Paulo Capel: Organizações Sociais de Saúde avançam nos recursos do SUS,
seja qual for o partido que governa o Estado
“Quando soubemos, o processo já estava andando”.
A declaração é do professor Emidio Matos, da
Universidade Federal do Piauí (UFPI), e primeiro secretário do Conselho
Estadual de Saúde. Ele se referia ao processo pelo qual o governo do
Piauí entregou a gestão três hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) a empresas de propriedade de
particulares, autodenominadas organizações sociais de saúde (OSS).
O processo se desenvolveu sem a “participação da
comunidade”, por meio de instâncias que a representam como é o caso do Conselho
Estadual de Saúde (CES), e a decisão do governo estadual se deu sem a anuência
do Conselho Estadual de Saúde violando, portanto, não apenas as leis 8.080 e
8.142, ambas de 1990, mas a própria Constituição da República (art. 198; III).
Ponto alto da privatização do SUS no estado foi a
inauguração, em 28 de julho de 2023, da Maternidade Dona Evangelina Rosa, com
293 leitos.
Segundo o governo do Piauí, R$ 175 milhões foram investidos na construção da
maternidade: R$ 129 milhões oriundos de recursos do próprio
Estado, destinados ao SUS e outros R$ 46 milhões provenientes de transferências
da União, vinculados ao orçamento do SUS.
O padrão se repete Brasil afora, independentemente
das alianças político-partidárias que governam em cada Estado.
Do Acre ao Rio Grande do Sul, passando pelo
Distrito Federal, recursos do orçamento público, destinados ao SUS, são
utilizados para construir e equipar unidades de saúde, de propriedade estatal,
que, ato contínuo, são terceirizadas para que particulares se ocupem da gestão,
incluindo a contratação de profissionais de saúde.
Conselhos de Saúde, municipais, estaduais e
nacional, entidades de saúde pública, sindicatos de servidores públicos
invariavelmente se posicionam contrariamente a gestores e outras autoridades
públicas que, não obstante a gritaria geral contra esse rumo que se impõe ao
SUS, seguem indiferentes em seus propósitos privatistas.
“É o neoliberalismo destruindo o SUS!” – denunciam
lideranças sindicais e movimentos sociais que atuam na área de saúde.
“Quem é atendido nessas unidades aprova a gestão
pelas organizações sociais de saúde” – contra-atacam gestores e entidades ligadas
às empresas, em meio a denúncias de
ilegalidades, má gestão financeira, malversações de recursos públicos e calotes
fiscais e trabalhistas.
São organizações sociais de saúde de araque, na
maioria das vezes.
Empresas que se constituem apenas para, tendo
registro de Pessoa Jurídica, avançar sobre recursos públicos, em administrações
públicas precárias ou que, muitas vezes deliberadamente, dispõem de frágeis
controles públicos e onde não há efetiva participação da comunidade.
As atuações dessas organizações sociais de saúde
vão deixando um rastro de crimes e até mesmo mortes.
Mas é preciso registrar que nem todas as
organizações sociais de saúde são iguais e muitas podem contribuir com o SUS –
e vêm fazendo isso, em vários municípios.
A condição para que isso ocorra, com transparência
e nos marcos das práticas democráticas que estão no DNA do SUS, é simples:
basta que as organizações sociais de saúde sejam de fato sociais, seus membros
e dirigentes sejam conhecidos, atuem apenas nos locais onde foram criadas e
estão organizadas, tenham seus projetos e relatórios submetidos e aprovados por
conselhos de saúde e sejam cogeridas pelos profissionais de saúde, nos marcos
dos princípios da cogestão do trabalho em saúde.
Não é muito. Nada de “megaOSS”, portanto. Nada de
uma organização social de saúde do Paraná ser, por exemplo, gestora do SUS em
Roraima. Nada de uma única organização social de saúde assumir a gestão de
vários bilhões de reais.
Esse é o caminho do gangsterismo sanitário, do fim
de qualquer perspectiva de gestão participativa e da violação das leis que
regem o SUS.
Decerto que, para algumas organizações sociais de
saúde de fachada, essas são exigências que as inviabilizam.
O sistema universal de saúde brasileiro, criado
pela Constituição de 1988 nada tem a ver com esse rumo que lhe está sendo dado
e que tem a rejeição frontal do Conselho Nacional de Saúde, empenhado neste
momento em avançar na deliberação de assegurar que, em cada unidade do
SUS, atue um conselho de saúde que delibere sobre planos, programas e projetos da unidade, seja
uma unidade básica, um ambulatório ou um hospital.
A decisão do Piauí chama a atenção, sobretudo, pelo
fato de envolver um governo estadual que, em princípio, não recebe pressões da
aliança política que lhe assegura a governabilidade, como ocorre em estados
como São Paulo e Rio de Janeiro.
Ao contrário, o partido dos Trabalhadores (PT) tem
uma posição de defesa de um “SUS 100% público e estatal”, a mesma que acabou de
ser reiterada pelos delegados que participaram da 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), cuja etapa nacional se realizou em Brasília, de 2 a 5 de julho
de 2023 e que reafirmou a necessidade de “implementar o SUS através de serviços
e servidores públicos, superando todas as formas de privatização na saúde (OS,
OSCIP, PP, FEDP, EBSERH), com instituição de cronograma de ações para esse
fim”.
A decisão do governo piauiense apresenta, portanto,
uma aparente incoerência, pois estaria se contrapondo não apenas a uma
orientação do partido que lidera a aliança política hegemônica no estado, mas à
orientação da 17ª CNS, com cujas decisões tanto o presidente Lula quanto a
ministra da Saúde, Nísia Trindade assumiram o compromisso de respeitar.
Paralelamente ao imbróglio do Piauí, e após o
encerramento da 17ª CNS, o presidente Lula sancionou a lei 14.621/2023, de que
redefiniu o programa Mais Médicos e transformou a Agência para o
Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), criada no governo
Bolsonaro, em Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AGSUS).
A lei estabelece que o estatuto da AGSUS será
aprovado pelo Conselho Deliberativo da agência, no prazo de 60 dias, contado a
partir da sua instalação.
A AGSUS seguirá sendo um serviço social autônomo,
na forma de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de
interesse coletivo e de utilidade pública e, segundo se informou, será
responsável pela gestão do programa dos médicos e apoiará a gestão dos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), em todos os níveis de atenção.
Os contratos trabalhistas realizados pela AGSUS,
segundo a lei 14.621/2023, ocorrerão “sob o regime estabelecido pela
Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943, e com base em plano próprio de cargos e salários”, com a admissão
dos “empregados da AGSUS” se dando “por meio de processo seletivo público”.
Nos movimentos sociais e entidades de saúde, a
reação à criação da AGSUS tem sido de espanto e uma certa perplexidade, pois
“nada disso foi dito durante a campanha” e a 17ª CNS reiterou a necessidade de
se “criar a Carreira Única Interfederativa, com financiamento tripartite, piso
salarial nacional para todas as categorias profissionais, com contratação
exclusiva por concurso público, combate à terceirização, valorização das
pessoas trabalhadoras da saúde e priorização das que trabalham no território,
ampliação das políticas de educação permanente, atendendo as reais necessidades
da população brasileira”.
Ø Governo Lula bloqueia R$ 785 milhões da Saúde e Educação
Seguindo a cartilha neoliberal de “responsabilidade
fiscal”, que mantém o Brasil subordinado às vontades do capital financeiro
nacional e imperialista detentor da dívida pública, o governo Lula 3 acaba de decretar seu primeiro corte em saúde e educação, continuando diretamente a política de austeridade de Paulo Guedes.
Na última sexta-feira (28), foi assinado por Lula e
publicado no Diário Oficial da União um novo
bloqueio de R$ 1,5 bilhão no Orçamento de 2023. Desses, R$ 452 milhões são
cortes na Saúde, R$ 333 milhões na Educação e R$ 97,5 milhões na pasta de Meio
Ambiente. Ao todo, já são R$ 3,2 bilhões em recursos cortados pelo governo em
2023.
Nas universidades, os cortes atingem a permanência
estudantil e a manutenção das condições das universidades, como água, luz e a
limpeza - ameaçando os salários e empregos de trabalhadoras e trabalhadores
terceirizados - mas também a pesquisa, a extensão e os hospitais
universitários. Na saúde, os cortes refletem diretamente no SUS, em ataques aos
terceirizados, precarização do atendimento e do trabalho de categorias
essenciais como a enfermagem, que se encontra em luta nacionalmente pelo piso salarial.
O novo bloqueio ocorre com o Teto de Gastos ainda
em vigor, mas na prática o Arcabouço Fiscal significa exatamente isso. Do ponto
de vista dos interesses da classe dominante, será um aperfeiçoamento do
impraticável ataque feito no governo Temer. O novo teto irá garantir que o
governo sempre tenha que investir menos do que arrecada, para garantir o
chamado “superávit primário” (a diferença entre arrecadação e investimento) que
vai para os grandes bancos com o pagamento de juros da dívida pública.
Em um contexto em que a meta fiscal é de déficit
primário de R$ 238 bilhões (2,2% do PIB), Haddad se comprometeu a entregar um déficit de 0,5% a 1% do PIB, tendo os cortes como um dos caminhos preferenciais, assim como as
privatizações estimuladas
no texto original do arcabouço de Haddad. A equipe de
Haddad também fala sobre “medidas de recomposição de receitas”, mas a verdade é
que sua Reforma
Tributária não altera a estrutura regressiva do sistema
tributário brasileiro, que incide principalmente sobre o consumo das massas e
não sobre o lucro e o patrimônio de empresários, multinacionais, latifundiários
e do capital financeiro.
Se durante a bonança econômica o lema do PT foi de
que os banqueiros “nunca lucraram tanto”, sua política em momentos de crise
sempre foi de ataques contra a classe trabalhadora. Desde a reforma da
previdência de Lula em 2003, passando pela redução do direito ao seguro
desemprego, o avanço na privatização da Petrobrás e cortes bilionários na
Educação durante o governo Dilma.
Após anos de cortes e ataques encabeçados pelo
golpista Temer e pela extrema-direita de Bolsonaro, no país em que quase 35
milhões de pessoas vivem sem água tratada, 100 milhões não têm acesso à coleta
de esgoto, e quase 50 milhões de pessoas estão em moradias consideradas
inadequadas, ataques como os cortes, o Arcabouço Fiscal e uma Reforma
Tributária apoiada pela FIESP e a bancada evangélica colocam um cenário claro
de que esses problemas estruturais serão mantidos pela Frente Ampla.
Enquanto indígenas e o MST são atacados por um
ministro do próprio governo, favorável ao Marco Temporal, o PSOL segue o
integrando através do ministério dos povos indígenas e de sua base parlamentar,
e nos sindicatos compõe chapas de unidade com o mesmo PT que votou em bloco a
favor do novo Teto de Gastos e que arrasta a CUT e os sindicatos para o apoio
aos seus ataques.
Os sindicatos e oposições independentes do governo,
como a Conlutas, podem cumprir um papel fundamental nesse momento, para criar
um pólo de aglutinação do movimento de trabalhadores, da juventude e de todos
os setores indígenas que querem se enfrentar com o Arcabouço Fiscal, o Marco
Temporal e pela reversão das reformas, cortes e privatizações. É preciso
organizar imediatamente a luta contra o primeiros ataques nacionais do governo
Lula-Alckmin, convocando assembleias em todas as categorias para organizar uma
paralisação nacional que seja parte de um plano de luta contra o arcabouço
fiscal, exigindo que as maiores centrais sindicais, como CUT e CTB, bem como a
UNE, que estão apontando no sentido oposto por sua ligação com o governo, se
somem a essa luta.
Fonte: A Terra é Redonda/Esquerda Diário
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