, pois em vez de importar gás, passará a exportar a partir dessa obra
de infraestrutura.
• As
críticas no Brasil são grandes quanto a projetos de infraestrutura que foram
realizados em países vizinhos, cujos financiamentos não foram pagos…
Sei que isso é muito sensível por questões do
passado, mas, hoje, o que se avalia é que o Brasil financie apenas os tubos que
se fabricam no Rio de Janeiro, com uma empresa brasileira, com trabalhadores
brasileiros — só isso. A obra civil, a engenharia, será financiada pela
Argentina; o Brasil só financiará os materiais que são produzidos aqui. Esse
projeto não começou agora. No governo anterior, um dia me ligou o ministro (da
Economia) Paulo Guedes, que me disse sobre o grande interesse do BNDES em
financiar a segunda etapa do gasoduto. Iniciamos os trabalhos técnicos, também
falamos de garantias. Agora, mudou o governo e damos continuidade a este grande
objetivo de integração energética.
• Quais
garantias? E se a Argentina não conseguir pagar por esses investimentos
brasileiros?
A Argentina só solicita que o Brasil estude
mecanismos para financiar suas empresas, suas indústrias. Esse é o ponto.
Senão, o Brasil perde o mercado para a China, que vende para a Argentina muitos
produtos semelhantes com financiamento. Geopoliticamente é muito importante
aprofundar a integração e encontrarmos juntos mecanismos para potenciar o
comércio de fertilizantes, de semicondutores. É possível produzir nos nossos
países para ter uma maior autonomia e independência. Argentina e Brasil têm,
juntos, um grande projeto, que se realizou anos atrás, em Minas Gerais, com
investimento privado argentino. Queremos reativar esse projeto para não
dependermos de comprar semicondutores. Nosso objetivo é criar uma
complementação maior do ponto de vista industrial, do ponto de vista
financeiro, do ponto de vista do abastecimento da nossa região.
• O
contribuinte brasileiro quer saber quem paga a conta. O senhor acredita na
saída pelos BRICS? A Argentina espera participar do grupo?
Dependerá da vontade dos outros países. O que
podemos dizer sobre as garantias é que a Argentina não tem problema estrutural
de dólares. Tem problema conjuntural, porque sofre a pior seca dos últimos 90
anos. Perdeu a entrada de US$ 20 bilhões que estavam previstos. Quando se
normalizar esta situação, as perspectivas de um futuro próximo são muito boas
em mineração de lítio e cobre, no agro, nos alimentos, em energia, em turismo,
na economia do conhecimento. A Argentina tem aquilo que o mundo precisa —
alimento, energia, minerais para o novo tempo da mobilidade elétrica. Sobre o
financiamento para exportações, convido que fale sobre isso com o presidente da
Marco Polo (fabricante de carrocerias de ônibus), Daniel Rondon. Estão
reclamando que o Brasil encontre uma solução. A solicitação de financiamento
das exportações não é uma demanda da Argentina; é uma demanda legítima dos
empresários brasileiros.
• O que
se pode esperar da participação do presidente Fernández na cúpula (que começa
hoje)? A Argentina já formatou a proposta de acordo para o Brasil quanto às
garantias para as exportações?
Estamos trabalhando para encontrar uma solução para
o financiamento das empresas brasileiras. Certamente Fernándes deve demonstrar
a gratidão com os esforços do governo do Brasil para encontrar essa solução
para as suas empresas e por apoiar a Argentina nas negociações com o Fundo
Monetário Internacional (FMI).
• O
apoio do Brasil, tanto na negociação com o FMI como na busca de uma garantia do
Banco do BRICS, será suficiente?
O acordo com o FMI, fechado pelo então ministro da
Economia, Martín Guzmán, no artigo 22 tem uma cláusula sobre questões
extraordinárias, como a seca. Isso abre a possibilidade de reconsiderar as
metas e os objetivos. A respeito do que está para começar esta semana na China
(reunião do Banco dos BRICS), creio que quando há vontade política e
compreensão das razões justas, se alcançam as soluções.
• Qual a
perspectiva da Unasul na sua opinião?
Creio que no contexto de crise da globalização, é
fundamental fortalecer a América do Sul com uma agenda de integração
energética, de infraestrutura — dois aspectos muito importantes. Acredito que o
que vai acontecer entre Brasil e Argentina, com um profundo acordo de
integração, será uma referência inspiradora. Devemos encontrar os pontos de
interesses comuns entre todos os países da América Latina. E creio que nesta
terça-feira, com a apresentação de cada presidente, se mostrará um grande
progresso para se alcançar esse objetivo.
• Essa
integração profunda passa pela moeda única para o Mercosul?
O ministro Fernando Haddad afirmou que esse é um dos
objetivos, de médio prazo, para uso comercial. É um tema que será necessário um
profundo debate pelos bancos centrais, com os ministros da economia. Minha
missão, agora, é com um futuro próximo, esperando que o povo argentino me dê a
oportunidade de ser seu presidente.
• O
senhor pretende, novamente este ano, disputar a Casa Rosada, depois de perder,
em 2015, para o ex-presidente Ricardo Macri. Caso vença, qual a saída para a
profunda crise vivida pela Argentina?
Em 2015, perdi por algo entorno de 1%. Acredito na
Argentina, acredito nas suas forças produtivas, acredito que os problemas de
agora têm solução. O povo argentino conhece a minha experiência, minha
trajetória minha previsibilidade, minha sensatez, minha moderação, minha
capacidade de diálogo com todos os setores da vida política, no meu país e no
mundo, como demonstrei no Brasil. Cada eleição é nova demanda e o povo argentino
demanda isso. Quando depositar o voto, privilegiará isso — a experiência que
propõe um grande projeto de futuro e que solucione os problemas imediatos.
• O
senhor contará com o apoio do kirchnerismo?
São as pessoas que votam. Obviamente, a vice-presidente
(Cristina Kirchner) tem um grande peso político. Com a criação da lei das
primárias para todos os partidos políticos, decidi participar delas, pois
acredito que o melhor é a vontade popular para orientar as candidaturas.
• O
senhor está otimista para as primárias?
Muito. Tenho a escola do esporte, que quando se sai
em campo para o jogo, deve-se estar convencido que vais ganhar. Estou
convencido que, com minha experiência, meu programa de governo, será o que
triunfará — apesar dos problemas com a inflação, com os baixos salários, da
pobreza. Se focarmos um maior esforço em produzir, e cada vez mais com o
Brasil, a Argentina será um ator relevante no contexto internacional.
• Como o
senhor tem dividido o tempo entre Buenos Aires e Brasília com a campanha
presidencial?
A melhor campanha é resolver os problemas. O povo me
conhece muito bem. Não necessito fazer campanha tradicional como os outros
candidatos, que prometem soluções milagrosas, felicidade e grandes salários. A
minha é diferente. Quero agradecer porque o Brasil me deu a oportunidade de
desenvolver toda a minha experiência. Com o governo anterior (de Jair
Bolsonaro), apesar da grande diferença política e ideológica, mas com grande
pragmatismo e responsabilidade, fomos reconstruindo a relação. Agora, com o
governo do presidente Lula, vivemos um tempo de integração profunda com todo o
Brasil.
Fonte: g1/Correio Braziliense
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