EUA: A guerra no DNA de uma sociedade
Em junho deste ano, a jornalista suíça Maurine
Mercier encontrou vários cidadãos dos Estados Unidos lutando na Ucrânia sob o
disfarce de trabalho humanitário. “Todos eles são veteranos, ex-soldados que
lutaram em todas as guerras estadunidenses recentes: Guerra do Golfo, Iraque,
Afeganistão”, relatou. Muitos sofrem de transtorno de estresse pós-traumático, levando os
fantasmas incorporados de conflitos passados e feridas psíquicas profundas para a conflagração geopolítica mais recente.
Um veterano entrevistado por Mercier admite que é
viciado em combate, lançando-se em missões suicidas na linha de frente. Ele já
matou 13 pessoas na Ucrânia. A proximidade da morte permite-lhe sentir-se vivo,
o choque da adrenalina transporta-o para “este belo espaço escondido”, onde “as
cores são mais vivas” e os sons são “diferentes, vibrantes”. De volta para
casa, ele experiencia a falta de um senso de pertencimento. Mas na Ucrânia, “há
alguma coisa”.
Em um nível fundamental, esses guerreiros sem leme
são o símbolo de uma sociedade viciada em guerra. Eles refletem as tensões que
o autor e ativista antiguerra Norman Solomon revelou em seu brilhante novo
livro, War
Made Invisible [Guerra Invisibilizada], que examina
as profundas causas e custos do intervencionismo dos EUA. Solomon oferece uma
perspectiva potente para entender as crises geopolíticas, bem como os custos
invisíveis, mas duradouros, do militarismo.
À medida que a guerra na Ucrânia avança, Solomon
destaca três facetas subjacentes do poder dos EUA que são especialmente úteis
para interpretar nosso momento atual: uma intelligentsia incorporada,
uma economia que exporta violência e a infraestrutura de um império global.
·
Mobilizando mentes
O livro de Solomon revela a proximidade
perturbadora entre a classe dominante e a mídia corporativa desde a Guerra do
Vietnã, revelando como o quarto poder sustenta as premissas que tornam possível
a intervenção na Ucrânia e em outros lugares. “A essência da propaganda é a
repetição”, argumenta. “As frequências de certas premissas se amalgamam em uma
espécie de ruído branco”, condicionando o povo dos EUA a apoiar operações militares
que nunca veem nem entendem de verdade.
Isso nunca foi tão claro como na invasão do Iraque
em 2003. Os oficiais da coalizão militar liderada pelos EUA estavam preocupavam-se em
particular com que os jornalistas percebessem que não
havia “nenhum ‘fato decisivo’” que “‘provasse’ que Saddam [Hussein] deveria ser
combatido”. Apesar disso, o New York Times reverberou
falsas alegações de que o Iraque possuía armas nucleares e aplaudiu ativamente
o esforço de guerra. Seu colunista, Thomas Friedman, até defendeu
o envio de soldados “de casa em casa, de Basra a Bagdá”, em uma
exibição nua de poderio militar, dizendo aos iraquianos para “chupar”.
De fato, em todo o cenário da mídia, intelectuais
incorporados mobilizaram suas canetas para solidificar o apoio público à
guerra. As redes ABC, NBC, CBS e PBS,
todas distorceram suas coberturas: nas duas semanas anteriores à invasão, as
redes transmitiram apenas um
de 267 convidados dos EUA que questionaram a
guerra. A MSNBC até cancelou o show de Phil Donahue depois que
o eminente âncora questionou os motivos da intervenção do governo Bush.
Em vez de encorajar uma reflexão sustentada, a
mídia corporativa reduziu a guerra a espetáculos sem sangue de poder nacional e
conquistas tecnológicas. Solomon observa que o Pentágono “incorporou” cerca
de 750 jornalistas, integrando-os diretamente na arquitetura do
esforço de guerra.
Depois de promover a invasão do Iraque, muitas das
mesmas vozes agora propõem mais intervenção da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) na guerra contra a Ucrânia. O New York Times chama
o “apoio dos Estados Unidos à Ucrânia” de “teste de
seu lugar no mundo no século 21”. A maioria dos meios de
comunicação parece ignorar as semelhanças entre as duas guerras de agressão. No
entanto, os paralelos permanecem inescapáveis: em maio, o ex-presidente George
W. Bush erroneamente denunciou
o presidente russo, Vladimir Putin, por sua
“invasão brutal e totalmente injustificada do Iraque”, antes de
esclarecer que se referia à Ucrânia.
Ao fazer eco às autoridades estatais, a mídia
corporativa dá à propaganda do governo a aparência de convicção privada e
verdade objetiva. “No geral, os EUA foram condicionados a aceitar guerras em
andamento sem saber realmente o que está sendo feito com pessoas que nunca
veremos”, conclui Solomon.
Em particular, a cobertura da imprensa sobre a
guerra na Ucrânia projeta a ilusão de consenso, mesmo num contexto em que o apoio
público para o reforço militar da Otan declina. Ao
apagar a dissidência, os conglomerados de mídia escondem os terríveis custos da
guerra e do sistema imperial que a financia – lucrando com o conflito que,
pelas narrativas que vendem, torna-se invisível.
·
Miséria mercantilizada
De muitas maneiras, o militarismo é uma forma
de escola de guerra. “As gordas margens de lucro dos
fornecedores do Pentágono e agências afins”, explica Solomon, exacerbam a
desigualdade econômica ao mesmo tempo em que retiram e redirecionam recursos de
programas sociais. Com efeito, a guerra é perpétua porque é lucrativa,
enriquecendo uma elite firmemente entrincheirada no complexo
militar-industrial.
Confirmando a tese de Solomon, o Departamento de
Defesa publicou
um estudo histórico de empresários do setor militar em abril que
registraram “excelentes retornos de mercado”, incluindo um aumento nas margens
operacionais (lucro como percentual da receita) de 7-9 para 11-13% nas últimas
duas décadas. Os fabricantes de armas superaram seus pares comerciais por causa
de contratos governamentais que garantem lucros e fluxo de caixa.
Apesar de um salto nos dividendos e recompras de
ações de 3,7% para 6,4%, o setor na verdade diminuiu o investimento em
operações comerciais. As empresas se recusaram a reinvestir os ganhos em
pesquisa ou ações de capital, canalizando a receita para os acionistas. Os
auditores compararam a transferência massiva de recursos para os investidores a
comer “a semente [de replantio] do milho” – “prejudicando as
perspectivas futuras ao consumir recursos críticos em excesso pelos benefícios
de curto prazo que eles oferecem”.
Além de abocanhar as receitas do governo, os
pesquisadores também reclamam que as empresas se envolvem em desavergonhados
lucros de guerra. Ex-diretor de preços no setor de defesa, Shay
Assad relata que o preço “extorsivo que ocorre é inescrupuloso”
e generalizado. A Lockheed Martin e a Boeing notoriamente cobraram o governo
acima do preço pelo míssil PAC-3, obtendo lucros de 40%, em vez dos 10% a 12%
legais, de acordo com um relatório do “60 Minutes”. Durante a Guerra do Iraque,
o TransDigm Group até se recusou a fornecer válvulas críticas para os
helicópteros Apache antes de aumentar os preços em 40% – uma prática que os
auditores chamam de “extorsão”.
A concentração do poder da indústria nas mãos dos
conglomerados de defesa e a guerra na Ucrânia encorajam a manipulação de
preços. “Para muitas dessas armas que estão sendo enviadas para a Ucrânia
agora, há apenas um fornecedor”, disse o ex-diretor de preços de defesa Assad
ao “60 Minutes”. “E as empresas sabem disso.”
Enquanto isso, empresários do setor militar estão
usando a Ucrânia e outros mercados estratégicos como campos de teste para
sistemas de armas. O major-general Robin Fontes e Jorrit Kamminga – que dirigem
a empresa de consultoria de armas RAIN – argumentam na revista National
Defense que “A Ucrânia
é um laboratório” para o futuro da guerra: “um esforço central,
implacável e sem precedentes para ajustar, adaptar e melhorar os sistemas
habilitados para [inteligência artificial]”. Mobilizando softwares de
IA, empresas como a Planet Labs e a BlackSky Technology fornecem inteligência
aos soldados em tempo real, funcionando como extensões dos EUA no esforço de
guerra ucraniano, criando um ambiente de combate fluido e rico em informações.
Este mês, o governo Biden aprovou até mesmo as
bombas de fragmentação para a Ucrânia, depois de ter sugerido que seu uso
constituía um “crime de
guerra”. As forças ucranianas e russas já as
empunham em combate, violando uma convenção internacional que proíbe o
uso de explosivos indiscriminados. Em conflitos anteriores, os investigadores
alegaram que as empresas ocidentais fabricavam essas bombas em formatos de
brinquedos para atrair
e mutilar civis – incluindo crianças.
No entanto, para os fabricantes de armas, o Oriente
Médio continua sendo o laboratório de armas por excelência. Israel foi o
primeiro país estrangeiro para receber o avião
F-35 Lightning, e seus pedidos financiaram o desenvolvimento do caça. Em 2014,
as forças israelenses destruíram
áreas inteiras da Palestina com os jatos enquanto
ajudava a Lockheed Martin a aprimorar seu design. Durante a ofensiva, os EUA
reabasteceram a munição de Israel imediatamente após bombardearem
uma escola primária, permitindo que suas forças excedessem o poder de
fogo do Hamas em uma proporção de 440 para 1.
Pouco antes de seus ataques de maio de 2023, os
pilotos israelenses realizaram um “exercício
em larga escala” em F-35s com seus pares americanos na Base Aérea
de Nellis, no estado de Nevada. “É uma rara oportunidade para combatentes de
ambos os países integrarem nossas capacidades mais avançadas”, exclamou o coronel Jared Hutchinson, o comandante dos EUA que supervisiona
a iniciativa.
Posteriormente, Israel bombardeou Gaza com
artilharia dos EUA, incluindo uma bomba Boeing GBU-39 que destruiu
um prédio de apartamentos – matando vários
civis, incluindo uma jovem no momento em que se preparava para seu casamento. A
campanha militar danificou 2.943 unidades habitacionais, empregando ataques
aéreos “desproporcionais” que a Anistia Internacional considerou crimes de
guerra.
Em vez de minar as relações, os fabricantes de
armas dos EUA e de Israel transformaram os crimes em argumentos publicitários.
Apenas um mês depois, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, a Elbit
Systems e a Israel Aerospace Industries participou
do Paris Air Show para conquistar novas vendas, gabando-se de
que suas armas tinham passado pela “comprovação em combate”.
Significativamente, o jornal Haaretz chama os territórios
ocupados de “salas de
aula” para os militares “testarem seus equipamentos”,
pesadamente subsidiados pela ajuda dos EUA.
O dinheiro continua afluindo. Solomon relata que os
fabricantes de armas gastaram US$ 2,5 bilhões em lobby nas últimas duas
décadas, financiando
as campanhas de legisladores importantes, como o presidente do
Comitê de Serviços Armados da Câmara, Adam Smith.
Ao globalizar o complexo militar-industrial, a
classe dominante tornou a guerra ao mesmo tempo permanente e distante,
sustentando a formidável capacidade bélica do império dos EUA com conflitos
estrangeiros. Aliados como a Ucrânia e Israel se tornam mercados e campos de
vendas para equipamentos testados em batalha. A turbulência geopolítica subscreve
a prosperidade dos conglomerados enquanto consome recursos que deveriam ser de
programas sociais e para os pobres.
·
Imperialismo voluntário
Finalmente, a classe dominante torna a guerra
invisível usando recrutas anônimos e contratados privados para manter a
infraestrutura difusa de um império global. Na década de 1970, os militares
fizeram a transição para uma “força totalmente voluntária”, para sugar a
energia do movimento antiguerra e isolar as forças armadas do escrutínio. “O
recrutamento do exército aprendeu a vender serviço militar junto com sabão e
refrigerantes no mercado de consumo”, observa
a historiadora Beth Bailey.
Solomon enfatiza que os recrutadores têm se
aproveitado das pessoas mais vulneráveis, prometendo que “se alistar significa
abrir portas para melhores oportunidades”. Ao introduzir incentivos econômicos
e eliminar o recrutamento, os oficiais criaram uma classe guerreira isolada do
público em geral. O Pentágono agora a mobiliza para guerras que a maioria do
público dos EUA nunca testemunhará, minimizando preventivamente a reação
política.
À medida que a desigualdade econômica aumenta, um
analista da Brookings Institution ressalta que os militares são “um dos últimos
bastiões da mobilidade social da classe média”, atraindo
recrutas com assistência médica e mensalidades universitárias
gratuitas. No entanto, o Exército enfrenta escassez crônica de pessoal,
incentivando os oficiais a visar crianças
a partir dos 12 anos, bem como grupos marginalizados, incluindo comunidades
indígenas no Canadá. Nos últimos anos, os militares têm buscado
recrutas oferecendo cidadania a estrangeiros, reforçando sua presença nas redes
sociais e até mesmo anunciando
brindes falsos do Xbox para atrair os jovens
para o seu site.
Solomon também aponta que esse pessoal supervisiona
uma intrincada rede de cerca
de 750 bases em todo o mundo, permitindo que
as forças armadas exercitem sua musculatura em todos os continentes. Além de
facilitar mobilizações em larga escala, as instalações militares estrangeiras
possibilitam operações secretas e até manipulações políticas.
Repetidas vezes, bases na América Latina
facilitaram golpes contra governos de esquerda. Após o presidente equatoriano
Rafael Correa ter
fechado uma instalação em Manta, seu sucessor
levantou acusações judiciais espúrias contra ele, enquanto, em paralelo, recebia de
braços abertos as forças dos EUA de volta no
país. Em 2018, o Ministério da Defesa do Equador chegou a anunciar planos para
permitir que militares dos EUA usem as Ilhas Galápagos para operações, chamando
o arquipélago de “porta-aviões
natural”.
As bases estrangeiras também permitem que os EUA
assegurem o controle sobre recursos estratégicos. Em nenhum lugar isso é mais
verdadeiro do que no Peru, país rico em minerais, onde em dezembro passado
autoridades dos EUA apoiaram
a deposição do presidente Pedro Castillo, um populista
que estava promovendo a soberania econômica. Sua rival Dina Boluarte iniciou
uma onda de repressão que matou
mais de 60 civis, culminando no que o presidente da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos chamou de “massacre” contra a população indígena em Ayacucho.
Recentemente, Boluarte autorizou a
entrada de 1.242 soldados estadunidenses, enviando um sinal
aterrador aos manifestantes. Citando a mudança de
regime no Peru, um coronel treinado pelos EUA na Colômbia também anunciou planos
em maio de “defenestrar” o presidente esquerdista de seu país.
Na África e no Oriente Médio, as bases funcionam
como plataformas de armas multiplicadoras de força para ataques de drones.
Desde 2007, a guerra aérea dos EUA na Somália contra o al-Shabab matou pelo
menos 90 civis, mas o Pentágono reconhece apenas cinco das
vítimas e se recusa a indenizar suas famílias.
Apesar das alegações de precisão, a precisão
indiscriminada da guerra de drones aumenta os conflitos regionais. Em 2017, os
EUA ajudaram por engano autoridades nigerianas a bombardear
um campo de refugiados que o próprio governo
construiu, matando mais de 160 civis. Drones até bombardearam casamentos no Iêmen e no
Afeganistão. Mais recentemente, um
drone dos EUA permitiu que a França matasse “membros de grupos terroristas
armados” em Bounti, Mali. Mais tarde, as forças das Nações
Unidas descobriram que as vítimas eram membros de outra festa
de casamento.
Os formuladores de políticas dos EUA
invariavelmente retratam seua dispositivos militares “além do horizonte”, como
bases e drones, como um imperativo de segurança. No entanto, como Solomon
argumenta, eles na verdade fomentam a insegurança, alienando comunidades em
todo o mundo e alimentando ciclos de respostas violentas.
Essas consequências não são apenas invisíveis, mas
duradouras. Nesta primavera, a Brown University publicou um estudo estimando
que os conflitos pós-11 de Setembro mataram
mais de 4,5 milhões de pessoas. Sob as sanções
dos EUA, observa o artigo, a maioria dos afegãos sofre de desnutrição e está
morrendo de causas relacionadas à guerra em taxas mais altas do que nunca.
Enquanto os veteranos americanos da guerra no
Afeganistão lutam na Ucrânia, o espectro dos conflitos do passado assombra o
presente. Isso nos deixa com o que Salomon chama de cicatrizes profundas e
“ausências trágicas”: mentes envenenadas e corpos despedaçados, populações
famintas e terras semeadas com munições. Do Afeganistão à Ucrânia, os mesmos
argumentos, armas e soldados estão colhendo os mesmos resultados. Mais de duas
décadas depois de invadir o Oriente Médio, os EUA ainda anunciam a paz ao longo
de uma via circular que só pode conduzir à guerra.
Fonte: Por Jonathan Ng para Truthout | Tradução:
Maurício Ayer, para Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário