quarta-feira, 3 de maio de 2023

Por que o monarca precisa de uma coroação?

A coroação do rei Charles 3º no sábado (6/5) provavelmente mostrará o tipo de pompa real pela qual os britânicos são famosos. Mas também é uma ocasião profundamente religiosa, repleta de tradições seculares que, para alguns, podem parecer anacrônicas em 2023.

O evento mantém hoje o significado que já teve no passado e é preciso haver uma cerimônia de coroação?

Milhões de pessoas em todo o Reino Unido testemunharão um evento raro nos próximos dias. Embora os britânicos possam estar acostumados com a pompa, multidões e festas de rua que acompanham as celebrações e jubileus reais, já se passaram 70 anos desde que foi vista uma coroação.

Trata-se de um evento totalmente diferente, repleto de curiosidades: um juramento medieval, óleo sagrado derramado em uma colher do século 12 e uma cadeira de 700 anos que abriga uma pedra que supostamente rugiu quando reconheceu o monarca legítimo.

Alguns especialistas comparam uma coroação a um casamento — mas em vez de um cônjuge, o monarca está se casando com o Estado. As 2 mil pessoas que assistirão à coroação do rei Charles 3º na Abadia de Westminster serão questionadas se o reconhecem como monarca. Ele então receberá um anel de coroação e será chamado a fazer um juramento.

Se tudo isso soa como algo de outra época, é porque as cerimônias de coroação no Reino Unido mudaram pouco nos últimos mil anos.

Por lei, não há necessidade da coroação, pois o monarca assume o trono automaticamente após a morte de seu antecessor. Mas as coroações são um gesto simbólico que formalizam o compromisso do monarca com o papel, explica George Gross, que lidera um projeto de pesquisa sobre coroações no Kings College London.

Ele acredita que as promessas que um monarca faz de "defender a lei e a justiça com misericórdia" em uma declaração pública são um momento único e especial.

"Em um mundo incerto onde os líderes quebram as regras internacionais da lei o tempo todo, nosso monarca tem que dizer 'essas são as coisas fundamentais que importam', e isso não me incomoda."

·         Juntando o velho e o novo?

O que acontece em seguida talvez resuma o que é a coroação: uma ocasião fundamentalmente religiosa. Um contorno da cruz é feito na cabeça, nas mãos e no peito do monarca com um óleo consagrado, na colher medieval.

O processo de unção eleva "o monarca quase a um padre", explica Gross, e sinaliza o papel do monarca como chefe da igreja.

"É uma cerimônia anglicana e a unção é essencial para isso como a concessão da graça de Deus ao monarca", diz David Torrance, que escreveu um trabalho de pesquisa parlamentar sobre coroações.

“Mas também é a Igreja da Inglaterra lembrando a todos que eles são uma das igrejas estabelecidas do Reino Unido e o monarca é seu governador supremo”.

Este momento é feito em privado porque é visto como um momento íntimo e por razões de praticidade, já que o monarca usa menos roupas neste momento, diz Elena Woodacre, diretora da Royal Studies Network. É provável que as câmeras se movam como fizeram quando a rainha Elizabeth foi despojada de seu manto e joias durante sua coroação televisionada em 1953.

Em vez de usar o óleo da coroação anterior — como alguns monarcas fizeram — um novo lote foi feito este ano. Anteriormente continha produtos de origem animal como óleo de civeta e âmbar, encontrado em baleias cachalotes, mas esta versão vegana e sem crueldade é feita, em parte, de azeitonas. Em um possível aceno para outras religiões, foram cultivadas no Mosteiro de Maria Madalena em Jerusalém, onde a princesa Alice, avó do rei, está enterrada.

Mas a escolha do óleo também está de acordo com "sensibilidades modernas", diz Woodacre, acrescentando que "mistura tradição e continuidade com adaptação e mudança" num momento em que alguns questionam se a monarquia ainda tem lugar.

"A coroação é a chance do rei se conectar ao poder do passado e moldar seu futuro. Todas essas tradições antigas, como a Abadia e o uso da colher, ajudam a reforçar sua posição."

·         A tradição importa?

Graham Smith, do grupo Republic, que faz campanha para um chefe de Estado eleito, questiona se a tradição é um argumento válido quando as coroações "mudaram em escala, escopo e conteúdo todas as vezes".

"A maioria das pessoas não consegue se lembrar da última vez, então não é uma tradição que signifique nada para alguém", diz ele. "Não tem valor constitucional, não é obrigatório e, se não fizéssemos (a cerimônia), Charles ainda assim seria rei."

De fato, um monarca não precisa de uma coroação para governar e alguns fizeram isso, como Eduardo 8º, que abdicou antes da coroação dele. As monarquias europeias se livraram das coroações há muito tempo e a opinião pública sugere que o interesse talvez esteja diminuindo no Reino Unido.

Uma pesquisa recente do YouGov apontou que 48% dos entrevistados não eram muito ou nada propensos a assistir à coroação. Outra pesquisa, realizada na época do jubileu de platina da rainha, apontou que, enquanto seis em cada dez apoiavam a monarquia, a maioria dos britânicos sentia que a família real era menos importante para o país do que em 1952.

Stephen Evans, que comanda a National Secular Society, diz que o cenário religioso do Reino Unido, por exemplo, "mudou além de qualquer reconhecimento" desde a última coroação em 1953 e "muitos se sentirão alienados por uma cerimônia anglicana".

Torrance concorda que os aspectos centrais da cerimônia podem ter sido familiares para as pessoas naquela época e talvez sejam menos familiares agora. Mas ele diz que as estatísticas mostram que as congregações em Londres estão aumentando e muitas igrejas anglicanas estão cheias.

“Quando a rainha morreu, tivemos muita religião misturada com cerimônia. Acho que o Palácio ficou surpreso com a resposta do público… muita atenção prestada”, diz ele. “Se houver um esforço para tornar a coroação menos exclusivamente anglicana, pode ser levado em consideração que o Reino Unido agora tem uma proliferação de diferentes religiões”.

·         Uma coroação do século 21?

Parte essencial da cerimônia, no entanto, está ligada a uma fé, diz a professora Anna Whitelock, diretora do Centro de Estudos da Monarquia Moderna.

"O problema é que no centro disso está a unção [e] o juramento que trata de defender a Igreja da Inglaterra. O fato é que você não pode mudar as partes fundamentais da coroação, que é exclusiva, não é diversa, é sobre privilégio e tudo o que uma Grã Bretanha multi-religiosa e multi-étnica não é."

Whitelock concorda que foram feitas tentativas de modernizar a coroação, como torná-la menor em comparação com a anterior, encomendar novas músicas e envolver diversos convidados, "mas é uma tentativa de mudar o estilo [quando] você não pode mudar a substância".

Ela avalia que qualquer mudança significativa exigiria uma grande revisão, como a desestabilização da Igreja da Inglaterra ou um referendo sobre a monarquia, nenhum dos quais ela espera ver tão cedo.

"A legitimidade da monarquia é baseada na tradição e na continuidade, então acho que se o príncipe William acabasse com a coroação, isso seria visto como ir além e enfraqueceria a instituição, e não acho que chegamos a esse ponto ainda."

Gross acredita que há tentativas de modernizar a coroação de outras formas, inclusive na questão do custo.

Ele diz que, embora não seja incomum que as coroações aconteçam em tempos economicamente difíceis - citando a de George 6º, que ocorreu durante uma grande depressão -, a decisão de reduzir a lista de convidados do rei Charles 3º para um quarto dos números que compareceram à de sua mãe pode ser uma tentativa do palácio de manter os custos "razoáveis".

Mas em um momento em que a população está com dificuldades financeiras, os críticos dizem que uma coroação que custa milhões é um desperdício público de dinheiro. O Departamento de Cultura, Mídia e Esporte não foi capaz de fornecer estimativas, mas claramente não será gratuito. Também não foi possível revelar quanto custou o funeral de Estado da rainha no ano passado, embora, para comparação, o da rainha-mãe em 2002 tenha custado 5,4 milhões de libras (mais de R$ 33 milhões em cotação atual).

A reação pública à morte de ambos, no entanto, sugere que ainda existe algum nível de interesse na monarquia.

Estima-se que 250 mil pessoas fizeram fila em setembro para ver a rainha e números semelhantes compareceram para ver sua mãe. Em relação à população do Reino Unido, de 67 milhões, isso pode parecer baixo, mas cerca de 40% assistiram ao funeral na TV.

Ainda não se sabe se a coroação terá o mesmo efeito, embora o professor Whitelock seja cético.

"Não há dúvida de que algumas pessoas vão assistir e dizer que é o que a Grã-Bretanha faz de melhor com pompa e ostentação. Mas é ruim a ideia de que um homem que, por acidente de nascimento, está sendo ungido e colocado acima do resto de nós, sem ser eleito, e não representa a Grã Bretanha religiosamente ou etnicamente."

 

Ø  A história dos 2 monarcas da Inglaterra que nunca foram coroados

 

Dizem que o hábito faz o monge e a coroa, o rei. Mas na história da realeza britânica nem todos os monarcas tiveram a oportunidade de usar essa emblemática peça.

Desde o ano de 1066, cerca de 39 monarcas foram coroados como reis ou rainhas da Inglaterra, sempre na tradicional Abadia de Westminster.

Naquele ano, foi coroado Guilherme 1º, mais conhecido como Guilherme, o Conquistador, que deu início a uma tradição que terá seu próximo (e muito aguardado) capítulo no dia 6 de maio, data da cerimônia de coroação de Charles 3º após a morte de Elizabeth 2ª em setembro do ano passado.

Em geral, é tradição que se aguarde algum tempo após a morte de um rei ou rainha antes da realização da cerimônia de coroação do sucessor.

Com isso, nem todos que serviram oficialmente como reis da Inglaterra tiveram o privilégio de serem formalmente coroados.

Um dos casos mais conhecidos é o de Edward 8º, que depois de quase um ano como soberano britânico decidiu abdicar em 1936 em favor de seu irmão mais novo - mais tarde conhecido como George 6º -, basicamente por amor.

Também há registros de outro rei que nunca foi coroado: Edward 5º, que em 1483 e depois de passar três meses no trono britânico com apenas 12 anos de idade, foi deposto e depois desapareceu (presume-se que tenha sido assassinado).

  • Os Príncipes da Torre

O século 15 viu o Reino Unido mergulhar em um dos mais sangrentos conflitos pelo poder real: a Guerra das Rosas.

Dentro dos inúmeros capítulos do confronto entre as casas de Lancaster e York pelo trono, um evento muito particular e cruel é sempre lembrado: o desaparecimento de um rei e seu irmão pelas mãos de seu próprio tio.

O rei era Edward 5º. Segundo a BBC History, ele era o filho mais velho de Edward 4º, que havia conquistado uma das principais vitórias na Guerra das Rosas e, portanto, mantido a coroa britânica.

Edward4º morreu em junho de 1483 e seu filho mais velho foi imediatamente proclamado rei com o nome de Edward 5º, com apenas 12 anos de idade.

A Inglaterra ainda não havia alcançado a estabilidade política após o longo e custoso conflito interno.

Por ser menor de idade, o tio do novo rei e irmão do recém-falecido, o duque de Gloucester, foi nomeado protetor do jovem soberano até a maioridade.

Porém, como aponta o historiador britânico Anthony James Pollard em seu livro Os Príncipes da Torre, o protetor começou a ter conflitos com os nobres da corte e três meses após a ascensão de Edward 5º decidiu organizar um golpe: ordenou a prisão dos nobres e levou Edward 5º e seu irmão - e então herdeiro do trono - Richard e os trancou na famosa Torre de Londres.

Traçou-se então um complô documentado em ato parlamentar de 26 de junho daquele ano: os parlamentares aceitaram a denúncia do duque de Gloucester de que tanto Edward 5º quanto seu irmão Richard eram filhos ilegítimos de Edward 4º e, portanto, não tinham direito a herdar a coroa.

Tanto Edward 5º quanto seu irmão Richard, então duque de York, nunca mais foram vistos com vida. Muitos historiadores acusam o duque de Gloucester de tê-los assassinado, embora nunca tenham sido encontrados evidências ou documentos conclusivos para provar tal hipótese.

Dessa forma, Edward 5º nunca foi coroado. E até agora seus restos mortais não foram identificados.

No mesmo ato parlamentar de 26 de junho de 1483, o duque de Gloucester foi proclamado o novo rei da Inglaterra.

Ele adotou o nome de Richard 3º.

  • Edward 8º, o rei apaixonado

Quase 500 anos e dezenas de monarcas depois, outro rei também passou pela experiência de servir oficialmente sem nunca ter sido coroado.

Em 20 de janeiro de 1936, aos 70 anos, George 5º, rei da Inglaterra, que estava no trono há 26 anos, morreu em Sandringham House, uma das propriedades da famílias real em Norfolk, no sul da Inglaterra.

Ao mesmo tempo, seu filho mais velho ascendeu ao mais alto cargo da monarquia britânica e adotou o nome de Edward 5º.

Mas houve um problema: nos anos que antecederam a morte do pai, o então príncipe Edward teve diversos romances, alguns com mulheres casadas.

Foi assim que ele se apaixonou pela americana Wallis Simpson, que na época em que oficializou seu namoro com o futuro rei ainda era legalmente casada com seu ex-marido, Ernest Simpson.

No entanto, em outubro de 1936, nove meses após a ascensão de Edward 8º ao trono, Wallis concluiu o divórcio.

A ideia era que ela pudesse se casar com o monarca e se tornar rainha da Inglaterra.

Foi então que os problemas começaram. Em seu livro Primeiros-ministros britânicos de Balfour a Brown, o historiador Robert Pearce observa que tanto o então primeiro-ministro Stephen Baldwin quanto os líderes religiosos da época o aconselharam a não se casar com uma mulher recém-divorciada.

Eles argumentaram que, como rei da Inglaterra, ele era o chefe da Igreja Anglicana, cujos seguidores teriam dificuldade em aceitar que seu rei se casasse com uma mulher recém-divorciada.

Edward propôs várias alternativas, mas nenhuma convenceu seus conselheiros e líderes religiosos.

Depois de pouco mais de um mês de diálogo e tentativas de negociação, o próprio Edward 8º decidiu que iria abdicar se não pudesse se casar com Simpson. Essa episódio se concretizou em 11 de dezembro de 1936.

Seu irmão, o príncipe George - e pai da futura rainha Elizabeth 2º -, ascendeu ao trono.

Eduardo 8º perdeu todos os seus privilégios como nobre, embora tenha sido nomeado duque de Windsor, e teve que se mudar para outro país.

Ele morreu em 1972 em sua residência no sul da França, onde morava com sua esposa.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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