SIMULADOR
DE ESCRAVIDÃO ESCANCARA OS PROBLEMAS DO GOOGLE: DINHEIRO E FALTA DE CONTROLE
A escravidão do Brasil é o tema do jogo ‘Simulador
de Escravidão’ desenvolvido para aparelhos de celular e disponível para
download no Google Play – loja de aplicativos da plataforma que abastece os
dispositivos Android. Nele, o jogador age como um senhor de engenho e negocia a
compra e venda de negros escravizados, precisando cumprir tarefas como
treiná-los, alimentá-los e desenvolver tecnologia para que evoluam em até três
níveis – isto é, gerem mais lucro para o
usuário.
O desenvolvimento foi da Magnus Games e ficou
disponível na Google Play em 20 de abril deste ano. A empresa é um estúdio
russo que possui outros 14 jogos publicados na loja do Google. Todos eles são
classificados como “estratégia” ou “simulação”.
No Simulador de Escravidão, o jogo é ambientado no
ano 1600, quando o Brasil ainda era uma colônia de Portugal e tinha no tráfico
negreiro uma das suas principais atividades econômicas. Lá, o jogador é
orientado a contratar guardas para fiscalizar os escravizados. O próprio jogo
alerta que eles podem fugir ou começar uma rebelião. Logo no começo uma
mensagem avisa: “se os escravos iniciarem uma rebelião, os guardas tentarão
suprimi-la. Parte dos que querem fugir também se juntará aos rebeldes. Se os
guardas conseguirem suprimir a rebelião, alguns dos escravos morrerão. Se os
rebeldes vencerem, muitos de seus escravos escaparão”.
O dinheiro ganho pelo senhor de engenho também deve
ser usado, segundo o próprio tutorial
ensina, para subornar “funcionários” para frear o progresso da abolição da
escravatura. O jogador perde a partida se a escravidão for abolida. No Brasil,
isso aconteceu só em 1888 – fomos o último país das Américas a abolir a prática.
Antes de iniciar o jogo, o estúdio que desenvolveu a
simulação inseriu uma notificação dizendo que o jogo foi criado “exclusivamente
para fins de entretenimento”. “Nosso estúdio condena a escravidão em qualquer
forma. Todo o conteúdo do jogo é fictício e não está vinculado a eventos
históricos específicos. Todas as coincidências são acidentais”, diz recado.
Apesar de desenvolvido por russos, o jogo recria o
cenário da escravidão que devastou por séculos países da costa africana. São
colocados três tipos de escravizados: os trabalhadores, representados por
homens negros acorrentados pelas mãos, pés e pescoço; os gladiadores, homens
negros de pele mais clara com espada na mão; e as cortesãs, com mulheres
hiperssexualizadas em trajes curtos – há ainda uma fase do jogo que as indica
em locais como bordeis, danças exóticas e clube de elite. Cada tipo de
escravizado tem um valor específico no mercado virtual e “seus preços mudam
constantemente”, avisa o desenvolvedor.
• Dinheiro
real para os desenvolvedores
A escravidão como “entretenimento” rende dinheiro
real aos criadores da plataforma. O jogo é recheado de anúncios, mediados pelo
Google, que repassa parte do valor aos criadores.
A anuência do Google não fere apenas o artigo 287 do
Código Penal, que qualifica o crime de apologia, mas suas próprias políticas de
publicação – como é praxe na empresa. É proibido, segundo a companhia, a
publicação de jogos ou aplicativos que “promovam a violência ou incitem ódio
contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica” ou “outras
características associadas à discriminação sistêmica ou à marginalização”.
As políticas da plataforma também proíbem jogos que
“retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas” ou
“apps que lucrem com ou sejam insensíveis a um evento sensível com impacto
social, cultural ou político significativo”. Nada disso foi levado em
consideração ao manter disponível ao público um jogo que retrata, inclusive com
violência física, o horror da escravidão.
O Google ainda aponta em suas políticas de “conteúdo
prejudicial à crianças” que não são permitidos “apps com violência e sangue
excessivos” ou “apps que retratam ou incentivam atividades nocivas e
perigosas”. O jogo, que possui mais de mil downloads, é de classificação livre.
Questionado no Twitter sobre a manutenção do jogo em
sua plataforma, o perfil do Google Play respondeu que “entende a preocupação”
do usuário que fez a publicação e que “trata as denúncias muito seriamente”. O
tuíte deixa um link para que pessoas denunciem o jogo – “assim”, o Google diz,
“nosso time poderá investigar”.
Perguntamos ao Google quais de suas políticas de
publicação de aplicativos os jogos violavam, quais eram os recursos de detecção
de discurso de ódio ou violência que a plataforma possui, se a empresa concorda
com a retratação dada ao tema da escravidão e se a empresa está de acordo com a
classificação etária livre aplicada aos títulos. Os títulos foram retirados do
Google Play, mas nossos questionamentos não foram respondidos até a publicação
da reportagem.
O desenvolvedor parece não ter sofrido nenhum tipo
de penalidade pela empresa. Os outros jogos da Magnus Games continuam ativos
normalmente na plataforma.
O jogo, além de violar as políticas da própria
plataforma (não é autorregulação que elas querem?), também viola a lei – e pode
ser considerado apologia à escravidão. Ficou mais de um mês no ar, foi baixado
mais de mil vezes, tinha classificação livre – ou seja, poderia ser jogado por
crianças de seis anos – e era liberado para rodar anúncios. Ou seja: gerar
dinheiro para o Google e para o desenvolvedor, que, aliás, continua com outros
jogos na plataforma.
Que tipo de punição um desenvolvedor racista deve
enfrentar? E uma plataforma que foi conivente com esse tipo de aplicativo? E se
ninguém tivesse chamado a atenção para o jogo? Por quanto tempo ele continuaria
rendendo cliques, downloads e resenhas positivas de outros racistas na
plataforma? Não à toa, o caso foi usado pelos defensores do PL 2630, o PL das
fake news, para chamar a atenção para a necessidade de regulação das redes. “A
própria existência de algo tão bizarro à disposição nas plataformas mostra a
urgência de regulação do ambiente digital”, disse o deputado Orlando Silva, do
PC do B, relator do projeto. Ele também afirmou que entrará com uma
representação no Ministério Público por crime de racismo, prometendo levar o
caso “até as últimas consequências”, de preferência “a prisão dos
responsáveis”.
Discurso
de ódio: MP investiga usuários do 'Simulador de Escravidão' por racismo
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) investiga,
além do Google e do desenvolvedor do jogo de celular "Simulador de
Escravidão", os usuários que baixaram o aplicativo na loja virtual Play
Store e deixaram comentários racistas e discriminatórios, com discurso de ódio,
nas avaliações do app.
O programa simulava que pessoas negras poderiam ser
castigadas ao longo das partidas. No jogo, a proposta era que o usuário se
passasse por um proprietário de escravos, podendo escolher duas modalidades:
tirana ou libertadora. Na primeira, o objetivo era fazer lucro e impedir fugas
e rebeliões. Na segunda, lutar pela liberdade e chegar à abolição.
Entre as opções da dinâmica do jogo estão agredir e
torturar o ‘escravo’.
O aplicativo foi desenvolvido pela Magnus Games e
tinha pouco mais de mil downloads, além de 70 avaliações. Nos comentários,
algumas pessoas reclamavam de poucas possibilidades de agressão. Segundo a
promotora Maria Fernanda Pinto, responsável pelo caso, existem ferramentas que
possibilitam a identificação dos usuários para que eles possam ser
responsabilizados criminalmente.
"O que chama atenção são as pessoas que
baixaram e comentaram [o jogo], com aspectos muito reprováveis de um racismo
muito escancarado e comentários indefiníveis em termos de gravidade e horror,
que ferem qualquer parâmetro de civilização. Esse tipo de coisa travestido de
entretenimento é ainda pior", avaliou a promotora.
Na última passada, o Grupo Especial de Combate aos
Crimes Raciais e de Intolerância (Gecradi) do MP abriu um procedimento
preliminar para verificar as circunstâncias da disponilização do aplicativo na
loja virtual e quais os termos definidos pelo Google quando o desenvolvedor
submete uma aplicação para download. O Ministério Público investiga se houve ou
não análise humana no processo.
Disponível na Google Play Store desde abril de 2023,
o jogo foi retirado da loja do Google somente no dia 24 de maio, após
repercussão em redes sociais e na imprensa. O MP-SP também recebeu cerca de 10
representações com pedidos de apuração.
O Google tem até esta semana para prestar
esclarecimentos à Promotoria do caso. Depois, o MP decidirá se irá instaurar um
Procedimento Investigatório Criminal (PIC).
Para a promotora Maria Fernanda Pinto, no entanto,
não há dúvidas de que houve falha por parte do Google. "A falha da
plataforma evidentemente teve porque o aplicativo foi para o ar", disse à
GloboNews.
Entre os possíveis crimes a serem investigados estão
o crime de ódio e racismo, que são identificados, por exemplo, quando há segregação,
discriminação e imposição de hierarquia com fundamento na raça.
O desenvolvedor do aplicativo também será
investigado. Uma equipe especializada do MP-SP está apurando se a empresa da
Malasia também tem escritório no Brasil, já que o jogo estava em português, e
quem é o responsável pela criação e disponibilização na loja virtual. Caso
esteja sediada no exterior, será necessário avaliar as relações diplomáticas
entre Brasil e o outro país. O Gecradi quer ter acesso ao e-mail que foi
cadastrado pelo responsável.
• Outras
investigações
Além do aspecto criminal, o Google também pode ser
responsabilizado pelo dano social que causou. A Educafro Brasil — Educação e
Cidadania de Afrodescendentes e Carentes — associação civil sediada em São
Paulo, pede indenização no valor de R$ 100 milhões em uma ação civil pública
contra o Google registrada no sábado (27), no Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo
A equipe jurídica da Educafro defende que o dano
consiste em racismo estrutural, bem como ofensa à honra.
O Ministério da Igualdade Racial deve se reunir nos
próximos dias com representantes do Google. A pasta propôs que seja feita uma
ação conjunta com a empresa para a criação de um filtro eficiente para que
discursos de ódio, intolerância e racismo não sejam disseminados com tanta
facilidade e sem moderação em espaços virtuais.
O Ministério Público Federal (MPF) do Rio Grande do
Sul também instaurou um procedimento para acompanhar o caso. Uma representação
feita pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) foi protocolada no MPF do
Distrito Federal, mas deve ser remetida ao Rio Grande do Sul. No âmbito
federal, será analisado se alguém no exterior desenvolveu e/ou baixou o jogo.
A GloboNews procurou o Google, mas até esta
publicação ele não havia retornado.
Brasileiros
que vivem na Espanha falam sobre episódios de racismo no país em semana de
reações aos ataques contra Vini Jr.
Os episódios recentes de racismo contra o jogador
brasileiro Vini Jr na Espanha não são casos isolados de estrangeiros no país.
O Fantástico conversou com brasileiros que vivem e
trabalham em Madri, e os relatos deles revelam um sofrimento em comum, em
situações cotidianas como uma simples compra no supermercado. (Veja no vídeo
acima).
Maria Santos, historiadora e professora, afirma que
não se sente tranquila. Ela relata um episódio em que estava num supermercado e
foi abordada por um segurança, quando nenhuma outra pessoa da fila passou pela
situação da mesma maneira:
"O segurança se aproximou de mim e me disse
'abre a sua bolsa, por favor?' Eu disse 'como?'... 'Não vou abrir.' Ele falou
'não, mas todos tem que abrir. E é norma do estabelecimento.' Eu falei 'olha,
quantas pessoas estão atrás de mim e quantas pessoas passaram na minha frente.
Em nenhum momento eu vi você se dirigindo a elas, para que abrissem a bolsa'.
Maria sofreu racismo em outras situações: em uma
delas, uma mulher ofereceu lanche na rua para ela e para a filha, mas quando a
amiga delas, que é branca, aceitou o lanche, a pessoa não quis entregar,
alegando que a doação era só para pessoas necessitadas. Em outro caso de
constrangimento, um taxista pediu para tocar no cabelo dela pois estava curioso
sobre a textura.
Felipe Domingos, bailarino, conta que na maior parte
das vezes percebe o racismo nos olhares. Ele também diz que se sente observado
quando faz compras no supermercado e percebe o segurança o observando "de
um jeito estranho" e o seguindo.
• Ausência
de lei antirracista
Um estudo de 2020 do governo espanhol indica que o
primeiro lugar onde as pessoas de diferentes origens e etnias se sentem mais
excluídas é quando se trata de acesso à moradia, em seguida vêm dificuldades
para frequentar estabelecimentos abertos como lojas e supermercados.
No entanto, só 20% das pessoas que dizem ter sofrido
discriminação formalizaram alguma queixa. Isso porque na legislação da Espanha
não tem uma lei específica para combater a discriminação racial.
Antumi Toasijé, historiador presidente do conselho
de questões raciais e étnicas do Ministério da Igualdade da Espanha, explica
que "o racismo na Espanha tem uma história muito concreta. Podemos dizer
que foi a Espanha que, provavelmente, inventou o racismo contemporâneo, o
racismo como o conhecemos hoje, por meio dos estatutos de limpeza do
sangue".
Na Espanha e em algumas de suas colônias, a partir
do século XV, o sistema dos estatutos excluía os não-brancos da sociedade, de
profissões consideradas nobres, como no campo da educação e da administração
pública.
• Espanha
e Vini Jr.
Para a jornalista espanhola Virtudes Sanchez, o
espanhol não tem consciência do que significa o racismo. A jornalista que mora
no Brasil há 7 anos conta que não tinha noção de que ela própria tinha atitudes
racistas e que só aprendeu sobre racismo convivendo com pessoas pretas.
Correspondente de um jornal esportivo no Brasil, ela aponta que o que mais
incomoda os espanhóis no caso de Vini Jr. é o fato de o jogador não se calar.
Fonte: The Intercept/g1
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