quinta-feira, 6 de julho de 2023

Carlos Wagner: Bolsonaro saiu das páginas da história política do Brasil para a policial

Independentemente de como for escrito o epílogo da história da inelegibilidade do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), o conjunto de malfeitos cometidos durante o seu governo o expulsou da história política do Brasil para a policial. Nos segundos seguintes ao assumir o seu mandato, em 2019, ao contrário do que fazem todos os eleitos, que é começar a trabalhar pela sua reeleição, ele começou a articular um golpe de estado. É essa a história que conta o voto a favor da inelegibilidade do ex-presidente dado pelo ministro relator do processo, Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O presidente do partido do ex-presidente, Valdemar Costa Neto, acredita que seja qual for a situação de Bolsonaro ele tem bala na agulha para influenciar nas eleições municipais de 2024. Será?

Só o tempo responderá a essa pergunta. Não vou especular sobre esse assunto. Se fosse bom em adivinhação já tinha ganhado a Mega-Sena. A minha preocupação como repórter é outra. É saber como as coisas aconteciam entre as quatro paredes do governo Bolsonaro. Vou começar pelo episódio que gerou o processo de inelegibilidade no TSE. No dia 18 de julho de 2022, embaixadores de 72 países foram convocados para uma reunião com o então presidente Bolsonaro. Na reunião, ele denunciou, sem provas, a existência de fraude nas urnas eletrônicas e na Justiça Eleitoral. De quem foi a ideia dessa reunião? Saiu da cabeça do presidente? Olha, o presidente da República é cercado por uma série de assessores, incluindo advogados. Nenhum o avisou que estava cometendo um crime? O general da reserva Braga Netto era ministro da Casa Civil e fazia parte do círculo íntimo de líderes que rodeavam o presidente. Nas entrelinhas das matérias que temos publicado está lá com todas as letras a suspeita de que a ideia desse encontro tenha sido do general, que foi vice na chapa de reeleição de Bolsonaro. Tenho dito e escrito que todos esses crimes que são atribuídos ao ex-presidente não são só dele. Os seus ministros também são responsáveis. Até agora o único ex-ministro que se enrolou com a Justiça Federal foi o delegado da Polícia Federal (PF) Anderson Torres, que era titular da Justiça e Segurança Pública. Torres está em liberdade vigiada. Lembro aos colegas que o governo Bolsonaro montou um esquema para dar a impressão de que as Forças Armadas estavam governando o país. Colocou 6 mil militares da ativa, reserva e inativos na máquina administrativa federal. Baixou um decreto permitindo que o teto dos funcionários públicos federais, em torno de R$ 40 mil, pudesse ser furado ao somar o soldo dos militares nas Forças Armadas com o salário que recebiam no exercício do seu trabalho no governo. Essa gambiarra abriu caminho para que fossem erguidos acampamentos por bolsonaristas radicalizados na frente dos quartéis das Forças Armadas – há matérias na internet. Foi de um desses acampamentos, na frente do quartel-general do Exército em Brasília (DF), que partiram os radicais que em 8 de janeiro quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF).

As Forças Armadas nunca estiveram no governo. A construção perante a opinião pública da ideia de que os militares estavam no governo aconteceu ao acaso ou foi planejada para ter o apoio da população em um golpe de estado? Repetindo o que aconteceu em 1964, quando os militares deram um golpe e ficaram no governo até 1985. Pelo que tenho lido, salvo se algum colega publicou e não vi, pouco sabemos sobre a construção dessa farsa de que os militares haviam voltado ao poder. A construção dessa imagem foi importante porque serviu para manter mobilizados os bolsonaristas raiz depois da derrota do ex-presidente para Luiz Inácio Lula da Silva. E até hoje ainda existe a pregação de bolsonaristas de que as Forças Armadas pretendem dar um golpe de estado. Há outra história que precisamos olhar de perto. Trata-se da privatização da Eletrobras. O presidente Lula vive reclamando que o governo ficou com a maioria das ações, mas não tem direito a voto decisório. Para não ficar o dito pelo não dito é preciso lançar luzes nesse processo de privatização. Um dos especialistas nesse assunto é o ex-ministro de Bolsonaro e hoje governador de São Paulo (SP) Tarcísio de Freitas, Ele deu opinião ou participou do processo de privatização da Eletrobras? Insisto que o ex-presidente não fez todos os malfeitos sozinho. As pessoas que participaram do seu governo também têm a sua parcela nesses episódios, especialmente no Ministério da Saúde. Há um documento de 1,3 mil páginas com as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19 (CPI da Covid) que coloca as digitais de Bolsonaro e do Ministério da Saúde na morte de mais de 700 mil brasileiros pelo vírus.

É mais fácil analisar o que aconteceu no governo Bolsonaro como estivéssemos redigindo uma matéria sobre assuntos policiais. E facilita a vida do leitor. A relação do ex-presidente com os militares que estiveram no seu governo não tem nada a ver com ideologia, camaradagem ou qualquer outra coisa que não fosse dinheiro. Foi o orçamento secreto que manteve a fidelidade dos deputados, especialmente os do Centrão, ao governo de Bolsonaro. Seja lá para qual lado se olhar, vamos encontrar o dinheiro sendo o principal motivo das alianças, como no caso das pautas de costume, como o aborto.


Por que os bolsonaristas não fizeram manifestações? Por Rui Martins 


Havia um temor no ar: e se os bolsonaristas saíssem às ruas quando o Tribunal Superior Eleitoral decidisse pela inelegibilidade de Bolsonaro? Como agir caso os evangélicos se colocassem de joelhos nas rodovias, nas ruas e bloqueassem Brasília e as principais cidades? E se houvesse manifestações no Exterior? E se Deus interviesse como acontecia no Velho Testamento?

Ora, foram temores desnecessários. Nada ocorreu nas ruas e, se houve protestos, ficaram confinados às redes sociais, às fake news, às pregações nos púlpitos ou às conversas de pastores nas portas das igrejas, como constatou e conta o correspondente do jornal suíço Le Temps, da porta da igreja do Engenho Velho, em Salvador da Bahia. O pastor local, Antônio Marcos, contou mesmo ser eleitor de Bolsonaro, “pois ele defende os valores da família e respeita a palavra de Deus”.

Na falta de manifestações públicas nem nas portas das igrejas, conta ainda o correspondente do jornal suíço, ter circulado pela rede Instagram, um apelo do mais jovem deputado federal bolsonarista, o mineiro Nikolas Ferreira, para os evangélicos orarem pelo Brasil. Esse apelo foi mais tarde formalizado pelo deputado, para se transformar numa espécie de rede de oração noturna pelo ex-presidente e pelo Brasil.

Não se sabe dos resultados concretos dessa prática, porém essa cadeia de orações pode assegurar uma espécie de união entre os fiéis, a fim de manter vivo o culto pelo Messias crucificado pela inelegibilidade por oito anos.

Resistirá o movimento bolsonarista, que não tem o formato próprio de uma ideologia política mas é um subproduto de ideias e conceitos fascistas, ao passar dos longos oito anos, sabendo-se da volubilidade do eleitorado populista brasileiro? O janismo, exemplo de um movimento populista, embora tivesse conseguido mobilizar o eleitorado e criar o mito do combate à corrupção, valendo-se da simbologia da vassoura, durou alguns anos, mas não passou de um fogo de palha.

Jânio se deixou levar pelo desejo de ter plenos poderes e seu golpe da renúncia acabou por lhe ser mortal. Esperava uma mobilização popular que não houve. Porém, a história só se repete até aí: Bolsonaro foi derrotado nas eleições e foi condenado à inelegibilidade, sem que isso provocasse reações populares, e talvez tenha amargado pessoalmente a mesma decepção do Jânio Quadros.

Entretanto, o populismo janista era frágil por se basear apenas no seu prestígio pessoal e no seu carisma. Jânio não dispunha de um partido ou de uma estrutura de apoio e nem utilizou dos quatro anos do seu mandato presidencial para construí-la, ao provocar o choque abortivo da “renúncia” ao seu mandato.

Ora, o populismo bolsonarista pode parecer uma conquista pessoal, mas não é. Bolsonaro acabou sendo escolhido por ter um formato que se adaptava a um projeto maior, elaborado pela extrema direita norte-americana, contendo negacionismo e conspiracionismo como fatores desestruturantes da sociedade, ancorados num fundamentalismo religioso primário, capaz de substituir reivindicações sociais da vida cotidiana por ilusões espirituais e recompensas pós mortem.

Por isso, o populismo vivido por Bolsonaro nesta primeira fase, pode sobreviver encarnando-se em um (ou uma) outro líder com linguagem ou postura parecidas, desde que mantido o revestimento religioso. Zema e Michelle parecem, no momento, os mais capazes de herdar os 30% desse tipo de eleitores bolsonaristas. Em síntese, a extrema direita se tornou atraente para as camadas populares, com sua roupagem fundamentalista evangélica, seus slogans “Deus acima de tudo”, “Deus, Pátria e Família” e mobilizam suas forças, entre salmos e hinos, contra o pecado, contra os homossexuais, contra o aborto e ignoram as reivindicações sociais.

Porém, essa versão religiosa fundamentalista da extrema direita brasileira tem seu calcanhar de Aquiles. Na prática, ela é inoperante. E com isso não contava Bolsonaro, que havia tudo planejado: aliança com os militares, armas para o povo, discurso do ódio e indicação dos inimigos a serem derrubados.

Por mais desvirtuada que tenha sido a mensagem evangélica, ela continua sendo pacífica. A principal arma continua sendo a oração. Ora, oração com ou sem jejum não derruba governo e nem faz revolução.

De nada adiantaram os apelos diretos ou indiretos de Bolsonaro para seus fiéis partirem para a luta, destruírem seus inimigos no STF e o ajudarem a tomar o poder.

Os evangélicos podem ser manipulados, enganados, apatriotados mas, e isso é inerente à sua formação ideológica ou religiosa, eles são pacíficos. E foi aí que falhou o projeto insurrecionista de golpe de Estado armado do ex-presidente Bolsonaro. Seus “soldados” não eram de guerra.

E lá foram eles, no dia 8 de janeiro, para tomar as sedes do governo, do parlamento e do judiciário. Mas ninguém tinha nem estilingue. Podiam quebrar coisas, mas seriam incapazes de matar. E foi assim que Bolsonaro armou o povo, tomou os prédios, mas perdeu a guerra. Seus seguidores tinham se tornado fanáticos, mas são incapazes de matar porque Cristo proíbe. Ainda bem. Exército e seguidores de Bolsonaro formavam a enorme tropa que atacou Brasília, dirigida por covardões escondidos nas areias de Orlando, nos EUA.

E por que não houve manifestações por Bolsonaro, ao ser declarada sua inelegibilidade? Porque não houve patrocinadores que pagassem os ônibus, distribuíssem sanduíches e lanches, montassem barracas com colchões e cobertores, como antes diante dos quartéis!


Fonte: Histórias Mal Contadas/Observatório da Imprensa


 

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