'O futebol feminino é uma metáfora para o exercício de liberdade', diz
historiadora
Quatro décadas após a formação da primeira seleção
brasileira feminina de futebol e com a modalidade recebendo os primeiros e
históricos incentivos públicos e das federações para crescer, a luta pela
igualdade no esporte parece ter chegado a um ponto único.
Apesar de ainda carecer de investimentos, formação
e políticas de incentivo, a bola jogada por mulheres "furou a
bolha" na Copa do Mundo de 2023. A expressão foi usada pela
historiadora do esporte Aira Bonfim, que conversou com o Brasil de Fato sobre o
tema.
Neste mês ela lançou o livro Futebol
Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social
(1915-1941), que trata da história da modalidade entre mulheres e da
conjuntura que levou à proibição em 1941, no governo de Getúlio Vargas. A obra
tem produção independente e já está disponível para aquisição.
Aira falou sobre os impactos dessa jornada na
atualidade e as oportunidades que a paixão pelo esporte pode gerar para o
país. "Dentro dessa história, temos mulheres periféricas, pretas,
lésbicas, representantes do Nordeste recebendo o protagonismo, o que,
talvez, em muitas áreas da sociedade não consigamos fazer. Esse futebol se
torna uma metáfora para esse exercício de liberdade."
Ela também tratou da obrigatoriedade de que
grandes clubes tenham times femininos no Brasil e na América do Sul e sobre a
Estratégia Nacional para o Futebol Feminino, lançada pelo governo federal
no início deste ano. A historiadora lembrou da importância da formação de base
e dos debates políticos e sociais impulsionados pela modalidade.
"Nenhuma conquista é dada. Todas elas, de
alguma forma, são tensionadas o tempo inteiro. A história nos ensina isso.
Essas mulheres brasileiras já conquistaram muitas coisas no futebol. Quase nos
permitimos esquecer que brasileiras já encheram o Estádio do Pacaembu com
80.000 pessoas em 1940. Por vezes negligenciamos e quase apagamos essa
história. Esse futebol é muito oportuno para não esquecermos das nossas
histórias. Não esquecer das violências, não esquecer das proibições."
A pesquisadora se refere à histórica partida entre
os times femininos Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro, que reuniu
dezenas de milhares de pessoas no Pacaembu. De acordo com jornais da época, a
partida empolgou o público, mas desagradou conservadores. A reação ao
crescimento do esporte jogado por elas, levou à proibição no ano
seguinte.
>>>> Confira os principais trechos da
conversa:.
·
Modalidade cresceu
"O avanço é nítido e é uma percepção que vai
muito além do pesquisador, do historiador ou até mesmo das pessoas que
acompanham o nicho que é o futebol feminino. Podemos até pensar como uma bolha
e essa bolha estourou.
Se alguém não buscava informações
antigamente, não conhecia sobre essa atuação do esporte de alto
rendimento, principalmente. Agora você consegue ser afetado de outras maneiras.
Você liga a televisão, tem propaganda, divulgação do maior do torneio mundial,
os próprios campeonatos nacionais, transmissão tanto em TV aberta quanto
fechada, mas também permitindo uma manutenção dos meios de comunicação
alternativos, que deram muita visibilidade para a modalidade quando essas
empresas de comunicação hegemônicas, por vezes, não queriam falar sobre esse
futebol.
Não poderia deixar de destacar a internet como um
veículo muito importante dessa disseminação, de contribuir com a visibilidade
para a modalidade que tenta se profissionalizar. Eu acho que ainda é um esforço
a ser conquistado e perseguido.
É um esforço de educação, uma vez que as meninas
ainda não têm tanta acessibilidade ao aprendizado desse futebol e de uma
comunicação de maior qualidade. Não se trata apenas de uma empresa (de
comunicação) aderindo à modalidade, mas ela também se reeduca, com questões de
pautas feministas e com outras proposições de temas transversais na sociedade,
como o próprio racismo e homofobia, uma vez que é a partir desse futebol
feminino que conseguimos ter uma transparência em relação a afetividade das
próprias jogadoras.
Então, falar disso com mais clareza, com mais paz,
com mais tranquilidade, é algo que, infelizmente, o futebol masculino ainda
deixa muito atrás. Consequentemente, já desde 2015, os movimentos feministas e
os movimentos de mulheres em geral do Brasil e do mundo permitiram que
estivéssemos, hoje, colhendo frutos de luta. Nunca foi uma concessão das
entidades esportivas, nunca foi uma concessão das empresas patrocinadoras,
nunca foi nenhuma concessão masculina.
O futebol não nasce popular. Ele tem um histórico
de lutas, inclusive de lutas masculinas. Desde as suas legislações iniciais
temos interrupções, proibições, que não afetaram só as mulheres, mas homens
trabalhadores braçais, homens negros. Então acho que a história das
mulheres é quase que uma tradução de uma oportunidade, de uma educação que podemos
ter pelo esporte. Para melhorar a qualidade, não só dos atletas, dos
praticantes, das pessoas que trabalham, mas também da própria população, que
ele se torne uma metáfora de liberdade na vida."
·
Times femininos nos grandes clubes
"Novamente o futebol aparece como uma grande
ferramenta para equiparar algumas desigualdades. A desigualdade de gênero é
apenas um fator que atravessa o futebol. Há várias violências que atravessam o
futebol masculino também. No entanto, por vezes, desmobilizamos a força de transformação
a partir dessa modalidade, que está em um outro patamar.
Talvez, quando olhamos essas estruturas todas de
mercado, quem esteja fora da curva seja o futebol masculino. Você tem cada vez
menos capacidade de interferência e de mobilização por meio dos atletas, dos
clubes - que agora são empresas - das entidades esportivas.
No caso das mulheres, temos o mundo inteiro ali –
uma vez que a Fifa é quase uma ONU, pensando nas suas representatividades - com
a cobrança em relação a essas desigualdades e as faltas de oportunidades em
geral de as mulheres fazerem parte desse universo futeboleiro. Seja por meio da
modalidade de futebol feminino, mas também como um futebol de mulheres
trabalhando com esse esporte, inclusive no seu nicho masculino, nas bases, em todas
as suas variações.
É importante ressaltar que essas determinações têm
vindo de cima para baixo via Fifa. Não é algo que acontece porque os
dirigentes são bonzinhos, mas sim é uma demanda social, que surge de muitas
frentes diferentes. Os movimentos de mulheres, há muito tempo, já afetam a
própria entidade. Desde a década de 1970, quando não existia uma
oficialidade em torno da modalidade de mulheres que jogavam bola.
Então, também existe interesse da entidade de
centralizar essas decisões. Porque dá dinheiro sim o futebol feminino. Isso foi
uma grande balela, uma grande fake news que nos fizeram acreditar. Assim como
que o jogo é feio, que o jogo é lento e tantas outras mentiras.
Mais recentemente, por meio dessa pirâmide de
estruturas de poderes das entidades, temos a Conmebol com essa determinação que
vai orientar os países de América do Sul e, de alguma forma, ela vai fazer essa
orientação para que seja cumprida uma lista de regras. Entre essas regras temos
um investimento em uma representação do clube, com um projeto de futebol
feminino.
É importante pensar que, por mais que aparente ser
uma reparação histórica reparadora, nunca é para sempre. Nem precisa. É um
sistema de qualidade desse clube, uma vez que ele tem esse compromisso de
participar dos maiores eventos que essas instituições de futebol estão
promovendo na América do Sul e, consequentemente, no mundo.
Há outros itens. Por exemplo, segurança do
vestiário, dormitório da base, tamanho do campo, condições estruturais de
segurança. Até o momento foi necessário revalidar esses compromissos porque os
clubes não estavam colocando em prática. Para desenvolvermos uma modalidade,
nada melhor do que uma estrutura que já existe, já está pronta. Desde os
vestiários, academia de ginástica, toda a equipe contratada por esses clubes,
que já davam assistência para as bases masculinas.
Tudo isso é um investimento que, de alguma forma,
pode voltar e ser aprimorado e melhor aproveitado para desenvolver esse futebol
na América do Sul e, consequentemente, nas estruturas mundiais, como está
acontecendo nos dias de hoje. É nítido que existem projetos diferentes. Essa
seriedade ainda não é cobrada do jeito que deveria ser. As federações de cada
um dos estados do Brasil não atuam da mesma maneira em relação aos projetos
femininos.
Ainda existe muito descaso, muita desigualdade,
falta de compromisso e falta de mulheres, inclusive dentro desses bastidores.
Claro que os homens podem e deveriam trabalhar com elas, mas eu acho que é mais
urgente ainda oportunizar que mulheres competentes possam a ascender a esses
cargos."
·
Estratégia Nacional para o Futebol Feminino
"Nós saímos das trevas em relação ao
desenvolvimento esportivo para mulheres. Especialmente pensando que esse
esporte é uma ferramenta muito acessível e popular, no que diz respeito à
afetação. Não quer dizer que esse esporte é acessível às pessoas em 2023. Cada
vez mais temos uma condição de menos obrigatoriedade de acesso de crianças e
adolescentes nas escolas à prática de educação física, por exemplo. Temos menos
espaços nas grandes cidades para prática de lazer e esportes e, de alguma
forma, temos também uma cultura um pouco reducionista, que, por vezes, só
oferece o futebol.
O futebol talvez seja mais fácil de se aprender a
jogar para oportunizar que crianças experimentem modalidades, conheçam
esportes, brinquem os esportes. Para que se tornem atletas, se quiserem, seja
para olimpíadas, paraolimpíadas e qualquer outra competição municipal,
regional.
Tudo isso é muito importante. É um ciclo. Quando
reconhecemos nossos ídolos e nossos atletas, fomentamos a base. Nesse exercício
de existência de um Ministério do Esporte, você visibiliza nessa ferramenta,
esse lugar que nos compete no esporte. Um esporte que talvez, pela primeira
vez, esteja sendo observado não só na alta performance no alto rendimento.
Temos uma representante mulher. Ana Moser (ministra do Esporte) é atleta, tem
representatividade. Ela é uma mulher lésbica, então, de alguma forma, também
atravessa muitos preconceitos em torno desse universo das mulheres que praticam
esportes.
Nos discursos que temos ouvido, ela tem incentivado
muito essa acessibilidade, de um esporte de lazer, que permite pensar de forma
muito pragmática uma política de cidades e de saúde. Uma política de
felicidade, que talvez ainda não tenha um ministério, tem um atravessamento
direto em uma população que cada vez menos faz atividade física, que está
viciada nos seus celulares, que está ansiosa.
São temas do presente e aí, usamos o esporte, uma
atividade de muitos anos, com a qual poderíamos ter uma qualidade de vida mais
acessível a pessoas de um Brasil imenso e continental. Estamos sem informações
em relação às estruturas esportivas no nosso país, porque ficamos muito tempo
sem ministério. Tem um trabalho gigantesco de rearticulação das entidades
esportivas. Para que, novamente, possamos ter compromissos de futuro.
Isso não é fácil e demora. Demanda investimentos.
Recentemente, tivemos uma parceria com o CNPQ para pensar uma ciência para
promover essa reestruturação esportiva no nosso país. Eu sou fruto dessa
ciência esportiva. Sei, na prática, o quanto colhemos ao longo desses 10 anos,
o quanto entendemos melhor sobre futebóis, como trabalhamos no sentido de
viabilizar políticas públicas por meio do futebol.
Desde uma Copa do Mundo, como estamos vendo hoje -
que é uma corrida, um esforço tremendo, que começamos em 2015, em rede, em
coletivos de lugares muito diferentes - mas também viabilizando outras
práticas, como o próprio futebol de várzea, o ambiente das torcidas organizadas.
Todos esses espaços são ocupados por uma população não tão atlética assim, mas
que vive e dá sentido de identidade para os esportes."
·
Repetir o business do
masculino?
"Ao estudar o passado, temos capacidade de
fazer análises mais críticas sobre esse lugar onde podemos chegar. Nesse
sentido, acho que que temos capacidade de ser muito mais criativas do que o que
já foi entregue em relação ao futebol masculino. De alguma forma,
anarquizando um pouco o capital gerado por esses futebóis, existe um capital
simbólico atribuído ao futebol de mulheres que talvez o futebol masculino
esteja muito aquém. Para além de recursos, dinheiro e patrocinadores, acredito
em um futebol em que possamos humanizar as pessoas a partir dele e reconhecer a
humanidade delas.
Dentro dessa história, temos mulheres periféricas,
pretas, lésbicas, representantes do Nordeste, recebendo o protagonismo, o que,
talvez, em muitas áreas da sociedade não consigamos fazer. Esse futebol se
torna uma metáfora para esse exercício de liberdade. Essa oficialidade do
futebol feminino se dá na década de 1980. (Faltam) esses reconhecimentos, mesmo
que atrasados, a uma geração pioneira, que ainda está viva, mas não desfruta de
uma aposentadoria. Temos uma oportunidade de reconhecer mulheres protagonistas,
uma vez que isso também é uma novidade.
O feminismo nos permite olhar para o tempo perdido,
reinaugurarmos de outra maneira, com menos rivalidade, com mais empatia em
relação as trajetórias das pessoas. A partir disso, olhando para o futuro, acho
que é um futebol libertário. As mulheres podem ser o que elas bem entenderem a
partir dessa profissão. De novo as redes sociais permitiram reconhecermos essas
mulheres nessas diferenças. Talvez seja esse público feminino que tem
transformado esse futebol. Se o futebol masculino, há 100 anos, foi feito de
homens para homens, há pouquíssimo tempo atrás, esse futebol feminino também
foi idealizado para consumo masculino.
Não é à toa que houve tanta sexualização, um
silenciamento em torno da sexualidade, das escolhas que essas que essas
mulheres tinham, uma higienização da identidade dessas mulheres. São violências
igualmente simbólicas. Hoje, temos condições de superar essas violências, a
partir de uma mulher negra faz três gols numa abertura de Copa do Mundo, por
exemplo. Também existe uma tensão nessa estrutura, que passa por um
mercado ainda machista, misógino, excludente, elitista. Talvez tenhamos muita
dificuldade daqui para frente para reavaliar o quanto conseguimos caminhar e
qualificar uma estrutura profissionalizante para uma mulher que queira viver
dessa vida de atleta.
Nenhuma conquista é dada. Todas elas, de alguma
forma, são tensionadas o tempo inteiro. A história nos ensina isso. Essas
mulheres brasileiras já conquistaram muitas coisas no futebol. Quase nos
permitimos esquecer que brasileiras já encheram o Estádio do Pacaembu com 80
mil pessoas em 1940. Por vezes negligenciamos e quase apagamos essa
história. Esse futebol é muito oportuno para não esquecermos das nossas
histórias. Não esquecer das violências, não esquecer das proibições.
Quando alguém liga uma televisão e pode assistir
uma Copa do Mundo, tem muitas mensagens colocadas ali, inclusive para pensarmos
o que queremos, o que ainda continuamos fazendo errado. Se em 1941, durante o estado
novo, proibimos o futebol feminino no que viria a se tornar o país do futebol,
em 2023, somos o país maior quantidade de legislações em níveis municipal,
estadual e federal que proíbem pessoas trans de competirem profissionalmente e
em estrutura amadora.
A festa é boa, mas a luta continua. Quero que,
daqui a quatro anos, estejamos em dias de glória. Eu quero também essa taça
para nós, quero um torneio sendo realizado nesse Brasil, uma vez que investimos
muito do nosso sangue, da nossa energia e dos nossos recursos para construir
estádios. Um futebol que nos permite conversar sobre todas essas questões
sociais é um futebol muito potente. O masculino que aprenda conosco."
Fonte: Brasil de Fato
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