A nova política
externa de Lula não é tão nova e é a continuação da política interna de
conciliação de classes
As
declarações de Lula sobre o dólar, sobre o FMI, sobre a guerra na Ucrânia
abriram um furor em círculos políticos e jornalísticos brasileiros. Do lado de
uma Globo News, CNN e satélites tratava-se de um movimento muito criticado mas
que sempre ressaltavam, no marco de um movimento correto de recolocar uma forma
“histórica” da política externa brasileira “independente”, mas o ruído para
estes (e até mesmo a Carta Capital) era desnecessário indispor-se com o
“Ocidente”. De parte de petistas e satélites, tratava-se da possibilidade de
algo mais, de uma mudança qualitativa na localização do Estado
brasileiro no jogo internacional de estados.
André
Barbieri visitou posicionamentos da grande mídia, passando em revista a Economist,
critica Gielow da Folha, Waack da CNN, por defensores da China em nossas
terras, e teceu diversas ideias importantes em “Lula na China: a
relativa autonomia estatal e a dupla dependência” onde remarca
uma baliza crucial que passa desapercebido às vezes no debate: a dupla
dependência do Estado brasileiro dos EUA e China. Nesse artigo citado, o autor
pontua a mudança em relação a subordinação brutal aos EUA organizada sob
governo Bolsonaro para agora um retorno “à forma” histórica de política externa
do Itamaraty.
O
autor afirma: “Essa forma conservadora das relações internacionais do Brasil
informa o caráter subordinado do próprio no sistema de Estados: sem poder ter
poder de fogo relevante nas grandes disputas, encontra nos interstícios do
sistema as brechas para alcançar seus objetivos parciais. Esse é o dualismo
dramático da política externa brasileira no início do terceiro governo Lula.”
Essa
busca dos interstícios informa uma política interna também. “A política
externa é uma continuidade da política interna”, definia o revolucionário
russo Leon Trótski em artigo de 1939. Em países com
características dependentes, atrasadas e com traços semicoloniais como o Brasil
é inseparável pensar a política interna da penetração de capitais estrangeiros,
suas diplomacias, sua tecnologia e mesmo sua influência militar.
Há
uma infinidade de interesses materiais que se cruzam no Brasil e na América do
Sul, característica relativamente histórica do continente que mais de uma vez
esteve no interstício de domínios, primeiro entre Inglaterra e EUA antes da
hegemonia americana e depois no interstício do domínio yankee. Se há um lugar
nas Américas onde o domínio yankee é mais relativo é no Cone Sul, aqui
historicamente potências emergentes tentaram estabelecer maior disputa, isso
pode-se ver antes da primeira guerra mundial, antes da segunda guerra mundial,
e ao início do declínio da hegemonia norte-americana nota-se, desde ao menos a
ditadura brasileira, uma relação diferenciada com potências europeias, como a
Alemanha que ajudou os militares brasileiros a desenvolver tecnologia atômica.
Por
sua vez também é impossível pensar o alinhamento tão pró-EUA de Bolsonaro sem
ver a virulência anterior da Lava Jato e sua relação com o partido democrata e
o deep state americano, uma operação que além de atacar
politicamente o país sendo peça do golpe institucional e sua continuidade,
atacou estatais, global players brasileiras e particularmente
mirou em domínio de tecnologias próprias ou em parcerias com potenciais
europeias (as sondas da Petrobrás junto ao Santander; os submarinos nucleares
junto à França, e os super-caças junto a mesma potência).
Também
não deixa de chamar atenção a sincronia em que a general norte-americana
responsável pelas Américas veio à Argentina buscar acordos sobre o lítio
justamente quando Lula aumentava o tom contra os EUA e Europa. A crítica
estadunidense veio acompanhada de 500 milhões de dólares para o Fundo Amazônia,
sinalizando como apesar das críticas às declarações de Lula não estão dispostos
a alienar o maior país da América do Sul à China e Rússia. A visita de Lula a
Portugal e Espanha, por sua vez, é retratada pela estatal alemã de mídia (DW)
como a busca de apoio dos maiores parceiros no acordo UE-Mercosul. Os sinais
cruzados seja de Lula (voto pró-ocidente na ONU, frases mais alinhadas a
Rússia, entre outros) seja das potências europeias e americanas se inserem
todas num contexto que procuramos descrever como uma “corrida de
velocidades” das potências na América do Sul.
·
A política externa como continuação da política interna
Qual
política interna era continuada por Bolsonaro com sua política externa de bater
continência aos EUA, como fez na campanha de 2018? Um brutal avanço sobre
direitos trabalhistas, sociais e indígenas em nome de avançar uma forma de
acumulação de capital para exportadores de commodities, importadores de itens
de consumo à la Havan, e avanço em privatizações. Mesmo Bolsonaro com seu
ímpeto de desconstrução tinha que falar grosso contra a China, como um Trump,
mas devido aos interesses materiais do agronegócio brasileiro não podia ir
nenhum passo além da retórica.
Há
importantes alas da burguesia brasileira que saúdam a tentativa de trazer a
política externa brasileira mais de acordo a sua “tradição”, uma tradição que
também ecoa uma maneira de alas da burguesia brasileira tentar seu lugar no
mundo – um equilíbrio entre múltiplos atores e múltiplas relações de
subordinação (ou mesmo dependência). A política externa de interstícios de Lula
busca justamente uma conciliação com os interesses capitalistas que se cruzam
no país, um agronegócio brutalmente dependente da China e todo Oriente, uma
dependência tecnológica, política e militar imensa dos EUA e um terceiro
componente com muito peso material, liderando o investimento estrangeiro no
país, mas que não atua em uníssono, o capital europeu que ora bandeia-se de
forma americana, ora chinesa e em geral apesar da União Europeia articula-se
muito mais como “espanhol”, “francês”, “alemão”.
Justamente
nos intervalos mais estreitos em Lula 3 do que Lula 1 ou 2 que trafega a
política externa. Tentando um acordo de cooperação em tecnologia de satélites
com a China, de tecnologia nuclear com a Rússia, quando por outro lado não há
nenhum questionamento à concessão da base espacial de Alcântara aos EUA e
expressa proibição de utilização pela China ou em parceria com ela. Ou seja, o
Brasil não vai ter base especial onde se beneficiar do acordo com a China. Esse
passo aqui e passo contraditório acolá se vê em cada terreno, da votação na ONU
condenando a Rússia versus a declaração diferente, o discurso contra as privatizações
para aplaudir o investimento do Emirados Árabes na ACELEN, justamente a
refinaria privatizada na Bahia.
Para
entender a política externa brasileira é preciso relacioná-la com a política
interna bem como não tomar um lado dos fenômenos isolando-os de seus contrários
complementares. É justamente esse movimento polar que predomina na mídia
burguesa (que aumenta os elementos “anti-ocidente”) e na mídia petista que
minimiza os pró-EUA. Por exemplo, quantas linhas correram na mídia petista
sobre a independência brasileira ao negar à Alemanha componentes do tanque de
guerra Leopard que seria cedido à Ucrânia e quão gritante foi o silêncio
perante o golpe de estado apoiado pelos EUA no Peru e o apoio militar que Lula
deu aos golpistas?
Aqui
fizemos um vôo de pássaro sobre esses elementos díspares que compõem uma
política externa como continuação das contradições internas que inclui um maior
alinhamento com China e Rússia que previamente, mas em um contexto de
procurar não tomar um lado, trabalhar no interstício. Como bem lembraram
parlamentares americanos em sessão sobre a presença chinesa na América Latina,
o Brasil é um dos únicos países da América do Sul que não é signatário do
projeto chinês Rota e Seda.
A
relação com a China que inclui investimentos produtivos tem se concentrado em
participações em privatizações no setor energético (eletricidade e petróleo) e
sobretudo agronegócio e sua logística. É uma relação que acentua
dependência, porém há quem queira ver um caminho anti-imperialista. É o que
defende um articulista dos
neorreformistas da Resistência-PSOL, que passa adotar uma visão de
investimentos (capitalistas) chineses como um caminho de independência (sic).
Passaram a adotar um corte de campos de Estado e não de classe nessa análise,
vejamos:
“É
uma função do governo brasileiro Brasil, assim como hoje é uma possibilidade
que se abre, a realização de um diálogo estratégico com a China. O governo Lula
deve pensar com o objetivo de realizar a industrialização de nosso país,
modificar nossa economia, e fazer com que o Brasil cumpra um papel importante
como voz dos países do Sul global na sua busca por desenvolvimento e
independência.”
Outro
autor da mesma corrente, agora não em nome
próprio mas da “redação” de seu grupo diz: “Não está claro ainda o papel do
Brasil nessa nova divisão mundial do trabalho e sistema mundial de Estados.
Desde Temer e sobretudo sob Bolsonaro, a elite brasileira tem apostado em uma
localização absolutamente subordinada politicamente e dependente
economicamente, com o Brasil acompanhando sempre os votos norte-americanos na
ONU e fornecendo commodities baratas para o mundo. Não se sabe ao certo o que
Lula pensa a esse respeito. As declarações até agora têm sido demasiado
genéricas. Um passo prático é a atual viagem de Lula à China. Vejamos em que
resulta.”
Citamos
esses dois autores dessa corrente pela simplificação dos argumentos que podemos
ver repetidos em articulistas do PT às vezes com maiores voltas, resulta que
não sabem qual o lugar do Brasil na divisão mundial do trabalho e que com
capital chinês em parcerias público privadas ou privatizações estaríamos rumo a
“independência”. É por um lado um exagero de “autonomia” que nenhum funcionário
do Itamaraty se arriscaria a falar e por outro uma irreparável perda da bússola
de classe. As tarefas antiimperialistas não podem ser realizadas por mãos
burguesas e de potências estrangeiras, mas pela ação dos trabalhadores.
É
preciso reconhecer que em uma situação de maior conflitividade interestatal,
com maior competição entre potências, como a que vivemos, abrem-se interstícios
para burguesias tentando se equilibrar entre dependências distintas. Mas não se
pode resolver tarefas que exigem combate através de manobras. Já vivemos a
ascensão e queda da ilusão do Brasil virar potência sem conflito com
os imperialismos. Agora vivemos um revival senil em situação
muito mais difícil.
Nosso
desafio é entender o jogo internacional em curso como parte do jogo interno que
mantém inalterada a dependência e o caráter do Estado brasileiro. Mostrar aos
trabalhadores esse jogo e aumentar sua confiança que tarefas progressistas
devem ser cumpridas por eles e não pelo Estado brasileiro.
É
sintomático da ilusão e desilusão da “razão de Estado” e não de classe para as
tarefas antiimperialistas como uma mesma Federação Única dos Petroleiros partiu
da comemoração das declarações antiprivatizações de Lula na China a criticar o
elogio de Lula e do governador Jerônimo Rodrigues (PT) em sua próxima escala da
viagem, nos Emirados Árabes onde essa petromonarquia reacionária anunciou
investimentos bilionários para continuar a privatização da
Petrobras na Bahia.
Como
mostrava Trótski em uma situação muito mais aguda, diante da Segunda Guerra
mundial, esse conflito de potências gera espaços para países dependentes, mas
que sua resolução integral depende do movimento de massas e da existência de
partidos revolucionários e anti-imperialistas:
“No
primeiro período da guerra, a posição dos países fracos pode chegar a ser muito
difícil. Mas, com o correr dos meses os imperialistas se tornaram mais e mais
fracas. A luta mortal entre eles permitirá aos países coloniais e semicoloniais
levantarem suas cabeças. É claro que isso também se aplica aos países
latino-americanos. Serão capazes de conquistar sua própria liberação se à
cabeça das massas se colocam partidos anti-imperialistas e sindicatos
verdadeiramente revolucionários. Não se pode escapar de trágicas situações
históricas por meio de evasões, frases ocas ou mesquinhas mentiras. Devemos
dizer às massas a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.” (“A luta
anti-imperialista é a chave da liberação” in Escritos Latino Americanos).
Fonte:
Por Leandro Lanfredi, em Esquerda Diário
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