'Crise no Sudão
pode se tornar um pesadelo para o mundo', diz ex-primeiro-ministro
O
ex-primeiro-ministro do Sudão alertou que o conflito em seu país pode se tornar
pior do que os combates na Síria e na Líbia.
Abdalla
Hamdok disse que a luta será um "pesadelo para o mundo" se continuar.
O
mais recente cessar-fogo entre generais em guerra está instável, com ataques
aéreos relatados na capital, Cartum.
Quase
duas semanas de combates deixaram centenas de mortos, enquanto dezenas de
milhares de pessoas estão fugindo do país.
Um
cessar-fogo na noite de quinta-feira entre as facções rivais seguiu com
intensos esforços diplomáticos dos países vizinhos, bem como dos EUA, Reino
Unido e ONU.
Mas
a extensão, que a princípio deveria durar 72 horas, não foi mantida. Os ataques
aéreos, de tanques e de artilharia continuam em partes de Cartum.
Durante
discurso em uma conferência na capital do Quênia, Nairóbi, Hamdok pediu um
esforço internacional unificado para persuadir o líder militar sudanês e chefe
de uma força paramilitar rival a realizar negociações de paz.
"Este
é um país enorme, muito diverso... Acho que será um pesadelo para o
mundo", afirmou.
"Esta
não é uma guerra entre um exército e uma pequena rebelião. É quase como dois
exércitos - bem treinados e bem armados."
Hamdok
- que foi primeiro-ministro duas vezes entre 2019 e 2022 - acrescentou que a
insegurança pode se tornar pior do que as guerras civis na Síria e na Líbia.
Essas
guerras causaram centenas de milhares de mortes, criaram milhões de refugiados
e causaram instabilidade em regiões mais amplas.
Os
combates no Sudão começaram em 15 de abril como resultado de uma amarga luta
pelo poder entre o exército regular e as Forças de Apoio Rápido (RSF).
O
comandante do Exército, general Abdel Fattah al-Burhan, e o chefe do RSF,
general Mohamed Hamdan Dagalo, mais conhecido como Hemedti, discordam sobre a
proposta de mudança do país para o governo civil e, em particular, sobre o prazo
para a inclusão dos 100.000 RSF no exército.
Os
dois grupos temem perder o poder no Sudão, em parte porque em ambos os lados há
homens que podem acabar no Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra
cometidos na região de Darfur há quase 20 anos.
Milhões
de pessoas permanecem presas em Cartum, onde há escassez de alimentos, água e
combustível.
O
exército do Sudão instruiu as pessoas em Cartum a permanecerem em casa e longe
das janelas, enquanto mobiliza tanques e outra artilharia, apesar do cessar-fogo.
A
RSF diz que o exército está ampliando o conflito ao implantar a polícia da
Reserva Central - uma unidade com reputação de brutalidade contra civis.
A
violência também é particularmente ruim em El Geneina, uma cidade em Darfur, no
oeste do Sudão, com alegações de que grupos de milícias saquearam e incendiaram
mercados.
Hemedti
disse à BBC que não negociará até que a luta termine.
Ele
disse que seus combatentes estão sendo bombardeados "implacavelmente"
desde que a trégua foi estendida.
"Não
queremos destruir o Sudão", disse ele, culpando o chefe do exército,
general Abdel Fattah al-Burhan, pela violência.
Gen
Burhan - o chefe do exército regular do Sudão - concordou provisoriamente em
negociações cara a cara no Sudão do Sul.
Enquanto
isso, há cenas caóticas em Port Sudan, onde as pessoas estão desesperadas para
embarcar em navios, alguns dos quais com destino à Arábia Saudita e ao Iêmen.
O
governo do Reino Unido disse que estava encerrando seus esforços de evacuação
na noite de sábado. O país havia estabelecido uma presença diplomática em Port
Sudan, com um escritório no Coral Hotel, na cidade costeira.
Cerca
de 2.000 pessoas chegaram à cidade costeira saudita de Jeddah depois de serem
evacuadas de Port Sudan. Espera-se que a maioria volte para casa em voos
fretados organizados por seus governos nos próximos dias.
Falando
à correspondente internacional chefe da BBC, Lyse Doucet, em Jeddah, Nazli, uma
engenheira civil iraniana de 32 anos que fugiu com seu marido, também
engenheiro, relembrou os combates dos quais fugiram.
"Não
podíamos nem sentar na varanda; o tiroteio estava por toda parte", disse
ela.
"Por
favor, por favor, ajude nossa família no Sudão", gritou Rasha, uma
sudanesa-americana mãe de quatro filhos - que falou sobre se esconder por três
dias, apavorada.
"Peço
ao mundo que proteja o Sudão", implorou ela, destacando os temores de que,
uma vez que todos os estrangeiros tenham fugido, os combates se intensifiquem.
Ø
Como grupo de
mercenários russos Wagner agiu no Sudão antes da guerra civil
O
grupo de mercenários Wagner, da Rússia, é acusado de ter várias relações
comerciais e militares com o Sudão, mas o grupo nega qualquer envolvimento no
atual conflito no país.
Seu
fundador, Yevgeny Prighozin — que é próximo do presidente Vladimir Putin — afirma
que "nenhum combatente da companhia militar privada Wagner está presente
no Sudão" há mais de dois anos.
Não
encontramos evidências de que mercenários russos estejam atualmente dentro do
país. Mas há evidências das atividades anteriores do grupo Wagner no Sudão, e
as operações de Prighozin no país foram alvo de sanções tanto dos EUA quanto da
União Europeia.
·
Acordos de mineração de ouro
Em
2017, o então presidente do Sudão, Omar al-Bashir, assinou uma série de acordos
com o governo russo durante uma visita a Moscou.
Entre
eles, estava um acordo para a Rússia estabelecer uma base naval em Porto Sudão,
no Mar Vermelho, assim como "acordos de concessão de mineração de ouro
entre a empresa russa M Invest e o Ministério de Minérios sudanês".
O
Tesouro americano alega que a M Invest e uma subsidiária, a Meroe Gold, são
empresas de fachada para as atividades do grupo Wagner no Sudão, terceiro maior
produtor de ouro da África.
"Yevgeniy
Prigozhin e sua rede estão explorando os recursos naturais do Sudão para ganho
pessoal e espalhando influência maligna pelo mundo", disse o então
secretário do Tesouro americano, Steven Mnuchin, em 2020.
Tanto
a M Invest quanto a Meroe foram alvos específicos de sanções dos EUA.
De
acordo com uma investigação da rede americana CNN, o ouro foi transportado por
via terrestre para a República Centro-Africana, onde sabe-se que o grupo Wagner
opera — exportações que não foram registradas nos dados comerciais oficiais
sudaneses.
Quantidades
significativas de ouro também foram contrabandeadas por meio de uma rede de
aeroportos militares, de acordo com uma reportagem publicada no ano passado
pelo jornal britânico Daily Telegraph.
·
O que mais o Wagner fez no Sudão?
Desde
2017, fontes russas e internacionais publicaram imagens que parecem situar
mercenários russos dentro do Sudão.
Acredita-se
que as imagens mostrem eles atuando em várias funções, incluindo treinamento de
soldados sudaneses ou supostamente ajudando as forças de segurança a reprimir
protestos. A BBC não conseguiu confirmar essas imagens de forma independente.
Em
2021, um canal do Telegram vinculado ao Wagner publicou imagens em que um alto
comandante não identificado do grupo aparece premiando soldados sudaneses com
souvenirs em uma cerimônia realizada dois anos antes.
E
em julho de 2022, este canal distribuiu um vídeo que supostamente mostrava
mercenários do grupo Wagner realizando exercícios de pouso de paraquedas para
as forças sudanesas.
A
mesma fonte publicou um link para o perfil do Instagram de um mercenário russo
anônimo, que se autodenomina "freelancer" e compartilha histórias de
suas façanhas no Sudão em postagens de agosto e outubro de 2021.
Em
um filme de propaganda do Wagner de 2020, o Sudão foi apresentado como um dos
países onde os mercenários operam.
·
Quão influente é o Wagner?
O
Tesouro americano diz que o grupo Wagner conduziu "operações
paramilitares, apoiou preservação de regimes autoritários e explorou recursos
naturais".
"Inicialmente,
em 2018, eles tinham cerca de 100 homens treinando ativamente as forças militares
sudanesas, e a relação cresceu a partir daí", diz Joana de Deus Pereira,
do Royal United Services Institute, com sede no Reino Unido.
Reportagens
da imprensa sudanesa indicam que esse número subiu para cerca de 500, e que
eles estariam baseados principalmente no sudoeste, perto de Um Dafuq, próximo à
fronteira do Sudão com a República Centro-Africana.
O
Sudan Tribune afirmou que quando o presidente Bashir enfrentou protestos
populares em 2019, "combatentes russos" foram mobilizados para
observar os protestos antigoverno ao lado dos serviços de inteligência e
segurança sudaneses, embora isso tenha sido negado pelas autoridades sudanesas.
·
Troca de aliança
O
Grupo Wagner criou suas próprias campanhas de mídia para ajudar o presidente
Bashir a permanecer no poder, afirma Samuel Ramani, autor de um livro sobre as
atividades da Rússia na África.
"Prigozhin
estava pedindo para... que os manifestantes fossem acusados de ser pró-Israel
e anti-islâmicos", diz ele.
sso
causou atrito com as próprias forças de segurança do presidente e, assim, o
Wagner passou a apoiar o homem que o derrubou — o general Abdel Fattah
al-Burhan.
"Enquanto
o Ministério das Relações Exteriores em Moscou era contra o golpe, Prigozhin e
o grupo Wagner acolheram a tomada de poder de al-Burhan", explica Ramani.
Segundo
ele, foi em 2021 e 2022 que o grupo Wagner aumentou suas conexões com as Forças
de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), que atualmente combatem o Exército
oficial do Sudão, liderado pelo general Burhan.
Prigozhin
estava interessado em obter mais ouro por meio das minas recém-adquiridas pelo
líder da RSF, Mohamed Hamdan Dagalo, mais conhecido como Hemedti.
No
ano passado, Hemedti visitou Moscou, dizendo que esperava fortalecer os laços
entre o Sudão e a Rússia.
No
entanto, Kholood Khair, do Confluence Advisory, um think-tank sobre assuntos
sudaneses, acredita que o grupo Wagner não está tomando partido de ninguém no
conflito atual.
"O
Wagner tem ligações tanto com as empresas do general al-Burhan quanto com as
empresas de Hemedti em diferentes níveis e de diferentes maneiras", diz
ela.
·
A presença do Wagner em outras partes da África
Foi
amplamente noticiado que os combatentes do Wagner estiveram na República
Centro-Africana por vários anos, protegendo as minas de diamantes do país,
assim como na Líbia e no Mali.
Uma
investigação da BBC em 2021 encontrou evidências de seu envolvimento na guerra
civil da Líbia em um dispositivo digital deixado para trás por um combatente do
Wagner e em conversas com soldados e civis do país.
No
Mali, o governo recorreu ao Wagner para ajudar a combater os militantes
islâmicos, embora nunca tenha reconhecido oficialmente a presença do grupo.
A
ONG internacional Human Rights Watch acusou os mercenários russos de abusos
graves, tanto na República Centro-Africana quanto no Mali, incluindo tortura e
assassinatos.
Fonte:
BBC News Brasil
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