Brasil não tem
dados raciais de 90% dos servidores públicos desde 2006
Uma
nova lei foi sancionada nessa semana para reverter um cenário de invisibilidade
de dados de raça e cor, em especial na administração pública. A Lei 14.553/2023
altera o Estatuto da Igualdade Racial e determina procedimentos e critérios de
coleta de informações relativas a cor e raça no mercado de trabalho, com o
objetivo de subsidiar políticas públicas.
Apesar
da norma valer para registros administrativos nos setores privados e públicos,
o problema de invisibilidade de dados é mais grave na administração pública. A
ausência de dados é detectada nos órgãos de nível municipal, estadual e
federal.
Mais
de 90% dos servidores públicos não têm sua cor identificada desde 2006, quando
o quesito raça/cor foi inserido, de fato, na Relação Anual de Informações
Sociais (RAIS). Essa base de dados, organizada pelo Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), é a principal fonte para pesquisas sobre a situação do mercado
de trabalho formal no país. Os dados de raça/cor começaram a ser captados na
RAIS 1999, mas o MTE só liberou o acesso da variável a partir da RAIS 2006, sob
a justificativa de que, naquele momento, as informações atingiram um “grau de
consistência suficiente”.
“Precisamos
ter mecanismos para avaliar a evolução das políticas públicas. Se, por exemplo,
não há uma pessoa negra em cargos de chefia hoje, precisamos saber como o
cenário vai evoluir em 10, 15 anos. Se ainda continuar sem ninguém, tem alguma
coisa errada”, afirmou o deputado federal Vicentinho (PT-SP), autor do projeto
de lei.
A
invisibilidade não é total porque, há pouco mais de dois anos, o IPEA analisou
e publicou alguns dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos
Humanos (SIAPE), responsável pela gestão de informações de pessoal no governo
federal e que disponibiliza consultas públicas muito limitadas sobre dados de
cor e raça. Essas análises, que vão apenas até 2020, estão restritas ao perfil
racial do Executivo federal, que na RAIS 2021 representa 3,2% dos servidores da
administração pública. Os gráficos e tabelas podem ser consultados na
plataforma Atlas do Estado Brasileiro.
Por
conta dessa invisibilidade, a lei, publicada no Diário Oficial da União de
segunda-feira (24), também determina que o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) faça um censo, a cada cinco anos, sobre a participação de
cada grupo étnico-racial empregado no setor público.
As
informações devem ser utilizadas na Política Nacional de Promoção da Igualdade
Racial, instituída pelo Estatuto da Igualdade Racial, que visa reduzir as
desigualdades raciais no Brasil.
• O que muda com a lei
Empregadores
do setor público e privado devem incluir nos registros administrativos um campo
para que os empregados se autoclassifiquem segundo o segmento étnico e racial a
que pertencem - ou seja, não deve ser um processo de heteroidentificação pelas
equipes de recursos humanos.
• O trabalhador deve indicar sua raça nos
seguintes formulários:
admissão
e demissão no emprego;
acidente
de trabalho;
inscrição
de segurados e dependentes no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS);
pesquisas
do IBGE;
registro
feito no Sistema Nacional de Emprego (Sine);
e
na Relação Anual de Informações Sociais (Rais).
• Lei não prevê sanções a quem descumprir
A
nova legislação não prevê nenhum tipo de sanção aos órgãos e empresas que a
descumprirem. Para o senador Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto que
antecedeu a lei, o Estatuto da Igualdade Racial precisa ser incorporado por
nossa sociedade e instituições e “penalizar uma sociedade que deve ser educada
para promoção da igualdade racial não é o caminho”.
“O
Brasil possui instituições como o Ministério Público, que entre as suas funções
tem o dever de fiscalizar as legislações, e a sociedade civil, que nos ajudam a
fiscalizar as instituições que não implantarem a política. Acredito que este é
o caminho”, disse o parlamentar.
Vicentinho
também é contra o uso de sanções, inicialmente. “Lei boa é aquela que as
pessoas têm consciência de que têm que cumprir”, afirma. Mas não descarta que
haja, no futuro, alguma medida de obrigatoriedade. “Se percebermos que [a lei]
não está sendo considerada em absolutamente nada, aí, sim, nós vamos entrar com
uma emenda ou o governo terá que entrar com portarias para a exigência do
cumprimento”, ponderou.
Procurado
pela Alma Preta, o Ministério do Trabalho e Emprego disse em nota que pensa em
desenvolver trabalhos de avaliação e conscientização com as empresas e não
desconsidera multar por falta de preenchimento algumas companhias.
"Existe
a possibilidade de multa por falta de preenchimento. No eSocial, já fizemos uma
consulta jurídica sobre mudança na forma de coleta para reforçar para os
empregadores que a informação é da responsabilidade deles e é relevante para as
estatísticas públicas. No entanto, se não houver uma conscientização
generalizada de que essa é uma informação crucial para diminuir desigualdades,
continuaremos a ter informações insuficientes sobre o tema nos registros
administrativos", afirmou a pasta.
• Dados de raça e cor são subutilizados
Um
dos desafios dos estudos raciais sobre mercado de trabalho são argumentos que
descredibilizam os dados da RAIS, por exemplo. Entidades relevantes como o
Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) e o Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) afirmam não
utilizar esses dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sob a
justificativa de que são as empresas que atribuem a cor ou raça das pessoas, ou
seja, a declaração dependeria do olhar dos funcionários de recursos humanos.
Ana
Georgina, economista e pesquisadora do DIEESE, afirma que a falta de dados
raciais precisos do RAIS é uma barreira para a produção de pesquisas sobre o
mercado de trabalho no Brasil. "Adoraríamos que os dados fossem mais
confiáveis e que nós pudéssemos utilizar, porque é importante que existam
recortes raciais quando a gente faz pesquisa, sobretudo, em relação ao mercado
de trabalho".
A
MTE orienta o trabalhador a fazer "a autodeclaração de sua raça/etnia e de
que as empresas não façam a atribuição desse quesito por meio de fotos ou
impressões dos funcionários dos departamentos de recursos humanos". No
entanto, o manual de instrução para preenchimento do RAIS de 2017 e 2022 não
sinalizam para a autodeclaração. Pelo contrário: no trecho destinado para
instruir a resposta do questionário, há um pedido para o responsável escolher
as opções a partir do "código compatível com a cor ou raça do
trabalhador".
No
artigo "Investigação sobre Qualidade da Variável Cor ou Raça na RAIS
através de um Estudo Comparativo com a PNAD do IBGE", os autores apontam
como um dos possíveis problemas da RAIS o "embranquecimento" dos
funcionários por parte dos patrões, como uma tentativa de
"elogiá-los" e o descreverem do ponto de vista racial de um modo a os
clarear ou optar por uma não identificação.
Já
o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) trabalha
com esses dados de forma setorial no setor privado, justamente porque a não
identificação no setor privado é muito menor.
“Eu
realizo censos dentro das organizações e levantamentos setoriais desde 2000. A
Febraban faz censo desde 2007 e atualiza essa informação de tempos em tempos.
Em 2019, por exemplo, o censo deles contava com os 30 maiores bancos e, ao
olhar para o setor bancário na RAIS, são dados que têm aderência entre si”,
analisa Mário Rogério, diretor e pesquisador do CEERT.
Para
Mário, no entanto, é preciso que hajam normas mais claras para a atualização de
dados. “É preciso definir regras para que tanto público e privado atualizem a
informação e que faça isso de forma recorrente”.
Outro
ponto a ser avaliado é a qualidade dos dados, conforme sinaliza Wesley Matheus,
doutor em ciência política pela UFMG e pesquisador do Afro Cebrap. "Não
quer dizer que por ser muito preenchida, que as informações oriundas desse
preenchimento são boas. A gente tem que tomar muito cuidado ao analisar
diretamente essa ausência de dados e já querer tirar conclusões, porque um
cenário de baixo ou intermediário preenchimento pode demonstrar boas
informações".
O
MTE recorda que sempre houve problemas no levantamento nos dados raciais de
trabalhadores e coloca o racismo como um elemento para explicar esse cenário.
"Da parte do trabalhador, ainda é forte a percepção que se declarar negro,
pardo, indígena pode significar não conseguir o trabalho, pois ainda persiste a
percepção de discriminação dessas pessoas por parte das áreas responsáveis por
recrutamento e seleção para postos de trabalho".
Leonardo
Silveira, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Afro Cebrap, acredita que o Brasil
tem um enorme potencial para o processamento de dados e que é necessário que
exista maior rigor para o levantamento de informações sobre raça e cor no país.
"O
RAIS, o censo da educação básica, censo do ensino superior, CadÚnico, sistema
de informações de mortalidade no DataSuS, todos eles, quando a gente chega na
variável racial, cria-se algumas dúvidas em relação a isso. A sociedade civil,
os movimentos sociais, a universidade podem pautar o governo no sentido de
aprimorar essa forma de coleta de dados raciais", explica.
• Metodologia de definição do setor
público
Para
chegar aos dados de emprego formal da administração pública, a Alma Preta
utilizou os microdados da RAIS disponibilizados pelo site Base dos Dados. Foram
considerados apenas os vínculos ativos em 31/12 de cada ano desde 1999, mas os
dados de raça/cor só apareceram a partir de 2006.
>>>
A reportagem utilizou dois filtros:
.
Pelo campo de raça/cor. De 2006 a 2009, alguns campos estavam em branco e foram
contabilizados como “Não identificados”.
.
Pela Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE 2.0): para chegar às
informações do setor “administração pública, defesa e seguridade social”, o
filtro foi feito pelos seguintes códigos: 84.11-6, 84.12-4, 84.13-2, 84.21-3,
84.22-1, 84.23-0, 84.24-8, 84.25-6 e 84.30-2. Abaixo a descrição de cada um
deles:
84.11-6
Administração pública em geral
84.12-4
Regulação das atividades de saúde, educação, serviços culturais e outros
serviços sociais
84.13-2
Regulação das atividades econômicas
84.21-3
Relações exteriores
84.22-1
Defesa
84.23-0
Justiça
84.24-8
Segurança e ordem pública
84.25-6
Defesa Civil
84.30-2
Seguridade social obrigatória
Fonte:
Jornal do Brasil
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