segunda-feira, 1 de maio de 2023

Luiz Eça: O "incômodo" Lula

Um variado número de comentaristas usou e abusou do termo “incômodo” para expressar como o governo estadunidense estaria se sentindo diante das estocadas aos EUA, aplicadas pelo presidente Lula nas visitas a Washington e Pequim. O tom adotado pelos jornalistas foi compungido e pesaroso.

Afinal, Biden era o farol da democracia e fora o fiador do governo Lula, tendo adornado seu reconhecimento com as mais nobres platitudes.

Na verdade, interessava aos EUA apoiar o petista por ser seu rival, o desastroso Bolsonaro, um devoto genuflexo do diabólico Trump.

O populista brasileiro marcara sua posição, ao imitar seu chefe, acoimando de fraude a eleição vencida por Biden. Também causou irritação em Washington ao Bolsonaro demorar 38 dias para enviar a protocolar mensagem de parabéns ao presidente eleito.

Já Lula, democrata por palavras e obras, dificilmente criaria problemas para o líder mundial dos países do bem. Esperava-se que sua visita aos EUA seria um evento feliz, no qual Biden se mostraria um amigo e um aliado compreensivo nas muitas causas onde seus interesses coincidiam.

Não foi bem assim. Houve mal-estar na corte de Biden quando se soube que o presidente do Brasil propunha a formação de um grupo de países para mediar um cessar-fogo na Ucrânia, prelúdio do acordo da paz desejado. Ora esse papel era dos EUA, eles é que negociariam a paz entre as partes, à altura que lhes fosse conveniente.

Depois de perder três guerras (Afeganistão, Iraque e Síria) os EUA tinham obrigação de vencer a Guerra da Ucrânia.

Autoridades ianques disseram que os EUA só aceitariam algo como o Clube da Paz, de Lula, se todos os membros afirmassem que a invasão russa violava princípios da ONU e que a Rússia fora o único agressor.

Seja como for, foi num clima otimista que começou a viagem do petista a Washington. Diversas fontes anteviam que a Casa Branca iria despejar dezenas de bilhões de dólares no Fundo Amazônico.

Bem, Lula não foi tratado exatamente como o líder de um grande país, o líder da América Latina. Não houve homenagens, poucos salamaleques e tagatés. Nada de banquetes ou mesmo de almoços oficiais. E Lula não pôde brilhar numa entrevista coletiva de imprensa, que as autoridades de Washington não julgaram necessária ser convocada.

No único encontro com Biden, os dois presidentes rivalizaram nas habituais platitudes sobre o meio ambiente e a democracia. Não assinaram acordos, sequer de intenções.

Foram doados ao Brasil 50 milhões de dólares para o combate ao desmate e aos incêndios.
Para a magnitude dos EUA e dos problemas da Amazônia, não passava de uns trocados.
Lula voltou ao Brasil sentindo que não conquistara nem corações, nem mentes nos altos escalões do governo norte-americano.

E pior, de bolsos praticamente vazios. Nos intervalos das visitas a Washington, Pequim e Abu Dhabi (União dos Emirados Árabes) e principalmente durante os seis dias na China, Lula fez questão de esquentar uma viagem até então insossa.

Escolhendo como tema a guerra da Ucrânia e como alvo as ações dos EUA, Lula lançou comentários e críticas que transformaram os incômodos iniciais dos norte-americanos em demonstrações de raiva, nem sempre contidas.

Em 23 de fevereiro, mal Lula tinha chegado de Washington, o governo da Alemanha pediu para importar munições de tanques de guerra que seriam posteriormente repassados à Ucrânia.

Em caso positivo, nosso país estaria participando da guerra, o que lhe era defeso por ter adotado uma postura de neutralidade. Coerente com sua posição, o marido de Janja negou-se a atender os alemães.

Poucos dias depois, o governo de Teerã pediu licença para dois vasos de guerra atracarem no porto do Rio de Janeiro.

A Casa Branca protestou: esses navios ameaçavam a segurança norte-americana (estava de brincadeira…). Intensa pressão foi feita para que Lula dissesse “não”. A embaixadora norte-americana em Brasília, Elizabeth Bagley, fez sua parte: “No passado, esses barcos facilitaram o comércio ilegal e atividades terroristas (nunca se provou) e foram também sancionadas pelos EUA (Reuters, 27/2/2023)”.

Lula deu uma banana para as cascatas e suas sanções unipolares e autorizou os navios iranianos a fundearem no Rio. Fez bem, as leis internacionais estavam do seu lado.

Em 15 de março, novamente as duas potências viram-se em campos opostos. O presidente Zelensky mostrara interesse numa proposta de cessar-fogo chinesa.

Imediatamente Biden acionou o porta-voz John Kirby para rugir: “nós não apoiamos sugestões de cessar fogo, agora”.

E explicou que, sendo ideia da China, “a reunião seria em Moscou e simplesmente beneficiaria a Rússia”.

Como se sabe, Lula achou que a proposta chinesa valia ser analisada. Mais recentemente, o ministro do Exterior do Brasil manifestou-se por um cessar-fogo imediato. E atreveu-se a criticar as sanções dos EUA e da União Europeia por estarem prejudicando o mundo.

Em 2 de abril, o governo Lula deu outra demonstração de sua neutralidade. Tendo a Rússia proposto na ONU uma investigação imparcial da explosão do gasoduto Nord Stream 2, os EUA e a União Europeia vetaram, mas o Brasil apoiou.

Ficou uma pergunta que não quer calar: se os EUA, acusados de autores dessa sabotagem, eram inocentes, por que não queriam que fosse investigada? Como diz o velho ditado; “quem não deve, não teme”.

Em meados de abril, em Pequim, Lula continuou incomodando. Melhor dizendo, enfurecendo os norte-americanos. Veio com uma tirada que os tirou do sério: a Ucrânia seria tão responsável pela guerra quanto a Rússia.

Não explicou a razão dessa, digamos, absurda ideia (dizem que ele não havia passado do segundo uísque). Seria apenas para irritar Biden? Ou para agradar Xi, que o recebera com o esplendor e as honrarias de um imperador da dinastia Ming?

Agradar Xi, até que se entende, devido à liderança chinesa nas importações de bens brasileiros e de novos acordos econômicos que estariam em vias de ser concluídos.

Mas não há importância nas rações russas para o agronegócio brasileiro, isso não poderia justificar a boa vontade com as ações agressivas de Putin.

Já ao se referir às ações agressivas dos EUA, Lula foi longe ao dizer que eles precisavam parar de estimular a guerra da Ucrânia e começar a falar em paz.

Desta vez não foi uma acusação gratuita. Biden vem constantemente aparecendo na TV e jornais, anunciando o envio de novas e aterradoras armas à Ucrânia, ameaçando Putin, denunciando barbaridades praticadas por soldados russos, fornecendo mísseis teleguiados de última geração, que só faltavam falar... E assim por diante.

Apelos à paz, jamais. Parece que o principal objetivo dos EUA na guerra da Ucrânia é acabar com a Rússia, como grande potência, e Putin, como grande inimigo.

Nos primeiros meses do conflito, quando então se falava em reuniões de paz, Macron, o premier francês, relatou que Boris Johnson, então primeiro-ministro do Reino Unido e vassalo da Casa Branca, lhe fez interessantes revelações.

Em visita inesperada a Kiev, Boris informou ao presidente ucraniano que o Reino Unido estava numa guerra de longa duração e não participaria de qualquer acordo com o Kremlin pois o “Ocidente coletivamente” via chances de forçar a Rússia a ceder, estando determinado a fazer o máximo por isso (Ukraine Pravda, 6/5/2022).

Um mês antes, Biden, falando em Varsóvia, relatou objetivos da participação norte-americana na guerra da Ucrânia, até então desconhecidos. “Pelo amor de Deus”, bradou o presidente, “esse homem (Putin) não pode permanecer no poder (Washington Post, 7/4/2022)”.

Algumas semanas depois, o general Austin, secretário da Defesa dos EUA, anunciou que o novo objetivo do governo Biden na guerra da Ucrânia era enfraquecer a Rússia (The Ron Paul Institute for Peace and Prosperity, 23/5/2022).

Deixando um pouco a guerra da Ucrânia de lado, Lula visitou uma unidade da Huawei, em Xangai, onde declarou que o motivo da sua presença era “dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação com os chineses”. O que parece óbvio.

Mais relevante foi outra frase: “ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”. Casualmente, os EUA tinham, um ano atrás, pressionado o Brasil para proibir a entrada da tecnologia 5G, da Huawei. Esta empresa é a líder global de tecnologia de soluções de informação da indústria e das comunicações e um dos pilares da economia chinesa. Tio Sam queria vê-la naufragar.

Apesar da insistência, o Brasil resistiu. A 5G da Huawei foi aprovada e está sendo usada por muitas empresas do país.

Olhando as coisas friamente, vemos que, no período janeiro/abril, nas quatro vezes em que o governo Lula se colocou contra interesses norte-americanos, suas posições foram perfeitamente legais, de acordo com o princípio de neutralidade internacional.

Quanto às declarações lançadas por Lula em Pequim e Abu Dhabi, embora, em geral, desagradáveis para a Casa Branca, colocar a Ucrânia como corresponsável pela guerra, ao lado da Rússia, foi a única totalmente fora dos limites da normalidade.

Para a diplomacia norte-americana, ficou uma lição; não devem tratar o Brasil como a Guatemala ou as ilhas Kiribati.

 

Fonte: Correio da Cidadania

 

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