BAHIA LIVRE: Que
fim teve Maria Quitéria? Heroína não foi incorporada ao Exército e morreu no
anonimato
“Assim
como ela nos mostrou de maneira tão notável os sentimentos do mais exaltado
patriotismo, da mesma sorte o Imperador recompensou seu valor, concedendo-lhe o
soldo de alferes por decreto e ordenando (…) que dessem todas as suas
providências cada um pela sua repartição, para o seu regresso à Bahia na
primeira embarcação”.
A
ordem de D. Pedro I, publicada no equivalente ao Diário Oficial nos tempos do
império, era um prenúncio do que se seguiria: a baiana Maria Quitéria,
reconhecida como heroína em sua luta pela Independência, deveria voltar para
casa na primeira oportunidade. Ela não seria nem mesmo integrada aos quadros do
Exército recém-criado, nem mesmo ao Batalhão dos Periquitos do qual fez parte e
o qual tinha sido incorporado à força militar.
"Essa
passagem do ofício do imperador é como um 'muito obrigado pelo seu serviço, mas
a gente não quer que você continue mobilizada, armada no pós-guerra", diz
o historiador da arte Nathan Gomes, que pesquisou Maria Quitéria na formação do
imaginário nacional em seu mestrado em Estudos Brasileiros na Universidade de
São Paulo (USP), defendido no ano passado.
De
acordo com ele, havia uma grande preocupação, por parte do governo e das
elites, com um contingente de pessoas - muitas delas pobres, escravizados e
indígenas - que estavam agora armadas e politizadas. "O que acontece
quando a guerra acaba? O caso de Maria Quitéria é um pouco nesse sentido
também. É importante que ela volte para casa, para esse lugar esperado para uma
mulher. Então ela volta para a Bahia, se casa e tem uma filha", adianta.
"O
que acontece quando a guerra acaba? O caso de Maria Quitéria é um pouco nesse
sentido também. É importante que ela volte para casa, para esse lugar esperado
para uma mulher. Então ela volta para a Bahia, se casa e tem uma filha"
A
vida de Maria Quitéria depois do 2 de Julho se pareceria, portanto, com a de
tantas outras mulheres da época. Por isso, ainda há um certo mistério sobre
aspectos de sua vida após a guerra. O que se sabe é que, quando ela morreu, em
1853, aos 61 anos, estava vivendo no anonimato. A historiadora Marianna Farias,
mestranda em História na Universidade Federal da Bahia (Ufba), conta que a
documentação do Exército reconheceu e informou a morte de Quitéria sem nenhuma
pompa ou cerimônia.
"Por
isso a gente fala que, sim, foi uma morte no esquecimento. Esse é o destino de
muitos heróis e heroínas da independência, infelizmente. Muitas mulheres são
esquecidas", diz ela, que desenvolve pesquisa sobre Maria Quitéria.
Para
Marianna, ficar anônima dificilmente teria sido uma escolha da heroína.
"Acho que foi realmente pelas circunstâncias da vida dela, que levaram a
esse destino com falta de condições econômicas, até porque o soldo era uma
miséria, e falta de apoio", acrescenta.
• Floreios
Mesmo
entre os fatos mais conhecidos sobre a vida de Maria Quitéria, há
inconsistências. Ainda assim, é sabido que Maria Quitéria, nascida numa fazenda
em São José das Itapororocas (localidade que hoje é distrito de Feira de
Santana e que leva seu nome), se alistou no Batalhão dos Periquitos, um dos
batalhões de guerra, em 1822.
Quando
demonstrou interesse inicialmente, foi logo repreendida pelo pai, que não
autorizou a empreitada. Isso, porém, não a impediu de fugir para a casa da irmã
com um plano maior. Quitéria se vestiu com as roupas do cunhado e se apresentou
com o nome dele para que pudesse se alistar. Foi assim que nasceu o soldado
José Medeiros.
Estima-se
que ela tenha passado cerca de seis meses com a identidade masculina, entre os
10 em que permaneceu no front de batalha. “Ao contrário do que muita gente
pensa, ela já lutou com sua identidade revelada. A identidade do soldado
Medeiros foi só para ela se alistar no batalhão”, explica a historiadora
Marianna Farias.
Sabe-se
que ela atuou em ao menos três frentes principais: o batalhão que protege a
Ilha de Maré; depois vai para Itapuã e participa da batalha de Pirajá e, por
fim, estava no grupo que foi atacado na estrada da Pituba por soldados
portugueses.
"Tem
muitas biografias que floreiam muito a história da vida dela. O historiador tem
que juntar as pecinhas e reconstruir o histórico mas com filtro e isso não era
feito nas décadas de 1940, 50. Quando ela volta para a Bahia, muitos biógrafos
dizem que a família recebeu muito bem, outros dizem que recebeu muito mal. Não
tem como afirmar nem uma coisa, nem outra"
Mesmo
o encontro com o imperador não conseguiu fugir desses “floreios”. “Essa
cerimônia tem uns contornos míticos. Um detalhe muito citado é de que ela teria
pedido uma carta ao imperador pedindo desculpas ao pai por ter fugido. Essa
carta nunca foi encontrada”, pontua o historiador da arte Nathan Gomes.
Já
na Bahia, Quitéria se casou com o lavrador Gabriel Pereira de Brito. Foi seu
segundo casamento já que, durante a guerra, ela se casara com João José Luís,
morto pouco depois. Com Gabriel, teve uma filha: Luísa Maria da Conceição.
Depois,
pouco se sabe sobre seus caminhos. É conhecido que ela ficou viúva e que, após
a morte de seu pai, entrou em uma disputa judicial pela herança. A situação só
se resolveu quase uma década depois da morte de Maria Quitéria. A partir daí,
quase não há informações sobre descendentes ou parentes dela.
• Relatos
Como
destaca o professor Helder Maia, docente de Literatura Comparada na
Universidade de Lisboa e na USP, existem apenas três textos escritos por
pessoas que conheceram Maria Quitéria em vida. O mais importante deles, em sua
avaliação, é o da escritora inglesa Maria Graham, que conhece Quitéria na
ocasião em que ela viaja ao Rio de Janeiro para receber a medalha de heroína.
Nesse
relato, há um desenho feito por um amigo de Maria Graham que é muito
questionado porque mostraria uma Quitéria embranquecida. Além disso, há um
relato do poeta baiano Ladislau Titara, escrito pouco após sua morte e que
destaca a ideia da “amazona brasileira” - quase como o que entendemos hoje como
a Mulher Maravilha. “Essas construções históricas e literárias de Maria
Quitéria sempre vão tentar construir a ideia de heroína, de valorizar o campo
de batalha”, explica Maia.
Para
a maioria dos pesquisadores, o principal livro já escrito sobre Maria Quitéria
é a sua biografia de 1953, assinada por Pereira Reis Júnior, pelo centenário de
sua morte. Esse livro, inclusive, foi fruto de um financiamento do governo
federal, na época do último governo de Getúlio Vargas.
É
no século 20 - tanto pelo centenário da independência quanto pelo centenário da
morte dela - que sua história é revisitada e incorporada com mais frequência às
celebrações pela data. “Nesse período, se publicam muitos textos literários,
ela começa a aparecer em livros didáticos e existe uma série de ações do
governo”, acrescenta o professor.
• Desaparecimento
Um
dos aspectos importantes que costuma desaparecer nos textos acerca de Quitéria,
segundo Maia, é o fato de que ela viveu como homem por cerca de seis meses. Ao
mesmo tempo, em documentos como o feito por Maria Graham, a cadete é dita como
alguém “masculina o suficiente para ser entendida como homem”.
Para
ele, Quitéria pode ter vivido um trânsito de gênero - não necessariamente de
identidade. A maioria das narrativas, porém, ignora o fato de ela ter vivido
como homem ou reduz o período apenas a um disfarce. “Temos que ter cuidado
porque estamos falando de uma personagem do século 18 e a transmasculinidade é um
debate contemporâneo. Me soa problemático dizer que alguém vive seis, sete
meses como homem e isso não afeta em nada a sua identidade. Quando vemos o
testemunho de Maria Graham, existe alguma coisa ali que a gente não consegue
nomear, mas precisa perceber de uma forma diferente”, pondera.
Além
de apenas terem sido incorporadas ao Exército brasileiro em 1992, as mulheres
só tiveram a possibilidade de ir à guerra a partir de 2012, com um decreto
sancionado pela então presidenta Dilma Rousseff que permitiu o ingresso no
ensino militar bélico.
"Longe
de mim dizer que ela (Quitéria) teria vivido como uma pessoa trans. Não é isso.
Mas se a gente pensar que o exército é uma instituição que produz
masculinidades hegemônicas e violentas, tem algo a mais sobre o que a gente
repete de que seria apenas um disfarce sobre a guerra"
Outro
aspecto que é questionado por historiadores é a representação nas primeiras
pinturas feitas de Quitéria. Nas primeiras, é possível ver uma mulher
embranquecida - em pinturas de 1823 e 1824, inclusive, a pele branca é
contornada por traços rosados. Os cabelos parecem ser lisos e olhos claros.
No
entanto, Maria Quitéria foi uma mulher parda com traços indígenas. “O século 19
vai retratar Maria Quitéria totalmente branca. Tem desenho dela ruiva. E muito
masculinizada É uma visão inglesa sobre Maria Quitéria”, conta a historiadora
Marianna Farias.
Já
no século 20, porém, há uma mudança na forma de olhar a independência - tanto
por parte do estado quanto dos brasileiros. Surge uma tendência de valorizar o
nativo, os indígenas e o povo que participou dos confrontos. Ela começa a ser
retratada como uma mulher de pele mais escurecida, mais feminina e com
características menos europeias.
“São
construções. Não dá para pegar a primeira gravura feita sobre ela e achar que é
um reflexo da realidade”, completa Marianna.
• Esquecimento
Quanto
ao esquecimento, porém, o historiador da arte Nathan Gomes é mais cauteloso.
Para ele, há dois aspectos a serem levados em conta. “De fato, em vida, teve um
esquecimento sim. Provavelmente nos desfiles do 2 de Julho tinha, localmente,
um reavivamento dessa atuação dela”, pondera.
Além
disso, no centenário da independência, houve uma grande movimentação com a
inauguração do Museu Paulista - hoje Museu do Ipiranga. É neste período que é
pintada a imagem que talvez seja a mais conhecida de Quitéria. Esse quadro, que
tem 2,2 metros de altura, foi posto no salão de honra do museu, ao lado do
quadro O Grito do Ipiranga e de frente ao retrato da imperatriz Leopoldina. “Eu
considero a inauguração desse retrato como consagração dessa memória”, diz
Gomes.
Hoje,
a imagem de Quitéria é disputada por dois movimentos tidos como contraditórios:
os militares, através do Exército, e os movimentos feministas. “O Exército puxa
para si, mas mesmo depois dessa comemoração toda, não tinha mudado nada para as
mulheres no Exército. Tem aí uma contradição, mas também esse lugar de disputa
em torno da memória dela, o que faz dela uma memória viva em disputa”,
acrescenta.
Fonte:
Correio
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