Especialistas em educação questionam autonomia dos estados em manter
escolas cívico-militares
Em 19 de julho, o Governo Federal publicou o
decreto que revoga o Programa das Escolas Cívico-Militares (Pecim), uma das
principais bandeiras de Bolsonaro para a educação. A extinção do programa, no
entanto, gerou um efeito contrário do esperado por especialistas da educação
que defendem a desmilitarização da educação, porque o Governo Federal está
deixando a decisão da manutenção das escolas a cargo das/os governadoras/es.
O tema virou uma oportunidade de disputa eleitoral
e ideológica, principalmente para governos bolsonaristas. São Paulo, Santa
Catarina e Paraná foram os primeiros a afirmarem que darão seguimento ao modelo
de ensino. Um levantamento feito pelo Poder 360 indica que ao menos 19 estados
pretendem manter ou readequar o modelo das escolas cívico-militares nas suas
redes de ensino.
A postura do executivo federal em defender uma
autonomia dos estados em relação à educação causa estranhamento quando levamos
em conta a competência exclusiva da União, de acordo com a Constituição, de
estabelecer diretrizes e bases para a área no país, tema com extensa
jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF).
O doutor em direito e professor de políticas
educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, reconhece
a importância da extinção do Pecim, mas considera e um equívoco essa posição do
MEC, que chama de omissão explícita, e foi validada pelo próprio presidente Lula
em declarações recentes.
“O MEC atua como um órgão de coordenação da
Política Nacional da Educação, que tem o papel legal de, em nome da União,
zelar pelo cumprimento da legislação nacional da educação, emanando normativas
de regulamentação, através do seu Conselho Nacional de Educação (CNE). O
Conselho é um órgão independente, mas vinculado ao MEC”, diz Ximenes.
Além disso, o que dá base legal para a presença de
policiais e bombeiros nas instituições de ensino é o decreto 9940/2019, editado
por Bolsonaro e baseado em um decreto da ditadura militar. O capítulo 6 da LDB
define quem são as/os profissionais da educação e quais formações eles precisam
ter para atuarem nas escolas. Todas/os que não estão listados ali, não deveriam
fazer parte da comunidade escolar, como é o caso de profissionais da segurança
pública.
“O Presidente da República também precisa ser
questionado sobre o porquê dele não exercer o seu poder de regulamentação em
rever este decreto. Lula poderia revogá-lo. Lamentavelmente há uma opção
deliberada pela omissão nesse caso. Não faltariam argumentos do ponto de vista
político, técnico ou jurídico. Tampouco falta obrigação do Governo Federal de
atuar”, diz Ximenes, que integra a Articulação contra o Ultraconservadorismo na
Educação.
Em um áudio do ministro da educação, Camilo
Santana, enviado via assessoria de imprensa do MEC para o Catarinas, ele
reconhece a inconstitucionalidade do modelo. “O Governo passado tentou criar
uma política por lei para transformar as escolas regulares do ensino básico em
escolas cívico-militares. Tentaram uma lei no Congresso Nacional, que não
passou nem pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação, porque ela é
inconstitucional”, diz. No entanto, reafirma as declarações sobre a suposta
autonomia dos estados: “O estado que quiser continuar a escola cívico-militar,
deve criá-la com base na legislação estadual”.
Perguntamos para o MEC se, como coordenador da
Política Nacional da Educação, irá propor normativas para pôr fim à
militarização das escolas no país e se há previsão para revogação do decreto
9940/2019, porém não tivemos resposta a essas questões.
Atualmente, 202 escolas integram o Pecim, o que
consiste em apenas 0,14% das unidades de ensino. No entanto, a Rede Nacional de
Pesquisa Sobre Militarização da Educação estima que há pelo menos 800 escolas
militarizadas no país.
“Em 2019, tínhamos cerca de duzentas escolas neste
modelo. Hoje, temos cerca de mil. Grande parte com nome de escolas
cívico-militares, uma terminologia que não existia. O Pecim fez esse impulsionamento”,
explica Catarina de Almeida, professora da Universidade de Brasília (UnB),
coordenadora da Rede e integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Para dar fim à militarização, especialistas
defendem uma política que faça oposição a este incentivo. Em março, mais de
duzentas entidades entregaram a Carta da sociedade civil pela desmilitarização
da educação e da vida para o Governo Federal. No texto, foram apresentadas
diferentes medidas, que iam além do corte de recursos do Programa, anunciado no
começo de junho.
“A extinção do Pecim deveria ser a primeira etapa
de um processo de média duração, que envolveria a regulação da militarização,
no sentido de restringi-la àquilo que a Constituição autoriza: que são as
escolas militares criadas no âmbito das Forças Armadas. Uma regulamentação que
explicitasse que a militarização das escolas comuns é incompatível com a
legislação educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Plano
Nacional de Educação (PNE) e os princípios básicos da educação nacional”, diz
Ximenes.
Somado ao pedido de revogação imediata do Pecim e
seu arcabouço legal, as entidades defendem o desenvolvimento de uma agenda que
combata a militarização da vida. Entre as propostas está a execução de medidas
que ajudem a superar o legado autoritário brasileiro, com responsabilização dos
responsáveis civis e militares por violações de direitos humanos e proteção a
crianças, adolescentes e jovens e docentes que sofrem com perseguições
políticas promovidas por grupos ultraconservadores; além do planejamento e
realização de medidas para o desencarceramento e para o combate ao genocídio da
juventude negra e periférica.
·
Lógica de repressão:
pedagogia de quartel nas escolas
As escolas cívico-militares não foram uma novidade
do governo anterior. O processo de militarização começou ainda na década de
1990 em Mato Grosso e Goiás, segundo os estudos da pós-doutora em Educação pela
Unicamp, Almeida. Os modelos têm formatos próprios de acordo com o estado e
município que o implementam, porém fazem parte de um projeto conservador para a
educação, que dialoga com movimentos como o Escola Sem Partido e pelo
homeschooling (educação domiciliar).
Almeida defende a ideia de que a educação é o
direito dos direitos. Ao atender 47,4 milhões de estudantes, segundo dados do
Censo Escolar da Educação Básica de 2022, a rede pública de ensino tem a
possibilidade de dar ferramentas para que a sociedade brasileira lute pelos
seus direitos.
“É preciso controlá-la. De que forma? Escola sem
Partido é controle. Homeschooling é controle. Militarização é controle. Os
currículos engessados são formas de controle. Segurança armada é controle. É
controle dos corpos, das mentes, do conhecimento. Há um projeto de destruição
da escola pública. O ataque é do tamanho do potencial que ela tem”, diz
Almeida.
Para a pesquisadora, apesar de terem financiamento
público, as escolas cívico-militares deixam de ser públicas a partir do momento
que passam a seguir regras de uma corporação, e terem normas diferentes da rede
de ensino comum. O Pecim, por exemplo, dividia as gestões em escolar
administrativa e de conduta, de responsabilidade de militares e/ou
profissionais de segurança, e a gestão pedagógica, sob os cuidados de pedagogos
e profissionais da educação. A gestão de conduta, porém, não está prevista na
LDB.
O foco das escolas militarizadas é fundamentalmente
a disciplina das/os estudantes, que afeta também professores/as. A proibição da
juventude em manifestar a sua identidade preocupa Mônica Ribeiro da Silva,
integrante do Observatório das escolas cívico-militares do Paraná e professora
da Universidade Federal do Paraná.
“Há um regramento estético bastante pesado em
relação a cabelo, cor de unha, piercing, tatuagem, no sentido de gerar uma
identidade de quartel para os estudantes. Um regramento, uma ética, uma
estética, um disciplinamento como se a escola fosse um quartel, o que não
corresponde à verdade”, afirma Ribeiro. Ela conta que as escolas possuem um
sistema de pontuações e penalidades de comportamentos, obrigam estudantes a
usar farda e incentivam a delação entre alunas/os.
Os princípios das áreas de educação e segurança
tampouco dialogam. Enquanto o texto constitucional defende que a segurança é
exercida para preservar a ordem pública, a educação deve respeitar a liberdade
de aprender e ensinar, a igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola, a gestão democrática da instituição de ensino.
Almeida usa o termo “pedagogia de quartel” para se
referir à rigidez das normas nas escolas cívico-militares, que são um ponto em
comum entre os diferentes modelos. Ela alerta que a lógica da polícia é
repressiva. “O que se espera da polícia? A lógica repressão para a manutenção
da ordem. No fundo é um projeto de sociedade em que as pessoas precisam estar
adestradas, caladas, organizadas, obedecendo à ordem estabelecida. As
consequências disso é você manter a sociedade racista, machista, misógina e
capacitista em que vivemos”, critica Almeida.
Não à toa, o resultado deste modelo tem aparecido
nas inúmeras denúncias de violações de direitos de crianças, adolescentes e
profissionais da educação. Há relatos de constrangimentos, perseguições, casos
de racismo e assédio dentro destas escolas. Em outubro de 2022, noticiamos um
caso de Santa Catarina. Um monitor e militar do exército que atuava em uma
escola de Florianópolis passou a ser investigado por estupro de vulnerável e
importunação sexual, após ser denunciado por uma aluna. Relatamos outros casos
em reportagem do projeto Gênero na Escola.
Em 2021, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) também demonstrou preocupação com a militarização. “A garantia
do direito à educação requer pedagogia que respeite a individualidade, promova
a cidadania e a socialização com respeito aos direitos humanos e que requer pessoal
especializado. Neste sentido, a Comissão chama a atenção para a distinta
natureza das forças armadas em comparação com aquela destinada à dinâmica
educacional”, diz trecho do relatório do organismo internacional.
Fonte: Por Fernanda Pessoa, no Portal Catarinas
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