Como o Ocidente
permitiu que dois generais entrassem em guerra e destruíssem o Sudão
A
violência que explodiu no Sudão enquanto os
dois principais generais do país lutam pelo poder se desenrolou
em uma velocidade
assustadora e vertiginosa.
Mas,
de acordo com muitos relatos, o confronto demorou a acontecer – o ponto
culminante de anos despendidos pela comunidade internacional legitimando os
dois rivais militares como atores políticos, confiando a eles a tarefa de fazer
uma transição democrática, apesar de muitos sinais de que não tinham intenção
de fazê-lo.
Agora,
os dois homens, que começaram suas carreiras nos campos de matança de Darfur, a região ocidental onde uma
rebelião tribal eclodiu no início dos anos 2000, colocaram suas forças uma
contra a outra e parecem ter a intenção de dividir o Sudão. A União Africana
alertou que o confronto “poderia se transformar em um conflito total”,
perturbando a estabilidade em toda a região.
O
general Abdel Fattah
al-Burhan,
governante militar do Sudão e chefe do exército, e o general Mohamed Hamdan
Dagalo (conhecido
como Hemedti), vice do país e chefe do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF), compartilharam o
poder desde a realização um golpe em 2021, quando juntos expulsaram civis de um
governo de transição. Essa aliança, forjada em um desdém mútuo pelas ambições
democráticas do povo sudanês, desmoronou no que agora se assemelha a uma luta
até a morte.
Nas
semanas anteriores ao início do conflito, os dois generais flertaram com um
acordo que visava amenizar as disputas remanescentes – em grande parte a
reforma do setor de segurança e a integração da RSF no exército – e levar o
país a uma tão esperada democracia liderada pela civilidade.
Eles
se reuniram com mediadores estrangeiros e fizeram promessas de entregar o
poder. Enquanto isso, na capital Cartum, veículos de
transporte de pessoal e tanques foram vistos pelas ruas, fortificando e
reforçando os dois lados.
“O
fato de que essas forças estavam preparadas e prontas para descer tão
rapidamente a esse nível de violência não deveria ser surpresa para ninguém”,
disse Cameron Hudson, ex-analista da CIA, agora especialista em África no Center for
Strategic and International Studies.
Ele
acrescentou que as potências estrangeiras envolvidas nas negociações – os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, bem como as Nações Unidas – cometeram
um grave erro de cálculo ao acreditar que os dois generais eram partes
dispostas prestes a entrarem em acordo.
Hudson,
que serviu como chefe de gabinete de sucessivos enviados especiais dos EUA para
o Sudão durante a divisão do Sudão do Sul e o genocídio de Darfur, disse:
“Aqueles de nós que têm assistido a isso de fora e certamente aqueles de nós
que têm alguma história em lidar e negociar com as Forças Armadas do Sudão ou a
RSF sabem que esses caras têm uma longa história de dizer uma coisa e fazer
outra”.
Os
generais alegaram que não tiveram escolha a não ser pegar em armas uns contra
os outros, enviando morteiros e projéteis de artilharia sobre Cartum e fazendo
tiroteios em bairros ricos do centro da cidade.
À medida que o
conflito se estende pela segunda semana, espalhando-se por todo o país,
governos estrangeiros – incluindo aqueles que estiveram envolvidos no
complicado processo de paz – estão retirando seus cidadãos, enquanto muitos
sudaneses permanecem presos em suas casas sem eletricidade, comida ou água,
procurando desesperadamente uma maneira de escapar. Mais de 400 foram
mortos e
milhares ficaram feridos nos combates.
Poucas
horas depois de os ataques começarem em 15 de abril, Hemedti deu uma entrevista
à TV Al Jazeera criticando seu companheiro que se tornou rival, rotulando
Burhan de “criminoso” que havia “destruído o Sudão” e ameaçando-o de prisão.
“Sabemos onde você está se escondendo e vamos chegar até você e entregá-lo à
justiça, ou você morre como qualquer outro cachorro”, disse ele, antes de
afirmar que a RSF estava cumprindo a “soberania do povo”.
Quando
contatado por telefone, Burhan disse à CNN que Hemedti havia “se amotinado” e, se capturado, seria
julgado em um tribunal. “Esta é uma tentativa de golpe e rebelião contra o
Estado”, disse ele.
A
troca destacou o quão pouco progresso foi feito desde 2019, quando uma revolta
popular levou à remoção do ditador sudanês de longa data, o presidente Omar al-Bashir. Quatro anos
depois, ele foi substituído por dois líderes militares que subiram na
hierarquia sob seu governo corrupto e brutal de 30 anos, agora em uma batalha
pela supremacia.
“É
uma briga entre dois parceiros em um crime, [o] golpe de 25 de outubro de 2021,
sobre os despojos do crime. Esta é uma guerra entre dois males que não têm o
interesse deste país em seus corações”, disse Amgad Fareid, ex-conselheiro do
primeiro-ministro deposto Abdalla Hamdok, em um post recente.
Ele
acrescentou que a comunidade internacional ajudou a criar a situação atual que
se desenrola no Sudão, continuando a pressionar pela formação de um governo a
qualquer custo – emprestando legitimidade a Hemedti e Burhani como atores
políticos, mesmo quando eles tentaram impedir o processo e evitar verdadeiras
reformas.
“Assim
como a liderança do exército não é sincera em seu apelo ao processo de reforma
do setor de segurança, Hemediti também não é […] em suas declarações de apoio à
transição civil e à transformação democrática no Sudão. Hemedti usa esse
discurso como uma camisa ensanguentada para manter sua influência e forças
militares para uso futuro”, disse Fareid.
De
um subclã da tribo Mahariya Rizeigat, povo nômade que pastoreava camelos em Darfur,
Hemedti começou como comandante dos Janjaweed.
A
milícia, conhecida como “demônios a cavalo”, era formada por tribos de maioria
árabe-sudanesa, convocada para combater os rebeldes não árabes de Darfur que
pegaram em armas contra o governo sudanês. As forças são acusadas de algumas
das atrocidades mais terríveis cometidas em Darfur, incluindo tortura,
execuções extrajudiciais e estupros em massa, de acordo com a Human Rights Watch. O conflito, que
começou em 2003, deixou milhões de deslocados e mais de 300 mil mortos.
Em
uma entrevista
frequentemente citada no
cerrado do sul de Darfur em 2008, Hemedti, com um turbante em volta do rosto e
vestido de uniforme, disse a Nima Elbagir, da CNN, então repórter do britânico Channel 4, que Bashir o havia
pedido pessoalmente para liderar a campanha contra a insurgência.
Mas
ele negou qualquer envolvimento em ataques a civis e disse que recusou ordens
do governo para fazê-lo. Ao contrário do ex-ditador do Sudão, Hemedti não
enfrentou acusações do Tribunal Penal Internacional.
Sua
brutalidade no campo de batalha lhe rendeu a lealdade de Bashir, que
supostamente costumava chamá-lo de “Hamayti” – meu protetor. Diante do clamor
internacional sobre as ações dos Janjaweed em Darfur, Bashir os formalizou nas
Unidades de Inteligência de Fronteira. Em 2013, ele estabeleceu as Forças de
Apoio Rápido por decreto e nomeou Hemedti para liderá-las, contando cada vez
mais com o grupo paramilitar como guarda pretoriana.
Quando
dezenas de milhares de manifestantes pró-democracia foram às ruas de Cartum no
início de 2019, Bashir convocou as forças armadas de Burhan e as tropas
paramilitares de Hemedti para reprimir o levante. Mas a dupla aproveitou a
oportunidade para atacar Bashir, unindo forças para depô-lo.
Apenas
dois meses depois, quando jovens manifestantes realizaram uma manifestação
pacífica em frente ao quartel-general do exército pedindo uma transição rápida
para o governo civil, as forças de Hemedti iniciaram uma repressão sangrenta.
Em
uma tragédia que deixou pelo menos 118 mortos, a RSF supostamente queimou
barracas, estuprou mulheres que manifestavam e jogou corpos no rio Nilo.
Testemunhas oculares disseram que alguns estavam cantando: “Você costumava
cantar que todo o país é Darfur. Agora trouxemos Darfur para vocês, para
Cartum”.
Hemedti
negou estar envolvido na violência, e as sanções que foram pedidas por alguns
membros do Congresso dos EUA visando seus interesses financeiros nunca
aconteceram. Mais tarde naquele verão, ele foi nomeado vice-chefe do Conselho
Soberano de Transição que governou o Sudão em parceria com a liderança civil.
Burhan foi nomeado seu chefe.
O
sentimento compartilhado de impunidade do general foi sublinhado em outubro de
2021, quando eles deram um golpe, prendendo Hamdok e seu gabinete. Jeffrey
Feltman, que foi o primeiro enviado especial dos EUA para o Chifre da África na
época, disse que a série de eventos foi um choque.
Apenas
cinco horas antes, ele e sua equipe se reuniram com o primeiro-ministro, bem
como Hemedti e Burhan, que disseram que concordariam com um plano de renovação
de uma parceria civil-militar.
“A
ação deles demonstrou que eles nunca tiveram a intenção de retribuir. Desde
então, a história se repetiu várias vezes: a liderança do exército e da RSF
assumiu compromissos apenas para posteriormente quebrá-los”, disse Feltman em
um artigo recente no The Washington Post.
Se
o acordo para a criação de um governo civil no início de abril teria
credibilidade – seja para os movimentos de protesto do Sudão ou para seu povo –
é uma questão em aberto. Mas o que está claro é que a comunidade internacional
cometeu um erro ao confiar que Burhan e Hemedti estavam interessados na
reforma, disse Feltman.
“Evitamos
consequências severas para atos repetidos de impunidade que poderiam ter
forçado uma mudança no cálculo. Em vez disso, nós reflexivamente apaziguamos e
acomodamos os dois senhores da guerra. Nós nos considerávamos pragmáticos. A
retrospectiva sugere que o pensamento positivo é uma descrição mais precisa”.
A
violência provocou acusações e introspecções em Washington, com o senador Jim
Risch, o principal republicano no Comitê de Relações Exteriores do Senado,
culpando o governo Biden por não responsabilizar os militares do Sudão pelos
abusos.
“Os
acontecimentos dos últimos dias no Sudão, como em 2019 e 2021, refletem um
claro padrão de comportamento em que homens fortes tentam governar o país por
meio da violência. Infelizmente, a comunidade internacional e os atores
regionais foram vítimas, novamente, da confiança dos generais Burhan e Hemedti
quando eles disseram que entregariam o poder aos civis”, disse Risch em nota,
pedindo ao governo que sancione os generais.
Nos
anos que se seguiram à revolução do Sudão, a RSF cresceu rapidamente para
dezenas de milhares e, com ele, a influência de Hemedti se ampliou no país e no
exterior. Ele enviou suas forças para lutar no Iêmen com a coalizão liderada
pela Arábia Saudita.
Ele
também acumulou enormes quantidades de riqueza pessoal, capturando importantes
minas de ouro em Darfur e fazendo parceria com os russos. Como disse o
especialista em Sudão, Alex de Waal, em 2019, Hemedti se tornou o rosto do
“mercado político violento” do país, construindo uma força paramilitar mais
forte que o exército.
“Nos
últimos anos, vimos Hemedti tentar se reinventar por meio de campanhas de
relações públicas, e seu perfil nas redes sociais. Ele tem toda essa história
sangrenta. Mas ele não tem nenhuma marca em desse tipo em sua ficha
permanente”, disse Hudson, sugerindo que os EUA deveriam ter sancionado a ele e
a RSF após a violenta repressão em junho de 2019.
Ele
acrescentou que os EUA deveriam ter sancionado Burhan também, após o golpe. Em
vez disso, o general de quatro estrelas e Hemedti conseguiram se apresentar
como parceiros dos partidos civis do Sudão e cultivar uma imagem de si mesmos
como atores políticos respeitáveis.
“Foram
duas oportunidades de tirar esses caras do cenário político. Nós não fizemos
isso. Esses foram nossos dois primeiros erros”, disse Hudson, explicando que o
terceiro foi chegar a um acordo político no ano passado que lhes deu igualdade
de posição com os civis.
“Ao
não puní-los, nós os legitimamos de fato e os tornamos atores políticos quando
não deveriam ser”.
Ø
Ex-presidente
do Sudão e aliados deixaram prisão antes de confrontos, diz Exército
O
Exército do Sudão confirmou que
o ex-presidente Omar al-Bashir foi transferido da prisão de Kober, em Cartum,
com pelo menos cinco de seus ex-oficiais, para um hospital militar. A
transferência teria ocorrido antes do início das hostilidades em 15 de abril,
em que as forças do governo enfrentam as Forças de Apoio Rápido (RSF) paramilitares.
Bashir
é procurado pelo Tribunal Penal Internacional de Haia
(TPI) por
crimes de guerra por atrocidades durante um conflito anterior na região de
Darfur, assim como um de seus aliados que foi transferido junto com ele, Abdel
Rahim Mohamed Hussein.
O
ex-presidente e seus apoiadores diretos não foram os únicos a deixarem a prisão
nos últimos dias. No fim de semana, milhares de detentos foram
imediatamente libertados da prisão, incluindo outro ex-ministro do governo de
Bashir que também é procurado por crimes de guerra pelo TPI, Ali Haroun.
O
paradeiro de Bashir foi questionado depois que Haroun anunciou na terça-feira
que havia deixado a prisão de Kober em Cartum com outras ex-autoridades.
Milhares
de criminosos condenados, incluindo alguns condenados à morte, estão detidos na
vasta prisão, junto com autoridades do regime de Bashir, que foi derrubado há
quatro anos.
·
Troca de acusações
Autoridades
sudanesas e a RSF trocaram acusações sobre a libertação de presos, com a
polícia dizendo que paramilitares armados invadiram cinco prisões no fim de
semana, matando vários guardas e abrindo os portões.
A
RSF culpou as autoridades por deixarem Haroun e outros saírem.
A
libertação de criminosos condenados aumentou a sensação de ilegalidade em
Cartum, onde os moradores relatam o agravamento da insegurança, com saques
generalizados e gangues perambulando pelas ruas.
“Esta
guerra, que é desencadeada pelo regime deposto, levará o país ao colapso”,
disse as Forças de Liberdade e Mudança do Sudão, grupo político que lidera um
plano apoiado internacionalmente de transferência para um governo civil abalado
pelo começo dos combates.
Bashir
chegou ao poder em um golpe militar de 1989 e foi deposto em uma revolta
popular em 2019. Dois anos depois, o Exército liderado pelo general Abdel
Fattah al-Burhan, com apoio da RSF, assumiu em um golpe.
O
atual conflito entre o Exército e o líder da RSF, general Mohamed Hamdan
Dagalo, eclodiu em parte devido a divergências sobre a rapidez com que a RSF
deveria ser integrada às Forças Armadas sudanesas sob a planejada transição
para o governo civil.
O
Tribunal Penal Internacional em Haia acusou Bashir de genocídio e Haroun de
organizar milícias para atacar civis em Darfur em 2003 e 2004. O TPI se recusou
a comentar a transferência da prisão de Bashir, Haroun e Hussein.
Fonte:
CNN Brasil
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