Como
a Igreja Universal está doutrinando as forças policiais do Brasil – e os
governos fingem que não veem
PARECIA UMA OPERAÇÃO policial de grandes
dimensões. Dezenas e dezenas de viaturas policiais, de diversos tipos –
incluindo bases comunitárias móveis – estacionaram em frente a um templo
da Igreja
Universal do Reino de Deus na rua Guaicurus, na
Lapa, zona oeste de São Paulo, nos dias 14 e 15 de março. O estacionamento
estava abarrotado de viaturas. Dentro do prédio, cerca de mil policiais
fardados se aglomeravam.
Eles estavam dentro do templo para uma revista geral
do efetivo – que incluiu não apenas instruções aos PMs, mas também café da
manhã e um “momento de reflexão” oferecidos pelo programa Universal nas Forças
Policiais, que promove “assistência espiritual” à forças de segurança no país,
desde 2018. O programa, diz a igreja, é “focado no bem-estar emocional dos
profissionais de segurança, sempre respeitando a liberdade religiosa desses
profissionais”, garante a Universal.
Um levantamento feito pelo Intercept com
base em posts públicos em redes sociais constatou que o programa, de sigla UFP,
realizou encontros, cafés da manhã, orações, bênçãos e esteve presente em
eventos de PMs, bombeiros, de agentes da Polícia Federal e até do
Exército e da Aeronáutica em 24 estados do país – isso, só neste ano. Foram
mais de 70 encontros, que vão de pregação para as tropas – fardadas – dentro
dos templos, como aconteceu em São Paulo, à presença em solenidades de troca de
comando com a cúpula das instituições.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, as
secretarias de segurança e as polícias envolvidas foram questionadas sobre o
efetivo empregado, o que era feito nestes encontros e a existência de convênios
e contratos com a Universal. Nem todos responderam – mas todas as respostas indicam que não há
nenhum tipo de acordo formal para adesão ao programa, que é oferecido de forma
voluntária. Os órgãos estaduais, no entanto, se contradizem sobre o conteúdo
oferecido.
No Mato Grosso, por exemplo, a polícia militar fala
em “visitas informais” para “realização de orações”, que são “bem-vindas”.
Naquele estado, no Dia Internacional da Mulher, integrantes da UFP entregaram
bíblias a policiais, que também assistiram a um “momento de reflexão” do
pastor Adriano Damelio e sua esposa, Natalia.
No Mato Grosso do Sul, a resposta foi que as visitas
são “esporádicas”, “sem programação definida” e visam “promover o bem-estar da
família policial militar”. No estado, no mesmo 8 de março, o bispo Carlos
Cucato visitou o recém-empossado comandante-geral, coronel Renato dos Anjos
Garnes, para “fortalecer a assistência espiritual que a Universal realiza através
do Programa UFP”. No Rio Grande do Norte, a PM nega que tenha havido
eventos envolvendo a UFP – mas, por meio de posts da própria Universal, com
fotos, é possível ver que os missionários estiveram na comemoração do
aniversário de um batalhão, e aproveitaram para ministrar a palavra de
Deus.
Em Roraima, batalhões específicos chegaram a ter 26
visitas de voluntários da UFP. Nenhum deles tem qualquer tipo de vínculo
documental, nem mesmo o programa oferecido aos policiais durante os “momentos
de reflexão”, orações e agradecimentos com “temas vividos no cotidiano
apresentados de maneira espontânea pelo pastor”. O grupamento que mais
participou das atividades no estado foi o Batalhão de Operações Policiais
Especiais, o Bope. Em atividades dirigidas pelo pastor Julio, da Universal,
todo o efetivo do batalhão – 160 policiais – participou das atividades todas as
sextas.
A polícia militar de Goiás foi além. Defendeu o
programa, afirmando que o UFP “é desenvolvido nas 27 unidades federativas do
país, com o propósito de prestar apoio espiritual e social a homens e mulheres
que, diariamente, colocam suas vidas em risco para proteger e servir à
população”. E enviou um vídeo do pastor Roni Negreiros, coordenador do UFP, em
que ele explica como funciona o programa.
Nesse vídeo, Negreiros diz que a UFP contempla
“milhares de bispos, pastores, obreiros e voluntários” para “assistência
social, espiritual e valorativa” das forças policiais. Sabendo as possíveis
críticas ao programa – o estado brasileiro é laico e a Constituição assegura
liberdade religiosa –, o coordenador se antecipa. “Em toda atividade dizemos
para as pessoas que elas não são obrigadas a participar”, ele garantiu.
Segundo Negreiros, na prática, com o programa, a
Universal cede seus templos para as forças policiais realizarem eventos. Em
determinado momento, os religiosos assumem a palavra – por não mais do que
cinco minutos, disse o bispo no mesmo vídeo. Outro formato possível é os
próprios religiosos da igreja irem visitar as unidades de segurança. No início
do programa, disse o religioso, a instituição enviou ofícios e disse ter feito
acordos, sem especificar quais, com “as mais altas autoridades”.
Mas nenhuma das polícias questionadas pelo Intercept
afirma ter qualquer tipo de acordo ou documento com a parceria. Nenhuma também
quis informar o efetivo empregado nas atividades relacionadas à UFP, embora as
fotos divulgadas pela própria igreja não deixem muitas dúvidas sobre a alta
quantidade de policiais que têm participado das atividades religiosas.
·
A mentira da polícia de Tarcísio
Nos dias 14 e 15 de março, fotos publicadas pela
própria UFP mostram o templo da Rua Guaicurus, na Lapa, lotado de policiais
fardados do Comando de Policiamento de Área Metropolitana 5, assim como o
estacionamento repleto de viaturas. Naquele dia, segundo a igreja, o bispo
Júlio Freitas, genro do bispo Edir Macedo – casado com Viviane Freitas, uma das filhas do líder da Universal
–, realizou um “momento de reflexão”, com oração a todos os presentes. O post
da igreja diz ainda que o comandante, coronel Forner, “agradeceu à Igreja
Universal pela assistência prestada à sua tropa através do programa UFP”. A
atividade aconteceu durante o período de trabalho dos policiais, com todos eles
devidamente fardados.
Questionada pelo Intercept sobre a quantidade de
homens escalados nesses dois dias e por quantas horas, o número de viaturas e o
programa oferecido aos policiais, a PM de São Paulo desconversou. Afirmou que
as atividades dos PMs no templo da Universal “não tiveram relação com o
programa UFP” ou “qualquer outro programa de cunho religioso”.
Segundo a polícia, o templo apenas teria sido cedido
para alocação da revista geral do efetivo. A PM paulista afirmou ainda que a realização
de atividades religiosas na corporação é normatizada por uma portaria de
fevereiro de 2017, que só autoriza esse tipo de evento se o seu objetivo for “o
desenvolvimento da pessoa humana”. São vedadas atividades religiosas que tragam
“prejuízo ao serviço policial-militar ou ao regime de trabalho”, usem as
atividades para tratar de assuntos de natureza policial militar, e pratiquem
“condutas prejudiciais à liberdade de consciência e de crença como fanatismo,
proselitismo ou aliciamento”.
Segundo a lei complementar número 893, de 9 de março
de 2001, que instituiu o regulamento disciplinar da Polícia Militar de São
Paulo, em seu artigo 13, são apontadas mais de uma centena de transgressões
militares e a de número 126 diz que os policiais não devem “autorizar, promover
ou participar de petições ou manifestações de caráter reivindicatório, de cunho
político-partidário, religioso, de crítica ou de apoio a ato de superior, para
tratar de assuntos de natureza policial-militar, ressalvados os de natureza técnica
ou científica havidos em razão do exercício da função policial”. Em cada
estado, cada Polícia Militar tem o seu regulamento específico.
Os próprios posts da UFP, que usou o batalhão
paulista para se promover, não deixam muita dúvida sobre o que aconteceu
naquele templo. As fotos mostram as centenas de policiais assistindo à
pregação, enquanto o telão exibia o versículo Lucas 8:18, que fala sobre como
quem crê em Jesus pode receber mais bênçãos. Ainda há fotos de uma reunião do
comandante com os pastores e bispos da igreja.
O governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, é do partido Republicanos, o braço político da
Universal, que costuma arregimentar entre seus parlamentares bispos e
pastores da igreja. E a maior quantidade dos eventos da UFP levantados pelo
Intercept aconteceu justamente em São Paulo.
No dia 20 de janeiro, poucos dias após a posse do
novo governador, o programa UFP recebeu o certificado de “Amigo da Polícia
Militar de São Paulo”. Só em 2023, a igreja participou de eventos na alta
cúpula, incluindo a troca de comando e uma reunião na Secretaria de Segurança
Pública. Em fevereiro, no encontro de comandantes do Comando de Policiamento
Metropolitano da PM de São Paulo – que reuniu coronéis,
tenentes-coronéis, majores e tenentes, o pastor Roni Negreiros, segundo
divulgou a própria igreja, “abordou o tema da atualidade com base em
ensinamentos bíblicos”. As autoridades agradeceram à igreja.
No Dia da Mulher, a UFP esteve no Complexo do
Comando Geral da Polícia Militar de São Paulo, Corregedoria e Centro de
Operações da Polícia Militar. Lá, o pastor Negreiros e sua mulher, Eliana
Negreiros, fizeram uma palestra intitulada “O valor da mulher, com base no
contexto bíblico de provérbios cap.31, vers.10”. Esses versículos levados
à polícia falam da “esposa exemplar”, que “com prazer trabalha com as mãos”,
levanta antes de clarear o dia e “prepara comida para todos de casa”.
Houve eventos no ABC paulista, litoral e interior. No
dia 2 de fevereiro, a Igreja Universal recebeu uma medalha em uma solenidade no
12° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano. “Na oportunidade o secretário de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite, agradeceu pela
assistência prestada pela Universal através do programa UFP, também foram
doados literaturas (livros) e bíblias com o comentário do Bispo Macedo às
autoridades”, divulgou a igreja. Aparentemente, a Secretaria de Segurança
Pública não classificou nada disso como proselitismo religioso, vedada pela
portaria de 2017.
A UFP prestigiou, ainda segundo seus posts,
solenidades da PM que tiveram a presença do governador Tarcísio de Freitas e,
em ao menos uma delas, também a do ministro do STF André Mendonça, apontado
como o ministro “terrivelmente evangélico” nomeado pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro.
No final de abril, o programa ganhou mais uma
medalha da polícia de Tarcísio – desta vez, do Choque paulista. Na solenidade
de 89º aniversário do 2oº Batalhão de Polícia de Choque, a Universal recebeu a
“Medalha Batalhão Expedicionários Paulistas da Polícia Militar do Estado de São
Paulo.” O secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite e o Comandante
Geral da Polícia Militar, Coronel PM Cássio de Freitas, estiveram no evento.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria
de Segurança Pública de São Paulo afirmou que “algumas comunidades religiosas
oferecem suporte e amparo aos policiais”. Ainda de acordo com o órgão, eles não
possuem nenhum convênio com a Igreja Universal – ou com qualquer outra entidade
religiosa. “O que existe é uma parceria que ocorre eventualmente para uso do
espaço pertencente à igreja, assim como existem parcerias com outras
instituições, como universidades e prefeitura”, respondeu o governo paulista. Segundo
a SSP, a polícia usa as instalações quando precisa passar instruções a grupos
maiores de policiais “que não são comportados em espaços pequenos” em reuniões
“pontuais”.
·
Militares passeiam no jardim do templo
Outra estratégia da Universal para atrair militares
são os convites para tours no Templo de Salomão, o mega centro religioso
construído por Edir Macedo, no bairro do Brás, na região central de São Paulo.
Coronéis da PM de outros estados têm sido convidados para o passeio – mas ele
não fica restrito às forças estaduais. No dia 3 de maio, militares da Força
Aérea Brasileira foram recepcionados por integrantes da UFP para um passeio no
jardim bíblico do templo.
Apesar de o Exército brasileiro ter dito ao
Intercept, por meio da Lei de Acesso à Informação, que não tem conhecimento,
envolvimento ou parceria com o programa Universal nas Forças Policiais, a
própria igreja faz questão de divulgar o contrário.
No dia 17 de abril, integrantes do programa da
Universal prestigiaram
a posse do novo comandante do Comando Militar do
Sudeste do Exército, Guido Amin Naves, que sucedeu o comandante-interino, o
general de divisão Pedro Celso Montenegro. Dois dias depois, a UFP estava lá de
novo na solenidade do Dia do Exército.
Em 28 de abril, a UFP prestigiava novamente a
passagem de comando na 2ª Divisão Militar do Comando Militar do Sudeste, quando
o general do Exército Luiz Gonzaga Viana Filho sucedeu, no posto de comandante,
o general de divisão Luís Cláudio de Mattos Bastos.
Membros da UFP também prestigiaram, em 28 de
janeiro, a posse do novo superintendente da Polícia Federal de Brasília, Cezar
Luís Busto de Souza. Um dos intuitos da visita, segundo post da Universal, era
fortalecer a assistência espiritual oferecida a policiais federais. A igreja
até detalhou o conteúdo da reunião: “temas como segurança pública e saúde
espiritual dos profissionais de segurança pública”, diz o post de divulgação. O
superintendente recém-empossado ainda foi presenteado com um exemplar da Bíblia
Sagrada.
Em fevereiro, centenas de militares do Exército no
Amazonas assistiram ao “momento de reflexão” proporcionado pelo pastor Jailson,
de São Gabriel da Cachoeira, durante a formatura do Comando de Fronteira Rio
Negro do 5º Batalhão de Infantaria de Selva. Em seu post de divulgação, a
igreja afirma que o comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva e o
comandante do Comando de Fronteira Rio Negro e o 5º Batalhão de Infantaria de
Selva “agradeceram a Igreja Universal através do programa UFP, pela assistência
prestada ao Exército Brasileiro do estado do Amazonas”.
·
‘Polícia não tem religião’
O Estatuto dos Militares, de 1941, que orienta o uso
de fardas por militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, define que os
uniformes são de uso exclusivo em atividade – salvo algumas exceções em eventos
oficiais e autorizados. Portanto, é expressamente proibido, segundo a regra, o
uso dos uniformes em manifestações de caráter partidário. Além disso, não é permitido
sobrepor ao uniforme nenhuma insígnia ou distintivo de “caráter religioso,
sectário ou ideológico”.
O estatuto também proíbe o uso, por parte de
corporações civis, de uniformes, emblemas, insígnias ou distintivos que
ofereçam semelhança com os usados pelos militares, ou que possam ser
confundidos com eles. Mas o símbolo da UFP imita um distintivo de forças de
segurança.
No caso das polícias militares, cada uma segue um
estatuto próprio, mas as regras, em geral, são semelhantes. O uso dos uniformes
é restrito aos membros da força de segurança em período de atividade – em
eventos civis deve haver autorização dos superiores. O Paraná, por exemplo, proíbe
o uso de uniformes em eventos político-partidários, assim como São
Paulo e Mato Grosso
do Sul.
O cientista político Guaracy Mingardi, analista
criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que qualquer
indivíduo, militar ou não, tem o direito de seguir a religião que quiser, mas o
policial não pode frequentar cultos ou missas fardado e de forma organizada,
enquanto corporação.
“O indivíduo pode ter a opção que quiser enquanto
indivíduo. Como policial, ele é policial, não é católico, não é evangélico, não
é budista. Ele pode ir numa igreja, até fardado, mas voltando do trabalho e
fora do seu horário de serviço”, argumentou Mingardi, que é doutor pela
USP e ex-investigador de polícia. “O estado é laico e ponto. Estará se
desviando recurso do estado para uma atividade religiosa. Não pode, por
exemplo, ter imagem de Nossa Senhora no Palácio do Governo, pois estaria
excluindo outras religiões”.
Mingardi vê mais problemas devido a ataques de
líderes da Universal a membros de religiões de matriz africana. A TV Record e a
Rede Mulher, atual Record News, pertencentes a Edir Macedo e à igreja, foram
condenadas pela Justiça em segunda instância, em 2018, por reforçar
preconceitos e estereótipos contra adeptos do candomblé ou da umbanda.
Sacerdotes dessas religiões eram chamados, em cultos e programas da Universal
exibidos nas duas emissoras, de “mães e pais de encosto”, em uma referência ao
Diabo. Após a sentença do Tribunal Regional Federal de São Paulo, as emissoras
firmaram um acordo e se comprometeram a veicular quatro programas de televisão
com o direito de resposta de líderes de religiões afro.
“Como o policial ligado à Universal vai olhar para
um umbandista? Ele pode criminalizá-lo automaticamente. É um problema sério”,
questionou Mingardi.
Como a corrupção e a ética estão entre os temas
abordados pela UFP, a doutrinação de forças policiais pela Universal também
pode gerar conflito de interesses, já que Edir Macedo passou a responder a
inúmeros inquéritos e processos criminais encaminhados à Justiça a partir do
início dos anos 1990, podem tentar ter ao seu lado, por meio dessas atividades,
os mesmos policiais que foram acionados para agir ou investigar denúncias
contra a instituição religiosa. Edir Macedo chegou a ser preso em 1992, por
acusações de estelionato e curandeirismo, e permaneceu 11 dias preso em um DP
na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo.
Segundo o próprio Macedo descreveu no livro “O
Bispo”, sua biografia oficial depois adaptada para o cinema, a igreja e seus
líderes responderam na Justiça por lavagem de dinheiro, evasão de divisas,
formação de quadrilha, estelionato, falsidade ideológica, sonegação fiscal,
crimes contra a Fazenda Pública, crime contra a ordem tributária,
charlatanismo, curandeirismo, sequestro de bens, vilipêndio e preconceito
religioso. O líder da Universal nunca foi condenado.
“Agora, está se fechando o triângulo, porque se
juntam o posicionamento de extrema direita, o religioso e a polícia. Se junta
política, religião e o serviço público num mesmo balaio”, analisou
Guaracy Mingardi.
Fonte: Por Gilberto Nascimento e Tatiana Dias, em
The Intercept
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