'Não é esmola, é reparação histórica': os quilombolas visitados por
Lula em campanha que esperam demarcação há 18 anos
Durante a campanha eleitoral de 2022, o então
candidato e agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou um quilombo
no interior de Minas Gerais e postou foto em que ele e a agora primeira-dama
aparecem sorridentes ao lado de integrantes da comunidade.
Em junho, Lula voltou a falar deste quilombo,
quando lançou o Plano Safra para Agricultura Familiar, no Palácio do Planalto.
O presidente mencionou visita durante mandato anterior.
"Quando era presidente, a gente reconheceu um
quilombo na cidade de Contagem. Eu fui lá o ano passado. Esse quilombo não foi
legalizado ainda. (...) passaram 15 anos e a gente não conseguiu legalizar”,
disse Lula.
Arturos, o quilombo que ficou na memória de Lula,
foi criado há cerca de 133 anos. Ele é considerado uma das comunidades
originais do país e reconhecido como Patrimônio Imaterial pelo Instituto
Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).
Hoje, vivem naquela propriedade coletiva e no seu
entorno 180 famílias, em um total de 700 pessoas, com uma cultura e folclore
próprios, herdados de seus ancestrais de origem africana, passando seus costumes,
músicas, danças e ritos de geração em geração.
Eles aguardam, há quase duas décadas, a
regularização fundiária oficial — que os líderes argumentam que protegeria os
quilombolas, por exemplo, de perder as terras para outros grupos e facilitaria
aplicação de políticas públicas no local.
A comunidade foi certificada como quilombola pela
Fundação Cultural Palmares em 2004 — o primeiro passo no processo de titulação.
A etapa seguinte geralmente é ter um processo
aberto no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o
principal órgão que gere esse processo, embora outros, como o Ministério
Público Federal, possam estar envolvidos.
No Incra, os passos incluem a Elaboração do
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI), publicação desse
relatório, homologação pelo governo (reconhecimento do território como
quilombola pelo poder federal), desapropriação (tirar outros grupos da terra
quando necessário), e por fim, a chamada regularização fundiária.
Para os Arturos, o processo só começou de fato no
ano seguinte da certificação pela Fundação Cultural Palmares, em 2005. Hoje, 18
anos mais tarde, é considerada a principal reivindicação da comunidade, e,
segundo o Incra, não é possível saber quando e se esse processo será concluído.
O gestor da associação que administra o quilombo
Arturos e um dos articuladores da campanha pela titulação, João Pio de Souza,
de 59 anos, cobrou agilidade do presidente.
“Estamos sofrendo especulação imobiliária e
queremos nosso direito de preservar a sobrevivência e tradições — algumas delas
que só existem aqui. Mas o processo é burocrático, o que é correto, mas poderia
ser mais rápido. Dissemos isso ao Lula”, afirmou.
Defensores da regularização de terras apontam que
ela é fundamental para a garantia de direitos às comunidades quilombolas já
previstas na Constituição e que representam uma segurança para as comunidades.
Críticos das demarcações dizem que elas podem
violar direito à propriedade privada ou ter um suposto impacto negativo no
desenvolvimento econômico e disputas territoriais com outros grupos.
·
1,3 milhão de quilombolas no
Brasil
A situação dos Arturos não é incomum. De acordo com
o IBGE, existem atualmente 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados
e 4.859 comunidades fora de terras oficialmente delimitadas. Este número, quase
dez vezes maior, está em revisão, a partir de dados coletados recentemente.
Apesar desta contagem, uma dúvida persistia sobre
essa população. Não havia até agora estimativas oficiais de quantos quilombolas
vivem no Brasil.
Isso mudou com a divulgação pelo IBGE nesta
quinta-feira (27/8) de parte dos resultados iniciais do Censo 2022, o primeiro
a contar os quilombolas na história do país.
Há mais de 1,3 milhão de pessoas autodeclaradas
quilombolas no Brasil, segundo esses dados.
Quase nove em cada dez quilombolas (87,4%) vivem em
territórios ainda não oficialmente titulados, como o quilombo Arturos, enquanto
só 12,6% estão em territórios delimitados.
Marta Antunes, responsável pelo Projeto de Povos e
Comunidades Tradicionais do IBGE, diz que os resultados do Censo superaram as
expectativas dos pesquisadores. Eles antes baseavam seus conhecimentos apenas
em registros administrativos do Cadastro Único e os dados de vacinação
quilombola do DataSUS, explica Antunes.
As informações do IBGE mostram, por exemplo, que a
região Nordeste concentra mais de dois terços desta população (veja mais
detalhes abaixo).
Que ali estivesse boa parte dos quilombolas já era
esperado pelos pesquisadores, porém o índice de mais de 60% chamou atenção dos
especialistas ouvidos pela reportagem.
Surpreendeu, ainda, a existência de 55 municípios
com mais de 5 mil quilombolas e a presença deles em 1.696 do total de 5.568
municípios do país, diz Antunes.
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'Não é esmola, é reparação
histórica'
Os Arturos compõem um grupo familiar que descende
de Camilo Silvério da Silva, que chegou ao Rio de Janeiro em um navio negreiro
vindo de Angola em meados do século 19.
Logo após a chegada, Camilo foi enviado a Minas
Gerais para trabalhar num povoado situado na Mata do Macuco, antigo município
de Santa Quitéria, hoje Esmeraldas. Lá, trabalhou nas minas e como tropeiro nas
lavouras. Casou-se com a escrava alforriada Felismiba Rita Cândida, com quem
teve seis filhos.
Entre os irmãos, Artur Camilo Silvério foi o que
mais prosperou. Nasceu em 1885, época da Lei do Ventre Livre, que determinou
que os bebês de mulheres escravizadas não teriam o mesmo destino que elas, e
casou-se com Carmelinda Maria da Silva.
O casal teve 10 filhos e se estabeleceu em
Contagem, na localidade conhecida então conhecida como Domingos Pereira, onde
adquiriram a propriedade na qual ainda vivem seus descendentes.
“Um pedaço de terra, para boa parte do Brasil, é
para gerar riqueza, para pôr no mercado. Para nós, é sobrevivência e cultura. A
titulação não é um pedido de esmola para o Estado — é nosso direito e uma
reparação histórica por todos os anos de escravidão”, diz João Pio, que além de
articulador da comunidade, também é superintendente de Política para a Promoção
da Igualdade Racial da Prefeitura Municipal de Contagem.
O Incra disse à BBC News Brasil que o processo de
regularização da Comunidade Quilombola dos Arturos está em fase de elaboração
do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
“Trata-se do levantamento de informações cartográficas,
fundiárias, agronômicas, socioeconômicas, ambientais, históricas, etnográficas
e antropológicas, que são obtidas em campo, com a comunidade e com outras
instituições públicas e privadas. O relatório tem como objetivo identificar os
limites de cada território.”
A autarquia afirmou, ainda, que não é possível
definir o tempo médio para concluir processos desta natureza.
“A atividade é complexa, composta por várias
etapas, e depende de informações de terceiros — particulares e públicos”, disse
em nota, reiterando que o processo de identificação e a regularização fundiária
não é competência exclusiva do Incra, mas também envolve União, Distrito
Federal, dos estados e dos municípios.
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Um processo 'tortuoso e
longo'
A regularização de terras, avalia Milene Maia,
coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto
Socioambiental (ISA), é fundamental para a garantia de direitos às comunidades
quilombolas já previstas na Constituição Federal de 1988.
“A titulação permite uma segurança das comunidades
em relação à proteção e ao uso do seu território. Uma vez que o seu território
não está oficialmente reconhecido, isso possibilita conflito com terceiros que
disputam essa área.”
Outro fator importante, lembra João Pio, é que, com
a titulação, a população passa a ter gerenciamento completo do seu território,
podendo escolher, por exemplo, como deseja fazer o cultivo agrícola e como
organizar as escolas dentro das comunidades.
O processo para conseguir a regularização das
terras, no entanto, é caracterizado por Maia como “tortuoso e longo”.
“A revisão da instrução normativa é urgente,
inclusive é uma demanda do movimento quilombola, para que o executivo possa, em
especial o Incra, revisar os passos e agilizar a parte burocrática. Temos mais
de 1.800 processos abertos no Incra que também não avançam, o que mostra como é
gritante a morosidade do processo de titulação.”
No governo anterior, o ex-presidente Jair Bolsonaro
se posicionava de forma abertamente contra a titulação de terras quilombolas.
Meses antes de ser eleito, Bolsonaro prometeu que
não alocaria recursos financeiros à causa e se referiu a um integrante da
comunidade com uma medida de peso usada para animais.
“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve
lá pesava sete arrobas. Eles não fazem nada. Eu acho que nem para procriador
ele serve (...) Pode ter certeza que, seu eu chegar lá, não vai ter dinheiro
para ONG (…). Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para
quilombola”.
A promessa foi parcialmente levada em frente: seu
governo emitiu apenas 12 títulos de terras quilombolas, a média histórica mais
baixa de 1995, segundo divulgou o Jornal da Cultura, com dados obtidos pela Lei
de Acesso à Informação.
Até agora, com um semestre do novo governo Lula,
foram contabilizadas três titulações parciais, 21 Portarias de Declaração (um
passo inicial no processo) e três Relatórios de Identificação e Delimitação
(RTID) de Terras Quilombolas. É o que aponta o levantamento realizado pela
Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP).
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Concentração no Nordeste
Na avaliação de Fernando Damasco, gerente de
Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do IBGE, o conhecimento sobre a
diversidade territorial pode ajudar na criação de políticas públicas que
atendam as necessidades diversas das diferentes comunidades.
“Esse panorama certamente permitirá o
aperfeiçoamento da atuação dos órgãos que executam políticas públicas
destinadas aos quilombolas, aumentando a eficácia e a precisão das ações e o
direcionamento de investimentos para melhorar as condições de vida dessa
população.”
Embora a primeira versão não conte com detalhes
como renda e escolaridade desses grupos, há informações inéditas sobre seu
recorte espacial.
O censo mostra que no Nordeste residem 68,19% dos
quilombolas do país.
A Bahia concentra 29,90% desta população e o
Maranhão vem a seguir, com 20,26%. Juntos, os dois estados abrigam 50,16% da
população quilombola do país.
O Censo também afirma que há pelo menos um morador
quilombola em 473.970 domicílios pelo Brasil.
Dos 5.568 municípios do país, 1.696 tinham
moradores quilombolas, mas destes, apenas 326 tinham territórios delimitados.
“Mapeando as populações quilombolas no Brasil,
trazemos visibilidade e reconhecimento do Estado para essas comunidades. Isso
possibilitará a implementação de políticas públicas mais eficazes em níveis
nacional, estadual e municipal”, diz Maia.
De acordo com a especialista, a dificuldade no
enfrentamento da covid-19 mostrou quão prejudicial a falta de informações pode
ser na hora de criar planos específicos para comunidades originárias — algo que
pode ser evitado com dados precisos.
Para João Pio, a expectativa é que políticas
públicas alcancem os territórios das comunidades tradicionais.
“Em todos os campos: saúde, educação, a geração de
renda, a pauta da agricultura familiar, que caracteriza muitas comunidades
quilombolas, e da educação — inclusive com acesso ao ensino superior. E [o
Censo] é importante sobretudo para nós, das comunidades, que com mais
conhecimento sobre os quilombos poderemos revindicar a garantia e proteção dos
nossos direitos.”
Fonte: BBC News Brasil
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