segunda-feira, 1 de maio de 2023

Carta escrita à mão por detento ajuda a provar inocência de homem preso por roubo: 'Um pesadelo em vida'

Dois anos. Esse foi o tempo que o analista de pricing Vinicius Villas Boas, 37, ficou preso em regime fechado no Centro de Detenção Provisória de São José do Rio Preto (SP) após ser condenado por roubo a uma residência em 2016.

No entanto, no último dia 21 de março, a Justiça reconheceu que Villas Boas foi preso injustamente e que ele não era um dos autores do crime, decidindo pela sua absolvição. O reconhecimento da inocência do analista de pricing só veio depois que um detento, que cumpria pena no mesmo local, escreveu uma carta à mão apontando os verdadeiros culpados pelo assalto.

A reviravolta no caso trouxe alívio para Villas Boas e para o advogado Nugri Campos, que já tinha esgotado todos os argumentos para tentar convencer a Justiça de que as provas do inquérito eram frágeis e não comprovavam a participação do analista no crime.

Segundo o processo, que foi transitado e julgado, no dia 17 de fevereiro de 2016, um homem de 51 anos foi feito refém por três assaltantes ao chegar em sua residência, em José Bonifácio, interior de São Paulo, e flagrar o trio furtando diversos objetos do local.

No boletim de ocorrência, o morador relatou que foi amarrado e trancado no banheiro, enquanto os bandidos fugiram levando R$ 1,2 mil em dinheiro, um cordão de ouro, um celular e dois perfumes avaliados em R$ 1,4 mil. Na ocasião, a vítima relatou à polícia ter visto um veículo Gol cinza perto da casa dele.

Dias depois, outra residência nas proximidades foi furtada. Imagens das câmeras de segurança do local flagraram que os bandidos usaram um carro Gol cinza, com as mesmas características, durante o crime. A semelhança fez com que a Polícia Civil acreditasse que os crimes foram cometidos pelo mesmo grupo e passasse a investigá-los em conjunto.

As investigações apontaram que o veículo pertencia a um morador de Mendonça, cidade com pouco mais de 5 mil habitantes, a 22 quilômetros de onde os crimes foram cometidos, e um dos suspeitos seria Villas Boas – que havia se mudado de São Paulo para a cidade com a esposa e o filho pequeno.

A foto de Villas Boas foi apresentada para a vítima do assalto e o homem teria o reconhecido como um dos homens que invadiram a sua casa e praticado o roubo.

Outra prova da suposta participação de Villas Boas usada pela Justiça foram as imagens das câmeras de segurança da casa onde foi registrado o segundo crime. Nelas era possível ver um homem pardo caminhando do outro lado da rua um dia antes do crime. Para a polícia, esse homem era o analista de pricing.

"As imagens são de qualidade ruim e não é possível identificar o homem que aparece nelas. Além disso, tínhamos um álibi, no dia e hora dos crimes, o Vinicius estava trabalhando como pintor em uma obra, inclusive o patrão dele da ocasião foi ouvido na audiência e confirmou que Vinicius estava trabalhando com ele. Também pedimos a quebra do sigilo telefônico para mostrar a geolocalização do Vinicius no dia do crime, mas o pedido foi negado pela Justiça", detalha o advogado.

Villas Boas foi então condenado a cumprir nove anos de prisão. Após recorrer em todas as instâncias tentando provar a sua inocência e a inconsistência das acusações, a pena foi reduzida para sete anos.

·         Novas provas

Foi trabalhando no Centro de Detenção Provisória (CDP) servindo comida aos demais presos e ajudando na limpeza do local que Villas Boas conheceu um detento que também era de Mendonça, conhecia os verdadeiros autores dos crimes e sabia que o analista havia sido preso injustamente.

"Um dia esse detento me chamou e perguntou a minha história, o porquê de eu estar preso. Após contar, ele disse que sabia da minha inocência e que havia pedido para os verdadeiros autores se entregarem, porque na lei do crime eles não admitem que um pai de família levasse a culpa, mas como isso não aconteceu, ele iria me ajudar", recorda o analista.

Para provar a inocência de Villas Boas, o detento escreveu uma carta à mão relatando tudo o que sabia sobre o caso e apontando quem seriam os autores dos crimes.

"Eles falaram que foram eles que fizeram o roubo e que eles nem sabem como que o Vinicius foi enquadrado nesse BO. Eles falaram que não iam assumir nada, mas eles assumiram o BO perante eu, pessoalmente", diz um trecho da carta.

Após anexar a carta ao processo, o detento foi ouvido formalmente em uma audiência online e confirmou que o analista havia sido confundido com o verdadeiro criminoso.

"Foi aquela luz no fim do túnel porque todos os nossos recursos já haviam se esgotado. Mas com o surgimento de uma nova prova, o processo foi reaberto para uma nova análise", diz Villas Boas.

As novas provas foram analisadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que reconheceu a inocência de Villas Boas.

"Inexistindo provas produzidas em juízo para afiançar a autoria do fato, estando a condenação do peticionário fiada em prova nula e vazia e havendo prova de sua inocência, resta a esta Relatoria deferir o pedido revisional para absolver Vinícius Silva Villas Boas", diz trecho do acórdão.

O analista ainda responde ao processo sobre o furto ocorrido uma semana depois do roubo. A primeira audiência para reavaliar o caso está marcada para o dia 16 de maio e será realizada virtualmente.

"Eu jamais imaginei que um dia estaria em uma cadeia. Estar em meio a criminosos, em uma cela, ouvir o barulho dos cadeados e portões batendo, foi um pesadelo em vida", recorda Villas Boas.

·         Vida tranquila no interior

Villas Boas e a esposa, na época grávida do primeiro filho do casal, moravam em São Paulo e se mudaram para o interior do Estado, em 2013, em busca de fugir da violência dos grandes centros.

Na época em que foi preso, o analista estava prestes a inaugurar uma pizzaria na cidade e os planos foram interrompidos.

"Havíamos vendido nossa casa em São Paulo e comprado uma residência no interior. Tínhamos feito um curso de pizzaiolo, investido parte do nosso dinheiro em um forno e equipamentos para dar início ao nosso negócio. Mas assim que recebi a liberdade condicional já voltamos para a capital, tive muito medo de continuar no interior", relata.

"Você receber uma condenação sem ter feito nada, sem dever, é horrível. Ali caiu meu mundo, foi muito doloroso, ali eu pensei que estava tudo perdido. É um sentimento de dor, incapacidade e injustiça", acrescenta.

Há três anos Villas Boas trabalha como analista de pricing em uma startup e tenta recomeçar a vida.

"É realmente recomeçar do zero porque todo o dinheiro que tínhamos foi gasto tentando provar a minha inocência. Agora, com a absolvição é vida nova, porque é muito triste você ser culpado por algo que não fez, isso atrapalha em todos os campos da vida. Só quero continuar trabalhando", diz.

·         Os verdadeiros culpados

Segundo o advogado Nugri Campos, o homem apontado na carta como sendo o verdadeiro autor do roubo com quem Villas Boas teria sido confundido ainda não foi investigado. Outros dois suspeitos citados foram absolvidos em primeira instância por insuficiência de provas e um terceiro foi condenado na mesma época de Villas Boas.

A reportagem da BBC News Brasil questionou a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo sobre o erro envolvendo a prisão indevida de Villas Boas, que explicou que os procedimentos adotados pela Polícia Civil obedeceram às regras processuais.

"O caso foi investigado pela Delegacia de José Bonifácio, que analisou todos os elementos apresentados para fundamentar a sua decisão pelo indiciamento e prisão do suspeito, tanto que o homem foi denunciado pelo Ministério Público e condenado pela Justiça, em primeira instância. O inquérito policial foi concluído e relatado em julho de 2017 para análise do Poder Judiciário, e não retornou mais à delegacia", disse o órgão em nota.

A SSP não deu detalhes de como está a investigação do caso após a absolvição de Villas Boas.

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo disse que não se manifesta sobre questões jurisdicionais.

"Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente", diz a nota.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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