CLT faz 80 anos: o
que mudou e pode mudar no Brasil da informalidade e aplicativos
No
dia 1º de maio de 2013, o estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, recebeu
autoridades da Justiça do Trabalho, sindicalistas e dirigentes do time para
comemorar o aniversário de 70 anos da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.
Durante
anos, acreditou-se que Getúlio Vargas (1882-1954) tinha escolhido a arena de
São Januário para assinar o que viria a ser a lei trabalhista mais importante
do país.
Mas
não foi assim: Vargas não esteve no estádio em 1º de maio de 1943. A CLT foi
assinada em um comício no centro do Rio, há exatos 80 anos.
A
CLT continua a ser até hoje a principal lei trabalhista brasileira, abrangendo
42,9 milhões de empregados em março deste ano, segundo dados do Cadastro Geral
de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho.
Nos
últimos anos, porém, perdeu espaço para outras modalidades.
Avançaram
a atuação informal, o trabalho por meio de aplicativos e a contratação via
empresa individual, a chamada de "pejotização".
Em
fevereiro deste ano, o número de brasileiros trabalhando sem carteira assinada
atingiu o pico desde que o tema passou a ser parte da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE – o percentual de informais vem batendo
recordes ano a ano desde 2012, quando a pesquisa começou.
Os
celetistas (trabalhadores com carteira assinada) representam atualmente cerca
de um terço da população ocupada no país, segundo a pesquisa.
Parte
da legislação sobre o tema foi alterada pela reforma trabalhista de 2017,
impulsionada pelo governo do então presidente Michel Temer (MDB).
Agora,
a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende revogar algumas
das mudanças introduzidas pela reforma trabalhista e criar uma nova
regulamentação para os trabalhadores de aplicativos.
·
Reforma trabalhista
A
reforma trabalhista de 2017 foi a principal mudança na CLT nos últimos anos,
impulsionada pelo governo Temer.
A
reforma deu maior peso às negociações coletivas entre patrões e empregados, que
passaram a prevalecer sobre a legislação; permitiu a divisão de férias; criou a
figura do trabalho intermitente (modelo no qual o empregado é chamado para
trabalhar em momentos pontuais e recebe apenas pelas horas trabalhadas) e
acabou com a contribuição sindical obrigatória, entre outros pontos.
Uma
das mudanças mais significativas diz respeito aos processos na Justiça do
Trabalho: desde a reforma, o empregado pode ser obrigado a pagar honorários ao
advogado da empresa, em caso de derrota. O valor varia entre 5% e 15% do valor
total da causa.
Reforma
trabalhista aprovada no governo de Michel Temer (MDB) diminuiu custos das
empresas com processos trabalhistas e propiciou a criação de vagas, diz estudo
da USP — Foto: Carolina Antunes/Presidência da República
De
acordo com um estudo de 2022 de economistas da Universidade de São Paulo (USP)
e do Insper, esta mudança pode ter representado um acréscimo de 1,7 milhão de
empregos formais desde 2017. O número foi estimado por meio de um modelo
matemático.
Segundo
o economista Rafael Ferreira, um dos autores do estudo, a possibilidade de ter
que arcar com os custos do processo desincentivou funcionários a entrar na
Justiça, especialmente nos casos em que não há certeza de vitória. O que,
segundo ele, diminuiu os custos das empresas para abrir novas vagas.
"Quando
a empresa contrata, ela tem de levar em conta o custo esperado se demitir o
trabalhador. Se eu reduzo esse custo esperado de contratar, que pode vir de um
processo, tenho mais chance de contratar. Toda empresa faz provisões para os
custos de processos trabalhistas", diz Ferreira, que é professor do
Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
"A
CLT foi criada em 1943 e o mundo mudou de lá para cá. Então era preciso uma
atualização importante. Agora, o que eu acho que é bastante importante para as
próximas reformas, é o aumento da previsibilidade. Reduzir as incertezas
associadas à contratação no país. Há incerteza sobre a interpretação que os
juízes podem ter sobre um ponto ou outro de um contrato de trabalho. O que a
legislação puder fazer para tornar tudo o mais claro o possível, e reduzir
incerteza, deve ser feito", diz Ferreira.
Avaliar
todos os impactos da reforma não é tarefa simples – ainda restam mais dúvidas
do que certezas sobre como a reforma mudou a economia brasileira e como ela
poderia ser alterada para beneficiar trabalhadores e empresas.
Especialistas
apontam que não basta olhar para dados como a taxa de desemprego e a renda,
antes e depois da reforma, para chegar a alguma conclusão, pois diversos
fatores (como pandemia e crises institucionais) influenciam essas variáveis e
não é possível saber como a economia teria se comportado caso a reforma não
estivesse em vigor.
·
Mudanças à vista
Tanto
Lula quanto o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, dizem que a reforma
trabalhista de 2017 deverá ser revista, mas até agora nada foi enviado ao
Congresso — Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Durante
a campanha eleitoral de 2022, os direitos dos trabalhadores foram um dos pontos
a que Lula recorreu como um contraponto ao seu antecessor e adversário, Jair
Bolsonaro (PL).
O
petista enfatizou duas medidas principais para o governo iniciado em janeiro:
rever pontos da reforma de 2017 e regulamentar as profissões exercidas por meio
de aplicativos (especialmente os de entregas e de transporte de passageiros)
para dar maior segurança e mais garantias aos trabalhadores.
Bolsonaro
disse, por sua vez, durante uma viagem à China, que os trabalhadores preferem
perder alguns direitos para ter mais empregos.
Naquele
ano, o governo lançou a chamada Carteira Verde e Amarela, uma iniciativa que
reduzia encargos trabalhistas para empresas que contratassem jovens até 29 anos
ou pessoas acima dos 55 anos. A ideia não vingou e foi abandonada.
Até
junho de 2022, a proposta oficial do PT era de "revogação" da reforma
trabalhista – o partido, no entanto, acabou adotando uma posição intermediária,
que previa "uma nova legislação trabalhista de extensa proteção
social" – e a revogação de pontos específicos da reforma de 2017.
Já
eleito, em março deste ano, Lula disse em evento com sindicalistas que queria
"estruturar um novo pacto na legislação do mundo do trabalho".
A
mesma retórica é usada pelo ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT). Em meados
de abril, ele compareceu à Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados e disse
que a reforma tinha sido "uma tragédia" para o trabalho formal no
país.
O
Ministério do Trabalho criou uma comissão, formada por representantes de
sindicatos e de associações patronais, além do governo, para rever pontos da
reforma trabalhista. Mas, até o momento, porém, nada foi enviado ao Congresso.
O
governo também pretende criar outra comissão com trabalhadores e empresas para
debater a regulamentação do trabalho por meio de aplicativos.
Nesse
caso, porém, os nomes dos integrantes ainda não foram anunciados. Em um evento
com centrais sindicais em janeiro, Lula disse que era preciso "acabar com
essa história de que trabalhador por aplicativo é microempreendedor".
Luiz
Marinho disse, por sua vez, que as jornadas dos aplicativos "beiram o
trabalho escravo". Em entrevista ao jornal Valor Econômico, mencionou a
possibilidade de o governo usar os Correios para desenvolver um serviço para
substituir a Uber caso a empresa não concorde com a regulamentação do trabalho
por aplicativos e deixe o Brasil.
O
ministro foi procurado pela BBC News Brasil para comentar o assunto, mas não
respondeu até a publicação desta reportagem.
Ao
longo de 2021 e 2022, os entregadores de comida promoveram mobilizações –
inclusive paralisando as atividades – no movimento que ficou conhecido como
"Apagão dos Apps".
Melhorar
o valor pago pelas entregas, criar pontos de descanso entre as corridas e dar
fim aos bloqueios das contas são algumas das reivindicações dos entregadores.
O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), chegou a discutir a possibilidade de
criar uma regra previdenciária mais favorável aos trabalhadores de aplicativos
com o presidente da Uber, Dara Khosrowshahi.
A
conversa aconteceu durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, mas
nada de concreto foi apresentado até o momento.
Para
o advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas, doutor em Direito pela USP, algum
tipo de regulamentação do trabalho por aplicativo é necessário – mesmo que não
nos moldes da CLT.
Segundo
ele, o surgimento nos últimos anos do termo "uberização" para se
referir a relações de trabalho precarizadas sugere que algo não vai bem.
"Não
é à toa. Quando temos um setor que degrada uma forma de trabalho, dizemos que
este setor está 'uberizado'. Essa expressão se disseminou. Já é um sintoma de
que há algo errado", diz Caldas, que é sócio do escritório Gomes, Almeida
e Caldas Advocacia.
Além
de garantir direitos básicos, diz Caldas, uma regulamentação do trabalho por
aplicativos deveria contemplar algum mecanismo de representação dos
trabalhadores e de negociação com as empresas – algo que não existe hoje.
Rafael
Ferreira diz que qualquer regulamentação que se faça dos aplicativos precisa
considerar a viabilidade do serviço.
"Essas
atividades, tipicamente, são exercidas por pessoas que ou não têm um emprego
formal ou se usam delas para complementar a renda do emprego. Se você insere
uma regulamentação que aumente o custo a ponto de inviabilizar a atividade, o
resultado pode ser uma queda na renda dessas pessoas", diz o economista.
Ele
acrescenta que "se a regulamentação for feita de forma a aumentar os
ganhos dos trabalhadores, mas sem inviabilizar as empresas ou sem provocar uma
queda dos investimentos, não há como ser contra, é uma questão
distributiva".
·
Origem fascista?
Assim
como o “nascimento” da CLT em São Januário, outro mito em torno desta lei é que
ela seria uma cópia literal da Carta del Lavoro ("Carta do
Trabalho"), um documento do partido fascista italiano comandado pelo
ditador Benito Mussolini (1883-1945).
Na
verdade, a lei brasileira foi criada em um período em que as relações
trabalhistas estavam sendo regulamentadas em vários países, inclusive
democracias.
Além
disso, buscava organizar o mercado de trabalho em um momento de rápida
industrialização e urbanização do país, segundo o historiador do trabalho Paulo
Fontes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Eu
não diria que é uma cópia do modelo fascista, como ganhou ares de verdade. Eu
colocaria a CLT dentro desse conjunto de experiências que tentavam de alguma
forma regulamentar as relações de trabalho e sindicais”, diz Fontes.
“Há,
como a gente sabe, elementos autoritários na CLT. Alguns, provavelmente com
inspiração do corporativismo fascista italiano. Mas é um grande exagero dizer
que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro. Até porque são instrumentos legais
diferentes."
Ele
explica ainda que a CLT surge como uma compilação de leis trabalhistas
anteriores criadas ao longo da década de 1930 pelo Estado Novo, o regime
autoritário comandado por Getúlio Vargas.
Por
isso, reúne tanto direitos sociais (férias, 13º salário) quanto regras
consideradas autoritárias sobre a atuação dos sindicatos. São da mesma época a
própria carteira de trabalho (1932) e a Justiça do Trabalho (1939).
"Ela
é elástica o suficiente para ter criado esse horizonte de direitos, ao mesmo
tempo em que tinha elementos repressivos. Se em períodos democráticos serviu
para garantir direitos, nos períodos ditatoriais os aspectos repressivos foram
mais utilizados (pelo Estado)", diz Fontes, que comanda o Laboratório de
Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT) da UFRJ.
A
ligação da CLT com o fascismo italiano foi frisada por diferentes grupos em
diferentes momentos, explica Fontes.
Durante
a ditadura militar, a associação era feita com frequência por sindicalistas – o
próprio Lula chegou a dizer, quando era sindicalista, que "a CLT é o AI-5
dos trabalhadores", referindo-se ao Ato Institucional nº 5, que endureceu
a repressão durante o regime militar, conforme descreve Kazumi Munakata em
"A Legislação Trabalhista no Brasil".
"Depois,
nos anos 1990, foram os neoliberais que começaram a dizer que a CLT tinha
inspiração na Carta del Lavoro. Mas aí muito mais em uma crítica geral aos
direitos sociais embutidos na CLT", diz Fontes.
·
Os novos desafios da economia digital
Passados
80 anos da criação da CLT, as plataformas digitais trazem novos desafios para a
legislação trabalhista.
Se
antes o trabalho por meio de sites e aplicativos estava restrito a entregadores
e motoristas, hoje é possível contratar todo tipo de serviço – inclusive
psicólogos, designers, advogados.
A
tendência, segundo especialistas, é que a "uberização" avance sobre
ainda mais setores da economia. Em um ambiente como este, ainda haverá lugar
para uma lei como a CLT?
"Eu
acredito que a CLT ainda tem um lugar nas próximas décadas, no sentido de que
ela dá conta de alguns tipos de relação de trabalho que continuarão existindo
por muito tempo”, diz o advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas.
“Vai
continuar existindo fábrica, vai continuar existindo comércio. Existem algumas
realidades em que a CLT manterá sua força. Só que nós estamos vendo o
surgimento de novos modelos de negócios em que a CLT não se encaixa
perfeitamente. E aí será preciso pensar em alguma outra norma."
Rafael
Ferreira diz que a existência ou não da CLT – ou de uma lei similar – em
profissões "uberizadas" no futuro será uma decisão política e
jurídica.
Além
da remuneração dos profissionais, esse tipo de decisão afetará também a
disponibilidade dos serviços para os consumidores, avalia o economista.
"Tudo
depende de como será o entendimento jurídico da relação entre as plataformas da
chamada 'gig economy' [economia do bico, em tradução livre] e quem está
prestando o serviço”, diz Ferreira.
“Essas
plataformas permitem a entrada de mais trabalhadores. Se eu estou trabalhando
como psicólogo, por exemplo, em uma plataforma dessas, isso terá um efeito
inevitável sobre o preço, pois são mais psicólogos ofertando os serviços. Mesma
coisa com designers, até advogados."
·
Segurança
Caldas
diz ainda que uma das mudanças mais importantes introduzidas pela CLT é
reconhecer a condição de inferioridade do trabalhador na hora de negociar com o
patrão – no Direito, essa assimetria de poder é chamada de "hipossuficiência".
"A
realidade, em muitos casos, é a de que o empregado não tem essa liberdade para
negociar com o patrão. A relação de trabalho é assimétrica”, diz o advogado.
“Claro
que há exceções. Mas não é a realidade da maior parte dos trabalhadores. Por
isso, a CLT é um instrumento de proteção importante para o trabalhador."
Mesmo
com as mudanças recentes, diz Caldas, a carteira assinada continua fornecendo
mais segurança ao empregado do que outras formas de contratação, como o
trabalho autônomo (a chamada "pejotização").
Inclusive
porque a CLT tem mecanismos como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) e a contribuição previdenciária, que acabam criando uma reserva para o
futuro.
"É
uma certa ingenuidade pensar que as pessoas farão esse tipo de reserva por
conta própria em todos os casos. Quando o Estado estabelece essas formas de
poupança compulsória, isso garante uma retribuição para quando a pessoa não
tiver a mesma energia ou disposição", diz o advogado.
"A
'pejotização' pode cobrar um alto preço, da pessoa e da sociedade, no futuro.”
Um
dos pontos em discussão no Brasil é, por exemplo, como garantir proteção
previdenciárias a trabalhadores sem carteira assinada. Leia nesta reportagem o
que dizem associações de trabalhadores e empresas.
Fonte:
BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário