Big Techs e Educação: o fim do professor?
A erosão da profissão docente é um fenômeno que vem
se desenvolvendo há décadas, principalmente com a aceleração do capitalismo, e
é um tema que já vem sendo discutido na Academia e na mídia. Diversas
transformações nas últimas décadas vêm determinando diretamente mudanças nos
papéis dos professores, algumas diretamente educacionais (como a
universalização da educação básica e a ampliação da influência de organismos
internacionais nas políticas educacionais nacionais) e outras socioeconômicas
(como a globalização ou a rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e a
expansão de seu uso no dia-a-dia).
Atualmente, neste contexto, as fundações
filantrópicas com alcance global estão adquirindo um papel especial na formação
de docentes e na formação dos papéis dos professores. Tendem a promover um
discurso sobre a (in)eficiência da escola e dos professores, o que favorece a
sua entrada nas escolas públicas, incorporando no dia-a-dia escolar tecnologias
educativas que eles próprios desenvolvem e financiam, como as plataformas
digitais na educação.
Este artigo argumenta que as corporações de
tecnologia estão moldando um novo docente. Para isso, fazemos
uma leitura sobre pedagogia seduzida pelo mercado, apresentamos brevemente duas
das grandes plataformas digitais que estão entrando na sala de aula (Byju’s e
Khan Academy) e analisamos como esse processo afeta a reconfiguração dos
professores.
·
A pedagogia seduzida pelo
mercado
Compreender as incursões no mundo educacional do
mercado e da ideologia neoliberal é fundamental para refletir sobre os impactos
e as mudanças que são promovidas no campo da pedagogia. Um dos argumentos que
sustenta a entrada das plataformas digitais na educação é a suposta necessidade
de personalizar as trajetórias de aprendizagem de cada estudante.
A personalização visa oferecer serviços
educacionais sob medida para que cada aluno-consumidor possa
alcançar uma experiência de aprendizagem adaptativa (adaptative
learning). Isso requer o uso de algoritmos, mineração de dados, análise de
aprendizado e inteligência artificial (IA). Algumas das ferramentas que foram
criadas nesse sentido são: a customização dos módulos de aprendizagem, o
alinhamento dos conteúdos que cada aluno deve trabalhar com base em suas
necessidades específicas e o uso de chatbots, que incentivam, interagem e fornecem feedbacks
imediatos aos estudantes sobre seu desempenho e seu nível de avanços, através
de uma comunicação em linguagem natural, mantendo os alunos envolvidos em
diferentes níveis.
A personalização pode ser expandida com novas
contribuições da IA. Isso permite a extração e processamento de uma quantidade
muito elevada de dados, o que possibilita, entre outros aspectos, a tomada de
decisões com base em um maior número de elementos. Por meio dos últimos avanços
em IA, as plataformas aprenderão, por exemplo, o que cada aluno mais ou menos
desenvolveu em seu processo de aprendizagem e, com base nas informações de
milhares de outros alunos, saberão prontamente qual conteúdo oferecer. Ainda
assim, até o momento, a tecnologia desenvolvida é incipiente. No entanto, todas
as decisões baseadas em dados respondem a uma lógica de eficiência escolar que
não é necessariamente uma lógica pedagógica.
Junto a isso, a política de marketing das
plataformas digitais na educação é bastante agressiva, embora aparentemente
amigável. Seu interesse em seduzir a clientela é detectado no uso de imagens de
jovens sorridentes de diferentes origens étnicas e culturais, bem como famílias
heterossexuais felizes, com textos sempre muito positivos e depoimentos de
usuários e especialistas, destacando valores supostamente universalizáveis do
mainstream neoliberal, como equidade, inclusão e diversidade. Essas plataformas
são populares entre quem estuda em casa e têm grande potencial de mercado na
América Latina, refletido em seu uso generalizado em diferentes países do
continente, bem como nas estratégias de marketing que oferecem para sua
adaptabilidade aos diferentes idiomas.
As plataformas digitais na educação tendem a
ampliar lógicas narrativas que se sustentam na possibilidade de romper com o
ensino tradicional e o modelo classes de aulas, incorporando novos valores e
ensinando as habilidades necessárias no século XXI. Argumenta-se que isso
permitiria, finalmente, aproximar ensino e entretenimento, garantindo melhores
resultados educacionais. Há uma década, Gingrich (2014) já encorajava que
projetos pioneiros como Khan Academy e Coursera, hoje amplamente difundidos,
seriam mais parecidos com a Netflix do que com as antigas lousas.
As empresas digitais globais que atuam nessa área
tiveram um crescimento espetacular na última década, oferecendo produtos e
serviços de alta qualidade gráfica por meio de plataformas digitais, incluindo
conteúdo educativos para educandos, suas famílias, professores, escolas e
outras empresas. Seus negócios incluem um longo repertório de fórmulas voltadas
para um público amplo e diversificado. Os efeitos pedagógicos desses produtos
já estão sendo estudados, e parte do setor educacional parece defender uma
incorporação acrítica devido à suposta eficiência das plataformas para oferecer
conteúdo.
O que é certo é que esse número crescente de
ferramentas está sendo desenvolvido em um contexto de mercado com alto
potencial de lucro. O modelo típico é o das EdTechs: empresas de
base tecnológica em rápido crescimento (startups) que se desenvolvem no
campo das tecnologias educacionais. O capitalismo digital entrou fortemente
pela mão das empresas EdTech, que começam a ser difíceis de mapear
(Saura, 2021; Williamson & Hogan, 2020).
Big
Tech ou gigantes tecnológicos é uma categoria analítica
que se refere às corporações mais importantes do mundo, que operam por meio da
monopolização de serviços e, portanto, têm avançado na configuração dos futuros
digitais dos sistemas educacionais. É importante diferenciar entre os gigantes
da tecnologia dos EUA (Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) e os baseados
na China (Alibaba, Baidu, Huawei ou Tencent). É comum que esses atores
políticos privados atuem pela lógica da expansão global para moldar visões cada
vez mais simplistas e populistas da IA, e o fazem apresentando a IA como um
avanço democrático orientado para a justiça social, como exemplificado pela aliança
entre Microsoft e Abra AI. (Saura, 2023: 3)
Segundo o Holon IQ, os fundos de investimento
investiram US$ 10,6 bilhões em empresas em 2022, 49% a menos que em 2021.
Apesar disso, o investimento aumentou 14 vezes em 12 anos e essas empresas têm
alta incidência em todas as facetas do processo educacional, desde o
desenvolvimento de materiais didáticos para formação de professores e
substituição do ensino universitário em formatos digitais.
Empresas como a estadunidense Age of Learning ou a
chinesa 17zuoye disputam esse mercado e têm captado investimentos de grande
escala. Além da disputa com o mercado editorial tradicional, o campo da
personalização na educação faz fronteira com aplicações de mineração de dados e
de análise de dados de aprendizagem (learning analytics application),
que possuem alto potencial lucrativo:
(…)
a adoção contínua de inteligência artificial na educação regular ao longo da
década de 2020 lançará a datificação em uma escala sem precedentes. É
inegável que todas essas formas díspares de inteligência artificial (do
aprendizado profundo à IA generativa) estão famintas por dados. Na vanguarda da
extração de dados de ambientes educacionais estarão os provedores de
plataformas digitais, para quem os dados do usuário são seu ativo mais valioso
(Selwyn et al., 2020: 2, tradução nossa).
Ao lado das grandes empresas, existem também
unicórnios tecnológicos educacionais que usam imaginários baseados em uma visão
tecnosolucionista que oferece soluções tecnocráticas para problemas sociais e
dissemina imagens de progresso e modernidade para justificar suas operações
(Saura, 2023). Esses imaginários do futuro estão ligados à abertura de novos
mercados financeiros.
Como exemplo, podemos destacar que a EdTech
indiana Byju’s foi a patrocinadora oficial da Copa do Mundo FIFA no Catar 2022.
Empresas como essa não são mais apenas unicórnios, mas “decacornios”
(Williamson, 2022), já que estão avaliadas nos mercados financeiros acima de 10
trilhões de dólares. A plataforma Crunchbase (s.f.), especializada em monitorar
e fornecer informações sobre o ecossistema de investimentos em empresas
globalmente, informa que a Byju’s arrecadou mais de 5,5 bilhões de dólares
desde sua fundação em 2015. A empresa desenvolve tecnologia educacional para aprendizagem
personalizada para crianças e tem mais de 150 milhões de alunos em mais de 100
países (Byju’s, s.f.). Em seu site eles são apresentados da seguinte
forma:
A
Byju’s torna o aprendizado envolvente e eficaz, aproveitando a pedagogia e a
tecnologia de ponta. Com ofertas que vão desde cursos adaptativos de autoestudo
em aplicativos e na web até aulas personalizadas individuais com professores
especializados para idades de 4 a 18 anos ou mais, temos programas para todos
os alunos.
Outra empresa que movimenta quantidades
significativas de recursos é a Khan Academy. A lista de doadores e aliados da
empresa é poderosa: alguns deles aparecem na lista da Forbes, como Carlos Slim,
Bill Gates, Scott Cook, Jorge Lemann e Susan McCaw. Além disso, conta com
conselheiros e assessores, gurus e policymakers ligados ao
campo educacional e promotores de visões e estratégias de larga escala.
A Khan Academy se apresenta como uma empresa sem
fins lucrativos e opera na modalidade B2C (sigla em inglês para Business
to Consumer ou de empresa a cliente). O que em seus primórdios, em
2006, eram videotutoriais de algumas disciplinas, elaborados e realizados por
seu próprio fundador, Salman Khan 6/, hoje é uma complexa plataforma de
aprendizagem personalizada que opera com poderosas ferramentas de IA. É focada
nas disciplinas básicas obrigatórias e não obrigatórias, e também se concentra
no ensino superior: matemática, ciências, programação de computadores, línguas
e leitura, artes e humanidades, economia e até habilidades para a vida, como
segurança na internet, financiamento ou apoio ao ingresso em universidades e,
mais recentemente, a saúde e medicina. Propõe realizar um desafio de grande
escala: oferecer uma educação gratuita e global.
Com o discurso sedutor e eficiente de for
every student, every classroom. Real results, a plataforma propõe
acompanhar o aluno na resolução dos seus problemas acadêmicos com uma
metodologia própria que se apresenta como muito eficaz e efetiva. A Khan
Academy argumenta que funciona porque incentiva o domínio do conteúdo: os
alunos aprendem em seu próprio ritmo, primeiro identificando seus déficits e
depois acelerando o processo.
A plataforma também oferece treinamento de
professores na metodologia “aprendizado para o domínio”, que escalona o
processo em quatro níveis (tentativa, familiar, competente e dominado): o papel
do professor é selecionar o assunto e verificar o alcance dos marcos de
aprendizagem . Além disso, a conexão com o Google Classroom permite a
comunicação direta com alunos e famílias, e a plataforma alerta sobre riscos
jurídicos para menores. A Khan Academy defende consistentemente o ensino à
distância, e isso a sintoniza com as famílias que ensinam em casa, tornando
essas famílias alguns de seus principais usuários.
Os últimos avanços da Khan Academy incluem a
incorporação do ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor
de IA que conversa com os alunos em linguagem natural, recriando a experiência
de um professor humano. A tecnologia também trabalha com os professores,
gerenciando e preparando cronogramas de ensino e corrigindo as respostas dos
alunos.
A plataforma oferece a cada aluno a experiência de
um tutor humano, concentra conteúdos educacionais supostamente de alta
qualidade, media o processo de aprendizagem e personaliza a trajetória de cada
aluno de forma gamificada e viciante. Não há como competir com a capacidade de
processamento de dados da plataforma, então entende-se que a Khan Academy
conhecerá o processo de desenvolvimento de conteúdo de cada aluno muito melhor
do que um professor.
·
A reconfiguração docente
No contexto da incorporação de plataformas como a
Khan Academy às instituições de ensino, a função docente é fortemente afetada.
Um professor que atue mais como auxiliar das plataformas do que como personagem
central no acompanhamento do desenvolvimento do aluno parece ser o objetivo
final dessas plataformas. Nesse contexto, o que se busca é que o estável e o
imutável seja o serviço oferecido pelas plataformas; o professor seria cada vez
mais secundário e facilmente substituível.
Os imaginários históricos sobre a função docente
deixam de fazer sentido neste novo cenário. O professor não é mais a fonte de
informação, conteúdo e conhecimento; não é quem desenvolve ou seleciona os
materiais didáticos; nem é quem expõe o conteúdo, oferece exemplos e tira
dúvidas do dia a dia. O currículo passou a ser desenhado por plataformas com
alcance global, e não é mais uma pessoa que conhece os alunos e seu contexto o
suficiente para tomar decisões sobre como avançar em sala de aula para reduzir
as desigualdades.
No entanto, a introdução das tecnologias digitais
na educação intensificou a carga de trabalho docente e fortaleceu os mecanismos
de controle externo e de autocontrole interno. “(…) Por meio de todas essas
mudanças, está sendo gerada a expressão máxima da subjetividade neoliberal
digitalizada. O professor, que se acredita livre, se autoexplora e se
autocontrola sem as limitações do plano analógico.” (Saura, Cancela e
Parcerisa, 2023: 28). A gestão de todos esses dados gera um novo controle da
função docente. “O papel tinha um limite. Os dígitos, no entanto, são
infinitos.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28).
A privatização educacional digital por meio de
plataformas hegemônicas como Google e Microsoft cria um solucionismo
tecnológico que os professores devem atender. Essas corporações também oferecem
formação, certificados e prêmios para os docentes inovadores, o que
faz com que os professores que se adaptam ao seu discurso criem “inovações” e
valorizem sua nova personalidade digital certificada. Desta forma, contribuem
para a tecnocratização da educação e a desprofissionalização dos docentes
(Saura, Cancela e Parcerisa 2023: 28).
As consequências das tecnologias digitais são
imprevisíveis e dificultam o mapeamento dos atores da educação global. Isso
causa uma pressão adicional sobre a função docente, que se desgasta devido à
deterioração das três funções básicas (qualificação, socialização e
subjetivação) propostas por Gert Biesta (2015). A abordagem de Biesta destaca
que a nota não é apenas atribuir um número, mas que os alunos entendam o
significado do conhecimento que é transmitido. A socialização implica a
capacidade de encontrar um significado local e particular na aprendizagem, que
pode ser afetado pelas barreiras impostas pelo campo digital. Por fim, a
subjetivação implica que os jovens se considerem como indivíduos particulares,
algo que a abordagem globalista e digital não atende. Esta deterioração tem um
acentuado sotaque cultural e anula o filtro necessário do professor nas três
áreas referidas, tendo efeitos perversos nos educandos.
A erosão digital na educação implica que o
professor perca ou desvalorize alguns dos seus papéis e tarefas. A sua
participação no planeamento, implementação e avaliação da aprendizagem é
diminuída, a sua decisão sobre o currículo é anulada e a realidade das
condições em que o ensino decorre é omitida. Além disso, sua figura de
pesquisador desaparece e a essência da escola é subsumida pelo aprender por
aprender, sem a necessidade de recorrer ao significado dessa aprendizagem.
·
Considerações finais
Esse processo de incorporação das
EdTechs nas instituições de ensino e a configuração de uma nova função
docente vem ocorrendo há anos. Na América Latina, por exemplo, existe um
conglomerado de empresas que está atuando para se inserir nas escolas públicas
e assumindo todos os riscos: a Samsung financia salas de aula
tecnológicas que poderão receber produtos educacionais da Khan Academy e
de outras empresas. Mas em decorrência da pandemia de covid-19, a presença de
agentes comerciais privados na educação ampliou-se ainda mais e eles defenderam
a necessidade da manutenção de um mínimo de cotidiano escolar (sem que se
considere, neste discurso, o gap tecnológico).
Este movimento tem causado tensões que afetam os
objetivos, conteúdos e habilidades da educação. Isso corrói o controle
democrático delegado ao docente, deteriora sua figura e reduz seu papel como
ator social, o que acarreta uma perda da “comunidade simbólica idealizada”
(Sennett, 2000).
Nesse sentido, é importante destacar que a figura
do docente é fundamental para garantir o acesso a uma educação de qualidade e
equitativa para todos os alunos. Por isso é fundamental proteger o trabalho do
professor como agente público e como mediador entre os alunos e o conhecimento.
Num contexto em que a educação é cada vez mais influenciada por agentes
comerciais privados, o papel do professor torna-se ainda mais importante
enquanto defensor dos valores democráticos e da justiça social. Portanto, é
fundamental que mais atenção seja dada à proteção do controle democrático da
educação e do trabalho do docente nela, para garantir uma educação de qualidade
e equitativa para todos os estudantes.
Fonte: Por Antonio Lovato Sagrado, Amanda Aliende
da Matta e Enric Prats Gil, no Viento Sur | Tradução: Rôney Rodrigues, em
Outras Palavras
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