Dando nome à fritura climática
A humanidade se acostumou a nomear furacões e
outros eventos extremos com nomes próprios, como Katrina e Andrew, que
devastaram o Caribe e a Lousiana (USA). Com as mudanças climáticas, os
meteorologistas começaram a batizar também eventos de extremo calor.
O atual, que se abateu sobre a Europa, foi batizado
pela Sociedade Meteorológica Italiana de Cérbero, o monstro de três cabeças
infernal da Divina Comédia de Dante Alighieri. Para a semana que entra, a nova
onda de calor, ainda mais escaldante, com temperaturas acima de 40 °C, já foi
batizada de Caronte, o barqueiro que entregava almas ao submundo na mitologia
grega. A prática de nominação oficial teve início na cidade de Sevilha,
Espanha, com a onda de calor Zoe, em 2022.
Parece ser fina ironia dos climatologistas nominar
a atual onda de Caronte, o transportador de almas para o mundo dos mortos, e
Cérbero, o monstro que as impede de voltar. Retratam o drama do caos climático:
o transporte da humanidade para um plano desconhecido e desafiador, sem
possibilidade de retorno.
Hoje são 60 milhões de pessoas expostas a índices
perigosos de calor. Há uma enorme incongruência com relação à causa e efeito:
no norte da China os termômetros marcaram 52 °C, mas o país continua a turbinar
o aquecimento global com a mais elevada queima de carvão de sua história.
Cidades como Hangzhou, Wuhan e Shijiazhuang anunciaram a abertura de abrigos
subterrâneos antiaéreos para moradores que buscam escapar do calor.
O Vietnã, com 30% de sua matriz energética
dependente do carvão, respondeu aos protestos da sociedade colocando na prisão
seus principais ativistas, entre os quais a jornalista Mai Phan Loi, que
acompanhava os compromissos do governo vietnamita em desenvolvimento
sustentável.
Os Estados Unidos avançam para a exploração de
petróleo no Ártico, enquanto o Vale da Morte (Califórnia) registrou na semana
passada 53 °C. Em Phoenix, Arizona, o calor matou pelo menos 18 pessoas e mais
69 mortes estão sob investigação. Seja no Arizona ou em Veneza (Itália),
pessoas estão recebendo tratamento para fortes queimaduras em função de quedas
ou de tocar superfícies muito quentes.
Em algumas áreas da Europa, idosos não podem mais
sair de casa, sob pena de danos à saúde, muitas vezes letais. O calor se tornou
a nova Covid. As temperaturas escaldantes forçam governos a tomar medidas
extraordinárias determinando ações de assistentes sociais para tentar
protegê-los.
Entregar comida a 45 °C passou a ser atividade
insalubre em Nova York, e trabalhadores que executam tarefas em espaços abertos
tiveram que deixar de trabalhar. Rodovias, ruas e atividades agrícolas se
tornaram proibitivas.
O turismo está sendo duramente atingido: Atenas,
Roma e Madri registram turistas passando mal em razão do calor e da insolação.
Na ilha de Rodes, cerca de 2 mil turistas foram evacuados na última sexta-feira
para fugir dos incêndios que deslocaram 30 mil pessoas de suas residências.
Em Pequim, um guia turístico desmaiou e morreu de
insolação enquanto fazia um tour pelo Palácio de Verão. Em pistas escaldantes
de aeroportos, manipuladores de bagagem trabalham sob risco e exaustão. Três
impecáveis guardas britânicos desmaiaram em Londres durante evento oficial. E
em Nápoles dois jogadores de futebol não resistiram ao calor e faleceram depois
do jogo.
O calor afeta duramente ecossistemas naturais. As
florestas boreais e resinosas do Canadá praticamente explodem em chamas por
causa da secura e do calor que reverbera em aproximadamente 570 incêndios sem
controle. Lançam na atmosfera material particulado que afeta a qualidade do ar
em escala continental, cobrindo grande parte do nordeste norte-americano. A
pluma de poluição já foi medida na Europa, do outro lado do Atlântico.
Os oceanos estão sendo drasticamente alterados por
migrações descontroladas de espécies que buscam áreas com mais oxigênio. No
golfo do México, as mortandades de peixes pelo excessivo calor são constantes.
Segundo Craig Donlon, chefe da Seção de Superfícies
Terrestres e Interior da Agência Espacial Europeia, esta é uma situação global
realmente surpreendente porque o aquecimento adicional da superfície que vemos
neste momento acabará sendo misturado à coluna de água do oceano: “Parte desse
excesso de calor chegará ao Oceano Ártico por meio de correntes oceânicas
através do Estreito de Fram e do Mar da Noruega, exacerbando ainda mais o
desaparecimento do gelo marinho do Ártico”.
Nesta semana, a NASA divulgou previsões climáticas
apontando para “mudanças sem precedentes no mundo todo”. O climatologista-chefe
Gavin Schimidt afirmou que julho de 2023 será o mês mais quente da história.
Caronte, a onda de calor que sucederá Cérbero, parece ser amostra grátis diante
dos cenários projetados em estudos divulgados na revista Nature Sustainability,
que traça perspectivas para o aquecimento de 2,7 °C, que elevaria o contingente
de exposição par 2 bilhões de pessoas em
locais com temperaturas médias anuais acima de 29 °C.
O estudo, intitulado “Quantificando os custos
humanos do Aquecimento Global”, aponta que, a partir de 1,5 °C, a cada décimo
de grau centígrado a mais haverá exposição de 120 milhões de pessoas ao calor
extremo. As instituições autoras, entre as quais estão Potsdam Institute for
Climate Impact Research, universidades de Washington, Carolina do Norte, Aarhus
e Wageningen, afirmam que a ação rápida da humanidade para reduzir as atuais
emissões evitaria os piores impactos.
Não falta constatação científica. As legislações e
o ativismo avançam, enquanto os governos empacam. Na França, o artigo 7º da lei
de 22 de agosto de 2021, conhecida como Clima e Resiliência, proíbe “a
publicidade relativa à comercialização ou promoção de combustíveis fósseis”. A
lei deveria ter entrado em vigor em agosto de 2022, mas permanece no limbo,
aguardando decreto regulamentador.
É incompreensível que, dado o conhecimento
acumulado sobre o estado de arte da atmosfera global e os fortes impactos
climáticos, a humanidade se mantenha no imobilismo da diplomacia inócua,
conforme retratam decisões mornas das cúpulas climáticas globais.
A cegueira conveniente e seletiva, conforme
Saramago afirma em seu Ensaio sobre a cegueira, apreende a superficialidade,
sem profundidade ou problematização resolutiva. Esse imobilismo inaceitável já
se arrasta demasiadamente. De forma urgente a humanidade tem de achar meios
eficientes para se defender da incompetência e dos interesses econômicos e
geopolíticos que patrocinam a inação climática.
Fonte: Por Carlos Bocuhy para o Le Monde
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