A nova era da catástrofe – e as saídas à barbárie
O capitalismo está em crise em todos os lugares e,
por isso, paira sobre nós “a sombra da catástrofe”. A pandemia de Covid-19, a
guerra Rússia-Ucrânia, o aumento da desigualdade, o aumento dos níveis de
pobreza entre e dentro das nações, juntamente com a concentração de riqueza e
do poder nas mãos de indivíduos e corporações poderosos. Ora, tudo isso vem
coroado pela catástrofe iminente do colapso climático.
“A era da catástrofe”,tal como foi cunhada por Eric
Hobsbawm, começou com a Primeira Guerra Mundial e foi seguida pela Grande
Depressão, a ascensão do fascismo na Alemanha e na Itália e terminou com a
Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. A nova era da catástrofe, assim nomeada
por Alex Callinicos, na qual vivemos há pelo menos uma década, pode terminar
com a destruição da vida no planeta, seja pelo colapso climático, pela guerra
ou por ambos. O pessimismo do intelecto vem derrubar, de fato, o espírito da
vontade otimista!?
Claro, foi o capitalismo que produziu essa situação.
E isso está de acordo como a síntese de Marx: “acumulai, acumulai! Eis Moisés e
os profetas”. A necessidade que o capital tem de crescer e, com isso, buscar
cada vez mais recursos, sejam minerais preciosos no solo ou peixes no mar,
impulsiona o sistema capitalista. É assim que ele destrói cada vez mais os
meios de subsistência e a saúde das populações em todo o planeta, especialmente
no Sul Global. O poder do capital global e de seus representantes
institucionais, como o FMI e o Banco Mundial, captura o Estado ou pelo menos
influencia fortemente a direção da política do governo, tornando os partidos
políticos de esquerda impotentes para mudar grande coisa. Ora, isso alimenta um
pessimismo que enxerga a situação como desesperadora.
No entanto, tal como Slavoj Žižek propôs em 2017, é
preciso ter a coragem de admitir que essa desesperança poderia, paradoxalmente,
ajudar a gerar uma mudança radical. Alex Callinicos escreveu um livro que
admite a escalada entorpecente da catástrofe, mas fornece munição suficiente
para aqueles que desejam ver um futuro como mais otimismo.
A sua abordagem visa “integrar os diferentes
aspectos de nossa situação em uma totalidade estruturada”. Como seria de
esperar de um ativista marxista e trotskista, ele defende fortemente o
socialismo como a solução, assim como a mobilização das massas da classe
trabalhadora, organizada de baixo para cima, como o caminho para alcançá-lo. O
capitalismo e suas forças motrizes estão, é claro, na raiz de todos os
problemas que se somam para criar essa situação catastrófica.
O livro fornece de início uma perspectiva histórica
para entender os fatos impulsionadores da primeira era da catástrofe, da idade
de ouro, ou seja, antes que os efeitos do neoliberalismo trouxessem essa nova
era. Esse primeiro, é seguido por capítulos sobre a crise ambiental, a situação
econômica global, a geopolítica de um mundo multipolar, as diferentes direções,
tanto à direita quanto à esquerda, da reação popular ao imperialismo, ao
racismo e ao declínio econômico, terminando com um capítulo que olha para o
futuro e para as forças que podem efetuar uma mudança socialista radical.
Na raiz da primeira catástrofe estava a rivalidade
de diferentes capitais nacionais e imperialistas em um mundo globalizado de
comércio relativamente livre. Isso terminou, em 1914, com uma guerra que viu o
triunfo do imperialismo britânico e francês, assim como a humilhação da
Alemanha. Fato este que alimentou o descontentamento popular que foi
aproveitado na Alemanha e na Itália por Hitler e Mussolini, com consequências
que terminaram em outra guerra mundial. A tentativa de afirmação do
imperialismo alemão foi trágica.
Por outro lado, a formação da URSS e a ascensão do
Japão, juntamente com a eventual entendimento dos EUA de que o futuro da Europa
e do Extremo Oriente era uma questão que imbricava com os seus próprios
interesses imperialistas, criaram, depois de 1945, um mundo bipolar que durou
até o fim da década dos anos 1980.
Os EUA e a URSS mapearam suas esferas de
influência, enquanto o Sul Global conseguiu superar formalmente o colonialismo
mais bruto, tentando assim resistir à hegemonia de seus governantes
anteriormente imperiais. Ao afirmar o não alinhamento com os blocos
imperialistas, pode jogar um bloco contra o outro para se afirmar nesse entretempo.
Ademais, o bloco soviético e a China emergente
ofereceram apoio material a muitos dos movimentos de libertação na Ásia e na
África. Esse mundo bipolar continuou durante o boom pós-guerra; a economia
mundial se manteve relativamente estável por causa da política econômica
keynesiana e da cooperação internacional até que as contradições do próprio
sistema resultaram no colapso do acordo pós-guerra.
Um mundo neoliberal de comércio mais livre, taxas
de câmbio flutuantes, liberalização financeira se desenvolveu. Viu-se, então,
outra virada da globalização do século, desta vez organizado em blocos
comerciais regulados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e dominado por
corporações financeiras e produtoras globais cada vez maiores e concentradas.
A grande diferença desta vez é a emergência
climática. O capitalismo fóssil, como argumenta Alex Callinicos, é o principal
motor da “destruição progressiva da natureza”. A extração de fósseis está no
centro do sistema de acumulação de capital e os produtores de fósseis, com seus
investimentos em exploração financiados pelos bancos, têm um forte controle
sobre os governos cujas políticas ambientais inevitavelmente refletem os
interesses dos produtores. Surgem, assim, consequências geopolíticas que tendem
tanto para o aquecimento global quanto para o aumento da produção de energias
renováveis.
O aquecimento global produz um desejo de acesso à
região do Ártico, o que está expandindo rivalidades geopolíticas tanto
comercial quanto militarmente. Por outro lado, a corrida às energias renováveis
coloca a China em uma posição poderosa como fabricante de baterias e células
solares e mineradora dos minerais necessários para produzi-los. De qualquer
forma, a destruição da natureza parece estar garantida nessa ordem.
Como aponta, Marx argumentou que a agricultura
capitalista teve um efeito de deterioração não apenas sobre os trabalhadores,
mas também sobre o solo. É claro que os produtos químicos e a mecanização
ajudaram a desacelerar ou mesmo reverter ambos os processos. Contudo, as suas
consequências não intencionais aumentaram a poluição de rios e mares pela
infiltração de fertilizantes químicos nas águas, bem como produziram os efeitos
da desertificação nos solos e sua capacidade de reter água devido ao cultivo
excessivo dos campos.
• Covid-19
e a guerra contra a natureza
Os efeitos da atividade humana na natureza ficaram
bem demonstrados pela pandemia da Covid-19. O livro tem uma seção especialmente
interessante sobre os efeitos da agricultura industrial “nojenta” (“disgusting”,
segundo palavra de Marx) do século XIX, sem falar em suas versões muito mais
intensivas que se seguiram.
Ele faz referência ao trabalho do epidemiologista
Rob Wallace, que enraizou a pandemia da Covid-19 nas mudanças climáticas. Estas
fizeram com que formas de vida animal se aglomerassem perto de áreas de
assentamento humano, aumentando assim o risco de propagação de doenças de
animais para humanos, como parece ter acontecido neste caso. A resposta
imediata à pandemia induzida pelo vírus foi encontrar uma vacina e isso nos pôs
nas garras do capitalismo corporativo. Ficamos presos à corrida disputada pelas
grandes empresas farmacêuticas para desenvolver uma vacina eficaz.
A história desse processo é um exemplo perfeito de
ganância corporativa, de captura do estado e da desigualdade global que tudo
condiciona. Grandes empresas farmacêuticas como a Pfizer fizeram fortuna com a
vacina porque venderam com lucro, ao contrário da vacina Oxford Astra-Zeneca
que foi vendida a preço de custo (embora não por muito tempo graças a Bill e
Melinda Gates, como explica). Não é de surpreender que essa última vacina,
supostamente menos eficaz, tenha sido logo descartada, provavelmente por causa
da captura dos serviços de saúde estaduais pelas grandes corporações.
O maior nível de desigualdade que se desenvolveu
tanto nacional quanto globalmente resultou em maiores níveis de infecção
nacionalmente quanto menor a renda familiar e internacionalmente, quanto mais
pobre o país, menor a disponibilidade da vacina. Os efeitos das medidas para
proteger as pessoas do vírus inevitavelmente envolveram um controle muito mais
rígido de suas vidas, especialmente durante os bloqueios, mas de forma mais
explícita na China, cuja política de transmissão zero efetivamente manteve as
pessoas presas.
Esse maior grau de controle do governo tem sido um
alimento para os teóricos da conspiração. Contudo, é mais provável que seja
mais um exemplo de tendências autoritárias burocráticas em ascensão. No
passado, elas pareciam ter sido revertidas ou pelo menos limitadas por meio da
ação popular, o que ocorreu mesmo na China. Foram, em parte, ignoradas tal como
ocorreu com o infame caso do primeiro-ministro britânico na época.
• Taxas
de lucro em queda
Acontecimentos como a pandemia de Covid desafiaram o
apoio da ortodoxia neoliberal a um estado mínimo e levaram a uma forma de
gestão da procura governada pelos bancos centrais (keynesianismo tecnocrático):
manutenção de taxas de juro baixas e impressão de dinheiro (flexibilização
quantitativa) para manter a atividade econômica a um nível que pudesse manter
os serviços públicos essenciais à atividade do sector privado, assim como para
manter alimentadas e hidratadas as pessoas que fornecem a mão-de-obra para
estes serviços.
A pandemia e agora a guerra Rússia-Ucrânia
obscureceram uma crise mais profunda do capitalismo que vem sendo criada por um
seu “velho amigo”, qual seja ele, o corte tendencial da taxa de lucro.
Baseando-se na obra de Michael Roberts, Alex Callinicos mostra como o declínio
da taxa de lucro global apareceu na década de 1960, como ele foi seguido por
uma crise de lucratividade na década de 1970, assim como por uma recuperação
neoliberal nos anos 1980 e 1990 até o início dos anos 2000. Daí em diante,
apareceu no horizonte o espectro crise, a qual manifestou fortemente na crise
financeira de 2007-8. Uma queda na taxa de lucro na década seguinte preparou o
terreno para o choque do Covid-19, em 2020.
Claro, essas taxas globais de lucro não nos dizem
nada sobre sua distribuição. Mas sabemos que bancos e instituições financeiras
se tornaram atores poderosos em todas as empresas globais, impulsionando a
mudança da atividade econômica e especialmente da atividade manufatureira para
áreas onde a mão de obra é mais barata e onde a produtividade é alta graças ao
uso da tecnologia avançada mais recente.
Como aponta, o motor do capitalismo é o crédito
fornecido pelos bancos, aparentemente ilimitado até que a crise econômica venha
causar uma inadimplência nos empréstimos, como aconteceu em 2007-8. Então, a interdependência
das instituições financeiras é exposta, fazendo com que as mais fracas quebrem,
ameaçando assim o sistema como um todo. Eis que o resgate keynesiano
tecnocrático dos mercados monetários pelos bancos centrais garantiu a liquidez
do sistema e a continuidade da criação de crédito, essencial para a
subsistência do sistema do capital.
O keynesianismo tecnocrático significa o fim do
neoliberalismo? Esta é uma questão levantada por Alex Callinicos ao concluir
seu capítulo sobre a economia pertinente à nova era da catástrofe. A resposta é
complicada. Ao expor essa complexidade, ele vê o neoliberalismo como
compreendendo uma concepção específica de liberdade: fortalecer as instituições
para preservar os mercados, permitir que a acumulação de capital prospere e que
fique garantida a proteção da classe capitalista e que ela possa acumular.
Consiste, também, num conjunto de políticas econômicas monetaristas que
teoricamente controlam a quantidade de dinheiro ofertado, mantendo assim um
nível de preços estável.
Porém, na prática o que realmente se controla é a
demanda por moeda, principalmente por meio da taxa de juros. Além disso, a
redução dos gastos do governo, a privatização dos serviços públicos e o aumento
do desemprego para conter o crescimento dos salários acabaram por controlar a
inflação, mas também enfraquecem os sindicatos, especialmente quando a
legislação antigreve se sobrepõe ao desemprego.
Embora o neoliberalismo parecesse exigir um estado
menor, ele exigia muito mais intervenção do Estado para garantir que os
mercados funcionassem de maneira “eficiente”, restaurando, se possível, taxas
de lucro mais opulentas. No entanto, a emergência do keynesianismo tecnocrático
parece sugerir um possível retrocesso do neoliberalismo. Pois, parece necessário
que seja dado um papel cada vez mais importante ao Estado para que ele possa
fazer com que as economias voltem a funcionar.
Como argumenta, uma resistência a essa tendência só
será bem-sucedida se vier de baixo (e a crescente atividade grevista que agora vemos
especialmente no Norte Global dá alguma esperança de que isso aconteça); caso
contrário, as políticas neoliberais continuarão a empobrecer a classe
trabalhadora e a expandir o precariado.
• Imperialismo
e guerra
A emergência climática e a crise econômica
perpetuada podem se tornar irrelevantes diante da catástrofe de um holocausto
nuclear. Depois de 1945, o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki pelos
Estados Unidos apresentou ao mundo as armas de destruição em massa. A URSS
desenvolveu a sua própria bomba nuclear, o que produziu o impasse e o bloqueio
da destruição mutuamente assegurada. Isso não impediu o imperialismo
norte-americano de afirmar a sua hegemonia sobre grande parte do mundo,
especialmente naquela parte anteriormente controlada pelo colonialismo
britânico e francês.
O longo boom pós-Segunda Guerra Mundial no Norte
Global e a formação e expansão do que se tornou a União Europeia (UE) desafiou,
mas não minou a hegemonia dos EUA, garantida por meio da OTAN e outras alianças
semelhantes em todo o mundo. O seu poder militar, entretanto, foi desafiado na
Indochina, mas reafirmado nas duas guerras do Iraque e no Afeganistão. Promoveu
a globalização econômica, inclusive trazendo a China para a OMC para garantir
que ela cumprisse as regras.
No entanto, tal política inclusiva não foi
oferecida à Rússia, um país historicamente dividido entre os que olhavam para a
Europa e os que olhavam para a Ásia. Colocar a Rússia na OTAN e na UE teria não
apenas promovido os interesses do capital global, mas também desafiado a China.
O resultado provável agora, especialmente devido à guerra na Ucrânia, é uma
maior cooperação entre a China e a Rússia, com a primeira se movendo para o
oeste e desafiando ainda mais a visão unipolar de Washington sobre o mundo. No
entanto, como também observa Callinicos, a guerra aproximou a Europa e os EUA,
não apenas por ter impulsionado e expandido a OTAN, mas também por reorientar a
dependência da Europa do gás da Rússia para uma dependência “rosa” dos EUA.
Se um bloco econômico tivesse aliado a Europa à
Rússia e à China, isso teria se cristalizado como uma grande ameaça à hegemonia
dos EUA. Ora, a própria ascensão da China ao status de potência mundial é agora
vista como um problema maior. Como observa, a globalização deveria tornar esses
tipos de rivalidades nacionais redundantes à medida que a interdependência
econômica entre as principais potências se solidificasse com a ascensão do
capital global.
Mas uma vez que a concentração da fabricação de
semicondutores se encontra em Taiwan e dos gases especiais necessários para
fabricá-los são abundantes na Ucrânia, tem-se imediatamente um problema. Eis
que esses países se tornam estrategicamente críticos para as principais
economias que dominam o planeta. Quando a China considera Taiwan como uma de
suas províncias perdidas, tais fatores econômicos e geopolíticos levam ao mesmo
resultado: um potencial conflito militar pelo controle de recursos
estratégicos.
Alex Callinicos está certo ao argumentar que “o
mundo está se tornando um lugar muito mais perigoso”. Ele também está certo ao
apontar que a forma como os EUA e seus aliados estão apresentando os conflitos
atuais, na forma de uma batalha entre a democracia liberal e a autocracia, está
nos levando de volta ao discurso paranoico da Guerra Fria.
• A
ascensão da extrema direita
Certamente há uma luta dentro das democracias
burguesas para preservar as liberdades arduamente conquistadas contra a
crescente ameaça da extrema-direita. Como escreveu Gramsci sobre tempos semelhantes
aos atuais; são momentos em que o velho está morrendo e o novo não pode ainda
nascer, resultando no aparecimento de “uma variedade de sintomas mórbidos”.
Um desses sintomas é a ascensão da extrema direita
populista de Donald Trump nos EUA, que vem ameaçando a democracia liberal nesse
país. Ele mostra como essa extrema direita conseguiu, com um forte viés
racista, mobilizar aqueles que sofreram com o neoliberalismo da “elite”
política, assim como com os migrantes e os refugiados. O seu argumento é que a
ordem neoliberal está se desintegrando e que as “lutas dos trabalhadores vindas
de baixo” ainda não são poderosas o suficiente para oferecer uma alternativa
que produza um “novo” socialista. E isso, em sua opinião, está deixando o
espaço aberto para as promessas vazias da extrema direita.
Adotando uma visão mais global, menciona os
desenvolvimentos em países como Filipinas, Brasil, Índia e Egito. Aí, segundo
ele, encontra-se um padrão de políticas neoliberais fracassadas combinadas com
corrupção e má administração. Essa mistura gera novos governos de direita ou de
militares que ascendem com base no nacionalismo cultural e envolvendo tropos
especialmente anti-muçulmanos.
A pesquisa de Alex Callinicos sobre a extrema
direita na Europa mostra que ela segue um caminho semelhante, combinando o
racismo e a xenofobia do euroceticismo. E isso, para ele, se manifesta mais
obviamente no Reino Unido, onde o Partido Conservador mainstream, em um ato de
autopreservação, adotou algumas das políticas e atitudes dos partidos de
extrema direita, especialmente ao se comprometer com o Brexit. Como observa,
embora esses partidos tenham conseguido controlar o descontentamento popular,
eles não têm políticas econômicas coerentes para substituir as tipicamente
neoliberais.
Para aqueles que muitas vezes sentem que estamos de
volta a uma outra versão dos anos 1920 e 1930, ele aponta as diferenças, sendo
a mais óbvia a ausência de uma esquerda poderosa e revolucionária contra a qual
a extrema-direita possa se mobilizar. Ademais, falta à extrema-direita atual
uma estratégia econômica alternativa ao neoliberalismo, enquanto os fascistas
italianos na década de 1920 e os nazistas alemães na década de 1930 tinham
políticas muito claras de intervenção estatal e direção da economia, voltadas
para armamentismo.
No entanto, os níveis de descontentamento são tais
que oferecem à extrema direita uma influência política significativa. Há mesmo
a possibilidade de elementos fascistas ganharem alguma força como movimentos
políticos. Callinicos ilustra essas tendências com uma discussão sobre a
extrema-direita nos Estados Unidos, surpreendentemente descrita como o possível
elo fraco no capitalismo avançado.
A ideia de que o estado mais avançado e poderoso do
mundo é o elo fraco é motivada pelo ataque da extrema direita ao capitólio em
janeiro de 2021. Alex Callinicos identifica três “determinações” desse evento:
primeiro, os efeitos do neoliberalismo, especialmente as fortunas contrastantes
das grandes corporações com seus enormes lucros e altos executivos
excessivamente recompensados e a grande parte da população com salários reais
em queda ou estagnados ou sem empregos; em segundo lugar, estruturas políticas
como o sistema do Colégio Eleitoral de escolha de um presidente que pode
resultar – como no caso de Donald Trump – na eleição de um perdedor no voto
popular, assim como um senado que sub-representa os estados mais populosos; e
terceiro, a divisão racial que vê os afro-americanos super-representados na
extremidade inferior da distribuição de renda e, mais evidentemente,
super-representados em tiroteios policiais.
Baseando-se fortemente na análise do marxista dos
EUA por Mike Davis, mostra qual é a base social do trumpismo. Ela está
constituída como uma classe capitalista proprietária de “imóveis, private
equity, cassinos e serviços, os quais vão desde os exércitos privados até a
prática da usura nas cadeias”. Donald Trump é capaz de apresentar aqueles que
estão na base da distribuição de renda como vítimas de uma elite política mais
preocupada em ajudar outros países do que o seu próprio.
Como sugere, o relacionamento de Trump com as
grandes empresas dos EUA é “ambivalente”. Porém, as suas políticas de baixa
tributação e menos regulamentação não os prejudicaram, embora a eleição de
Biden tenha restabelecido um governo com o qual a América corporativa pode
fazer negócios com prazer. No entanto, os EUA ainda são um país tão dividido
que é possível pensar na possibilidade de que uma guerra civil possa estourar,
especialmente na sequência de grandes distúrbios climáticos.
Mesmo que Donald Trump não tenha permissão para
concorrer novamente como candidato presidencial, o trumpismo permanecerá e, à
medida que o número de desempregados e a classe trabalhadora desorganizada
crescer, o apoio desses elementos lúmpen ajudará o crescimento desse extremismo
de direita. O livro poderia ter dito mais sobre o apoio da classe trabalhadora
à direita tanto agora quanto durante a era nazista. Poderia, também, explicar o
que a classe trabalhadora organizada poderia fazer e como ela poderia lidar com
essa situação.
• Daqui
para onde?
Ora, para onde vai a esquerda a partir desse ponto?
O que de fato deve ser feito? Em seu capítulo final, Alex Callinicos retoma os
“recursos de esperança” de Raymond Williams. Ao mesmo tempo, ele novamente se
volta para a noção de gramsciana das “forças antagônicas” como o agente da
mudança radical. Ele as enraíza, como Gramsci, na classe trabalhadora
organizada, mas reconhecendo que esta classe hoje foi submetida a uma série de
derrotas sob o neoliberalismo. Ele discute as possibilidades das lutas atuais
sobre gênero e raça como aquelas que podem ajudar a formar “o novo sujeito da
emancipação da classe trabalhadora”.
A discussão da política de gênero se concentra na
emergência do movimento trans, que afirma o direito de escolher o próprio
gênero. Essa visão tem sido objeto de críticas de feministas, bem como da
direita política e da extrema-direita. O que eles têm em comum é a separação do
biológico do social, mas, como argumenta, essas duas determinações estão
inextricavelmente interconectadas.
A importância da reprodução da força de trabalho,
sem falar no poder da religião, torna a família a norma e as relações
heterossexuais uma preferência. Mas outras estruturas familiares reprodutivas
podem existir com relacionamentos homossexuais e transgêneros graças ao
progresso da ciência médica, o que permite a redesignação de gênero. Todos
esses desenvolvimentos desafiam não apenas as normas de gênero que têm sido tão
importantes para a reprodução da força de trabalho sob o capitalismo, mas o
próprio capitalismo.
Os movimentos contra o racismo que, como observa,
são sendo “institucionalizados no capitalismo como um todo”, também são
caminhos pelos quais os ativistas podem passar de uma campanha específica para uma
luta mais generalizada contra o sistema. A longa experiência das pessoas de cor
mais escura com padrões de vida precários agora está se espalhando para outras
seções (especialmente profissionais) da classe trabalhadora que nunca viveram
precariamente ou viram um declínio nos padrões de vida. A globalização da
produção cria uma coincidência de interesses entre a classe trabalhadora do
Norte e do Sul globais. Ademais, a classe trabalhadora mundial mencionada no
Manifesto Comunista “poderia assim começar a emergir como um agente coletivo
nesta era de catástrofe”.
A era digital apresenta todos os tipos de
possibilidades para o planejamento democrático, em vez das tentativas
relativamente rígidas de planejamento central, empregadas no passado sob o
socialismo de Estado (o termo, dada sua lealdade política, é do próprio Alex
Callinicos; mas aqui se preferiria falar em “capitalismo de Estado”).
Marx, ele nos lembra, concebeu o socialismo como
autoemancipação, de modo que o planejamento deve ser um processo de baixo para
cima. Plataformas digitais como Amazon e Facebook coletam enormes quantidades
de dados sobre o comportamento de consumo individual e eles poderiam alimentar
um processo de negociação com unidades de produção, liderado de baixo para
cima. Acima de tudo, o planejamento exigirá, nacional e globalmente, o
gerenciamento da emergência climática: os mercados e os quase-mercados de
comércio de carbono não o farão.
Alex Callinicos consulta uma ampla gama de
literatura sobre o assunto, embora surpreendentemente não se refira neste caso
ao trabalho de Paul Mason sobre as maneiras pelas quais o capitalismo já está a
indicar como pode ser o futuro pós-capitalista.
Em grande parte, por meio da digitalização, observa-se uma redução das
possibilidades de realização de lucros; eis que os preços de muitos bens e
serviços tendem a zero; no caso de alguns serviços digitais, se pode ver, que
eles já são gratuitos.
Esse teórico crítico faz referência a outros
trabalhos de Mason. Na seção final do livro, ele argumenta fortemente contra
uma coalizão de frente popular de esquerda e centro para combater o
ressurgimento da extrema-direita e a perspectiva do fascismo. Ele argumenta, ao
contrário de Mason, que a frente popular original não teve sucesso em derrotar
o fascismo na década de 1930.
Aponta que a referência aos interesses de classe
sempre foi crucial para uma boa compreensão de alianças efetivas: a esquerda
compreendia em grande parte a classe trabalhadora organizada, enquanto os
centristas liberais (burgueses) representavam seções do capital cujos
interesses discordavam fundamentalmente dos interesses da classe trabalhadora
organizada. A defesa da democracia burguesa requer uma sólida ação de classe da
esquerda organizada, não a colaboração com esse inimigo de classe. Somente uma
Frente Unida, unificando as forças políticas de esquerda conectadas à classe
trabalhadora organizada, segundo ele, pode ser bem-sucedida em mobilizar a
oposição ao fascismo para enfrentá-lo onde quer que apareça.
A resistência organizada ao capitalismo, a
construção de uma revolução socialista é, para ele, a única alternativa viável
para a catástrofe que está à espreita. Embora apresente uma visão marxista
trotskista da atividade política bem-sucedida, não é preciso ser um trotskista
para concordar com a maior parte de sua análise. Tem-se um livro que tenta
reunir as diferentes vertentes de nossa situação atual em um todo coerente e
inteligível e o faz de uma maneira altamente legível. O futuro pode parecer
pessimista, mas este livro dá bastante material para alimentar a vontade
otimista que ora está faltando.
Fonte: Por Peter Lawrence, com tradução em A Terra
é Redonda
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