'Não vamos dizer ao
Brasil com quem se associar', diz embaixadora dos EUA na ONU sobre
reaproximação com China
A
embaixadora dos Estados Unidos na Organização das Nações Unidas (ONU), Linda
Thomas-Greenfield, fará a primeira visita de uma autoridade americana de nível
ministerial a Brasília após o mal-estar provocado nas relações entre EUA e
Brasil por declarações feitas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na
China.
Na
ocasião, Lula disse que os EUA deveriam “parar de incentivar a Guerra na
Ucrânia”, questionou “quem decidiu que era o dólar a moeda (para transações
internacionais) depois que desapareceu o ouro como padrão?”, e depois de
visitar a gigante de telecomunicações chinesa Huawei, empresa sob sanção dos
EUA, disse que o gesto era “demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que
não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai
proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China".
O
pacote de declarações foi visto como um duro ataque aos americanos, que tinham
recebido Lula para encontro bilateral na Casa Branca em fevereiro.
Thomas-Greenfield
desembarca no país na manhã desta terça, 2/5, com uma série de recados na
bagagem. “Não vamos dizer ao Brasil com quem se associar para suas prioridades
econômicas”, afirmou Thomas-Greenfield em entrevista exclusiva à BBC News
Brasil por vídeo, nesta segunda, 1/5.
Ao
retornar de Pequim, Lula afirmou que os acordos comerciais firmados na China
atingiam a cifra de R$ 50 bilhões.
Em
comparação, ao voltar de Washington, Lula trouxe apenas um compromisso de US$
50 milhões para o Fundo Amazônia, recurso considerado exíguo pela gestão
brasileira.
Há
duas semanas, o governo de Joe Biden anunciou que o aporte ao Fundo Amazônia
deverá chegar a US$ 500 milhões em 5 anos, mas a doação ainda depende de
aprovação do Congresso.
Confrontada
com a aparente dificuldade dos EUA de mandarem dinheiro à América Latina,
enquanto cresce na região a presença chinesa, Thomas-Greenfield afirmou que os
americanos não fazem “anúncios frívolos” ao Brasil, e que seus investimentos no
país já geraram 700 mil empregos. Disse ainda que Biden trabalhará com o
Congresso para cumprir a promessa que fez para a Amazônia.
Já
sobre a Guerra da Ucrânia, o tom da diplomata foi mais duro. Ela admitiu que os
EUA ficaram “desapontados” com as declarações de Lula de que os EUA promoviam o
conflito, de que a Ucrânia também é responsável pela guerra e de que o país
teria eventualmente que ceder a Crimeia para a Rússia para terminar a guerra.
Embora
o Brasil tenha repetidas vezes condenado na ONU a invasão russa e a anexação de
territórios ucranianos, as falas de Lula, seguidas da visita a Brasília do
chanceler russo Sergey Lavrov, recebido por uma hora e meia pelo presidente
brasileiro, levaram o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John
Kirby, a dizer que o Brasil “papagueava” propaganda russa e chinesa no assunto.
Questionada
se os americanos perderam a confiança no governo brasileiro sobre o assunto,
Thomas-Greenfield afirma que “se o Brasil leva a sério a busca pela paz,
precisa se envolver com a Ucrânia”.
A
afirmação da diplomata é uma crítica ao fato de que, embora Lula tenha recebido
Lavrov, e seu assessor internacional Celso Amorim tenha visitado o líder russo
Vladimir Putin em Moscou, o contato com a Ucrânia se limitou a uma vídeochamada
de Lula com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.
Há
dez dias, enquanto visitava Portugal e colhia a repercussão negativa de suas
falas entre europeus, Lula decidiu que Amorim irá também visitar a Ucrânia e se
encontrará com Zelensky, em data ainda não definida.
Perguntada
se via no Brasil condições de mediar o conflito, Thomas-Greenfield
desconversou: “Vários países apresentaram propostas de paz e saudamos qualquer
esforço”.
A
embaixadora americana terá encontros com o chanceler brasileiro Mauro Vieira e
o assessor da presidência em relações exteriores Celso Amorim.
Thomas-Greenfield também tinha a expectativa de se encontrar com Lula, o que
não havia sido confirmado até o fim da tarde desta segunda (1/5).
Em
Brasília, Thomas-Greenfield ainda deve tratar das crises na Nicarágua,
Venezuela e Colômbia, da possibilidade de que o Brasil componha uma força
multinacional ao Haiti (que os EUA incentivam e os brasileiros resistem) e do
avanço no acordo bilateral entre Brasil e EUA para combate ao racismo, o Japer,
que levará a diplomata também a Salvador.
Leia
a seguir os principais trechos da entrevista de Thomas-Greenfield à BBC News
Brasil, editada por concisão e clareza:
·
O Brasil já votou contra a anexação territorial de
partes da Ucrânia pela Rússia na ONU, mas em recente visita à China, o
presidente Lula disse que os EUA deveriam “parar de incentivar a guerra”,
acusou mais uma vez os ucranianos de também serem responsáveis pelo conflito e
dias depois recebeu o chanceler russo Sergey Lavrov, que disse ao lado do
chanceler brasileiro que Brasil e Rússia compartilham perspectivas sobre a
guerra. Em resposta, John Kirby acusou Lula de papaguear a propaganda russa e
chinesa sobre o assunto. Os EUA perderam a confiança no Brasil no tema?
Linda
Thomas-Greenfield - Somos
um parceiro de longa data do Brasil e nos envolvemos com o Brasil em um grande
número de questões. E como você notou, o Brasil votou para condenar o ataque da
Rússia à Ucrânia, a anexação do território ucraniano pela Rússia, e,
recentemente, votaram que quaisquer decisões relacionadas a isso devem estar
estar embasadas na carta de princípios da ONU. Portanto, esperamos que o Brasil
continue a apoiar esses esforços.
E
direi que ficamos desapontados com os comentários e as declarações que foram
feitas durante a viagem (de Lula à China). Mas acho que, à medida que
continuamos nossas discussões com o Brasil, incentivamos que eles também se
envolvam com a Ucrânia.
O
presidente Biden deixou claro que nada sobre a Ucrânia (deve ser decidido) sem
a Ucrânia. Então, se o Brasil leva a sério a busca pela paz, precisa se
envolver com a Ucrânia, além de apoiar a resolução da ONU que não reconhece a
anexação do território ucraniano pela Rússia. Espero ter mais discussões in
loco com autoridades brasileiras enquanto eu estiver lá para falar
sobre a Ucrânia, mas há outras questões que também discutiremos, como a
situação na Venezuela, a situação no Haiti, a Colômbia.
E
olharemos para as áreas onde temos valores fortes e duradouros. Somos as duas
maiores democracias deste continente, nós temos isso em comum, e acho que essa
semelhança definirá como nosso relacionamento avançará.
·
Considerando as declarações recentes, os EUA veem o
Brasil em posição para mediar o fim da guerra da Ucrânia?
Thomas-Greenfield
- Vários
países apresentaram propostas de paz e saudamos qualquer esforço para encontrar
uma solução pacífica para esta situação desde que embasada na carta da ONU, que
reconheça a integridade territorial da Ucrânia e que traga paz ao povo da
Ucrânia.
·
Na semana passada, a BBC Brasil revelou que os EUA
pediram a extradição de um homem acusado de ser espião ilegal russo e de ter
atuado nos EUA sob identidade brasileira. É o terceiro caso do tipo em poucos
meses. Os EUA temem que o Brasil tenha se convertido em um berçário de espiões
russos?
Thomas-Greenfield
- O
governo brasileiro indiciou esta pessoa pelos atos que ela cometeu (no Brasil)
e ela foi também acusada nos Estados Unidos. Não posso comentar mais sobre
isso. Mas, para responder à sua pergunta, esperamos continuar a cooperar com o
Brasil nesta questão.
·
Há duas semanas, pouco depois da visita de Lula à
China, os EUA anunciaram uma promessa de US$ 500 milhões para o fundo Amazônia.
Mas a chance de o recurso ser aprovado no Congresso é baixa. Como o governo
Biden pretende viabilizar essa doação?
Thomas-Greenfield
- O
presidente assumiu o compromisso (para o Fundo Amazônia) e também se
comprometeu a quadruplicar nosso financiamento climático internacional, para
US$ 11 bilhões. E ele trabalhará com membros do Congresso para honrar esse
compromisso.
·
Biden também trabalhou para levar Lula ao encontro do
G7 em Hiroshima. Deve haver algum outro anúncio durante o evento no Japão?
Thomas-Greenfield
- Já
fizemos uma promessa de 500 milhões e estamos empenhados em apoiar os
compromissos climáticos do Brasil, comprometidos em honrar nossas próprias
metas climáticas e apoiar todos os esforços para lidar com o que o
secretário-geral (da ONU, António Guterres) chamou de ameaça existencial ao
nosso futuro. Portanto, continuaremos a trabalhar nesse esforço. Não posso dar
uma prévia de quais anúncios podemos fazer lá (em Hiroshima), mas nossos
anúncios anteriores mostram como nossos compromissos são fortes.
·
Eu lhe pergunto isso porque enquanto os EUA parecem
estar tendo certa dificuldade para enviar dinheiro para a América Latina, vemos
a China cada vez mais aumentando sua presença na região. Na última visita de
Lula a Pequim, China e Brasil concordaram em começar a fazer negócios sem o
dólar, usando o RMB (yuan). O governo Biden está preocupado com isso?
Thomas-Greenfield
- Nossa
parceria é nossa maior preocupação, e nossa parceria é forte. Temos grandes
investimentos no Brasil. E nossos investimentos mostram resultados concretos
para o povo brasileiro, já geraram mais de 700 mil empregos no Brasil.
Eles
não são apenas anúncios frívolos, mas são anúncios concretos que impactam a
vida das pessoas. Não vamos dizer ao Brasil com quem deve se associar para suas
prioridades econômicas. Mas o que vamos falar é do nosso compromisso, das
nossas relações, dos nossos investimentos neste país, que foram
extraordinariamente fortes e tiveram um impacto incrível na vida das pessoas
comuns.
·
O Brasil é atualmente membro temporário do Conselho de
Segurança da ONU e tem uma antiga demanda por um assento permanente no
colegiado. Os EUA apoiarão oficialmente a inclusão do Brasil no Conselho? Como
isso seria feito?
Thomas-Greenfield
- O
presidente Biden já disse que apoiamos a expansão do Conselho de Segurança para
membros permanentes e não permanentes. Não cabe aos EUA selecionar esses
membros.
O
que estamos fazendo é ter uma discussão muito aberta e ampla em todas as
regiões do mundo para falar sobre como podemos avançar de maneira concreta para
alcançar a reforma do Conselho de Segurança. Portanto, apoiamos a (aspiração
da) América Latina, apoiamos a África para (contar com) novos membros no
Conselho de Segurança, mas faremos parte do que será um processo democrático
para selecionar quaisquer novos membros.
E
o que compreendemos ao fazer esta escuta ao longo dos últimos meses é que temos
que ser flexíveis para chegar a um processo crível, que seja aceito por todos
os que manifestaram o desejo de se tornar um membro permanente.
·
Ainda no ano passado, os EUA demonstraram interesse de
que o Brasil mandasse novamente uma força militar ao Haiti, que vive uma
situação de colapso do Estado e de violência generalizada. Isso é algo que os
EUA ainda gostariam que acontecesse? Por que?
Thomas-Greenfield
- Temos
no Conselho de Segurança trabalhado para apoiar uma força multinacional, que
não seja da ONU, para ir ao terreno e apoiar a situação de segurança no Haiti.
E damos as boas-vindas à participação de qualquer país nesse processo.
Estamos
todos muito preocupados com a situação, especialmente porque as gangues
continuam a aterrorizar os cidadãos comuns, bloqueando a assistência
humanitária, obrigando os hospitais a fechar. Então a situação de segurança é
muito preocupante, é muito ameaçadora.
E
gostaríamos da participação ativa do Brasil nessa força multinacional. Esta
será, obviamente, uma das questões que discutirei quando estiver em Brasília.
Todos
nós queremos que isso (envio da força multinacional) aconteça o mais
rapidamente possível. O Conselho de Segurança ainda está discutindo como isso
vai avançar e que tipo de resolução precisaremos para poder colocar isso em
prática. Mas estamos trabalhando em um cronograma muito, muito rápido.
·
Pensando em América Latina, a senhora citou a situação
da Venezuela, por exemplo. Que papel os EUA esperam que o governo Lula tenha em
crises como Venezuela e Nicarágua?
Thomas-Greenfield
- O
Brasil é um líder na região e a voz do seu presidente, a liderança do país, é
fundamental para trabalhar com os países da região para encontrar soluções.
Vou
estar no modo de escuta quando estiver em Brasília. Quero ouvir das autoridades
brasileiras o que pensam sobre como devemos lidar com a situação na Venezuela
daqui para frente.
Quero
ouvir como devemos olhar para a situação na Colômbia e na Nicarágua. A voz do
Brasil é importante para nos ajudar a encontrar soluções para todas essas
situações.
E
eu quero agradecer ao Brasil por ser um anfitrião tão hospitaleiro para tantos
refugiados e migrantes. Há mais de 250 mil venezuelanos lá, há afegãos lá. Tem
gente de toda parte do mundo que foi bem recebida pelo povo brasileiro, e isso
realmente merece ser elogiado.
·
A senhora irá a Salvador para reativar o único acordo
bilateral de combate ao racismo que os EUA possuem (assinado nos anos 2000 mas
nunca posto em prática). Como esse acordo deve funcionar e que semelhanças vê
entre o racismo no Brasil e nos EUA?
Thomas-Greenfield
- Esta
é uma verdadeira parceria e estou muito orgulhosa de ser a primeira autoridade
americana com nível ministerial a ir a Salvador em 15 anos. É um sinal que
realmente ressalta os compromissos de nossos países com a equidade racial e a inclusão.
E acho que o governo Lula fez disso uma prioridade fundamental, assim como o
presidente Biden. E eles falaram sobre isso durante a visita (em Washington, em
fevereiro).
Revitalizaremos
o acordo realmente procurando maneiras de promover a equidade e a justiça
racial e proteger as comunidades raciais e indígenas marginalizadas no Brasil e
nos Estados Unidos. Temos muitas coisas em comum: o fato de os EUA e o Brasil
terem as maiores populações afro fora da África é definitivamente algo que
merece a atenção de nossos dois presidentes.
Fonte:
BBC News Brasil
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