Psicogenealogia do medo do decrescimento
Sabemos que as elites que vivem do capitalismo fossilista são as
primeiras interessadas em rejeitar, estigmatizar e desprezar a proposta
do decrescimento, pois
também negam ou minimizam o colapso ecossocial ao qual esta proposta
tenta dar uma resposta efetiva. Isso ocorre porque o capitalismo depende do
crescimento constante para maximizar seus lucros e se manter vivo, razão pela
qual o decrescimento representa
seu maior obstáculo. É compreensível, então, que os setores dominantes o
desprezem ou ignorem.
No entanto, também é verdade que grande parte
das classes populares dos
países de alta renda pode mostrar resistência e medo das propostas decrescentistas, apesar dos
indubitáveis benefícios ecológicos
e sociais que podem trazer. A ponto de apoiar por padrão as forças neoliberais que promovem
as supostas virtudes do crescimento constante.
Trata-se de uma narrativa poderosa e persuasiva,
vinda do poder, mas as referidas populações dão o seu consentimento,
convencidas de que pertencem à próspera “classe média” do mundo rico. Na realidade, essas pessoas
enfrentam inúmeros problemas, todos eles com raízes sistêmicas, embora se apeguem ao comodismo do “normal”, a
um passado almejado de segurança
material ou à esperança de que as múltiplas crises atuais serão
superadas.
É verdade que há indignação e protestos
recorrentes, mas, em geral, as massas
assalariadas respiram literalmente a asfixiante atmosfera capitalista. Sentem-se
ansiosas, decepcionadas, cansadas e possuem muitas dificuldades em tomar uma
distância crítica, pois possuem bastante para “ir levando”.
·
A psicogenealogia e o trauma
da pobreza
A razão do medo do decrescimento que quero destacar remete ao que a psicogenealogia estuda. Trata-se
de uma disciplina que explora como as experiências e acontecimentos vitais mais
cruciais de nossos antepassados podem influenciar em nossa forma de pensar e
agir hoje. A psicogenealogia sustenta
que os traumas, segredos e conflitos não resolvidos de nossos antepassados
podem ser transmitidos através do inconsciente
familiar, de geração em geração, impactando nossas vidas de diversas
maneiras.
A psicogenealogia utiliza
diversas ferramentas, métodos e abordagens que giram em torno do trabalho com
a árvore genealógica.
Procura revelar as conexões ocultas entre as experiências traumáticas do passado e
as dificuldades atuais, proporcionando a oportunidade de curar e transformar
padrões negativos ou limitantes.
Os sofrimentos, medos e traumas dos antepassados
afetam as novas gerações em uma linha hereditária direta, tanto física quanto
psíquica. É o que se demonstrou, nos últimos anos, por vários estudos
sobre guerras, catástrofes, matanças, torturas, privações, sofrimentos e outros choques que
são capazes de transcender, enraizando-se no inconsciente do ser humano. A ponto de a emergente ciência da epigenética ter
confirmado que esses choques produzem mudanças hereditárias na expressão de
genes, que não implicam modificações na sequência de DNA, mas possuem impactos importantes
na saúde física e mental dos
indivíduos.
É importante lembrar que a pobreza, a exploração, a vulnerabilidade e a miséria foram experiências
cotidianas para as classes
trabalhadoras (camponeses, artesãos, operários) no Ocidente moderno capitalista, do início
da Revolução Industrial até
praticamente a metade do século XX. Fome, doenças, guerras, genocídios, precariedade
material, emigração forçada, analfabetismo e exploração acompanharam a
ascensão e o desenvolvimento do
capitalismo, baseado na acumulação
por desapropriação e destruição
dos bens comuns.
Tais experiências, agravadas pelo modelo patriarcal de sociedade, no caso das
mulheres, manifestaram-se, geração após geração, em problemas pessoais e
familiares, que evocam um horizonte vital de abandono, violência, carência material, exclusão social e falta de esperança. Se considerarmos
as gerações que viveram durante a configuração das chamadas classes médias modernas, existe um
período histórico marcado por severas
privações e catástrofes, como as guerras mundiais, os genocídios e
a Grande Depressão.
Acontecimentos que deixaram uma profunda marca no inconsciente coletivo, transmitindo uma traumática herança na
forma de temerosa aversão à
pobreza e à miséria.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial e no
contexto da Guerra Fria,
o capitalismo assentiu
em moderar sua margem de lucro em troca da paz social. Iniciou-se um período de relativa estabilidade e progresso econômico, com alguns anos
de Estado de bem-estar social e
euforia desenvolvimentista que pareciam consolidar um benigno modelo de
crescimento permanente no Primeiro
Mundo.
Mesmo que esse bem-estar tivesse sido conquistado à
custa do mal-estar dos territórios
periféricos do sistema, ou mesmo que a escassez artificial tenha sido
induzida pelo capitalismo por
meio do consumo em massa para
continuar crescendo, o relevante é que as classes médias idealizadas dos países ricos desfrutaram de um
oásis temporário de prosperidade e estabilidade econômica, traduzido em uma
sensação de segurança existencial.
Parecia que os pesadelos associados à pobreza e ao
“subdesenvolvimento”, felizmente, estavam superados, mas a ofensiva neoliberal orientada a garantir
um novo ciclo de acumulação
capitalista, a partir dos anos 1980, com seu agressivo ataque às conquistas e direitos sociais,
fez realidade o medo do retorno à
precariedade. Especialmente após a crise econômica de 2008 e as políticas de “austeridade”, que tanto cortaram o gasto público
com bens sociais e proteção social, enquanto as elites se
enriqueciam ainda mais.
Minha consideração é que a convergência de diversos
fatores, como o aumento da desigualdade
social, a dissolução das
classes médias, a deterioração
das condições materiais de vida, o declínio energético, a crise ecológica e a pandemia de 2020, juntamente com as preocupações sobre o
futuro das próximas gerações, pode estar reabrindo velhas feridas que nunca
cicatrizaram totalmente. Isso estaria provocando a reativação de medos enraizados no inconsciente coletivo,
relacionados a traumas históricos
associados à pobreza, herdados de gerações anteriores.
Após um período de prosperidade, que agora é
considerado um breve parêntese na história, parece que ninguém está disposto a
voltar a enfrentar privações ou permitir que seus filhos tenham uma vida pior
que a de seus pais. Os persistentes protestos populares contra as políticas de austeridade neoliberais são
uma prova clara dessa inquietação
social.
·
O decrescimento como
terapia coletiva
Diante da dimensão do colapso ecossocial provocado pelo necroliberalismo, em um contexto
de capitalismo crepuscular,
com suas possíveis derivações ecofascistas e exterministas, propõe-se o decrescimento como solução ou
alternativa. Como aponta Jason Hickel, o decrescimento busca
uma redução planejada do uso
excessivo de energia e recursos para colocar novamente a economia
em equilíbrio com o mundo vivente de forma segura, justa e equitativa. A ideia
é garantir vida digna para todos.
Para isso, como ressalta Carlos Taibo, no Norte do planeta é necessário reduzir
inexoravelmente os níveis de produção e consumo, aplicando princípios e valores
muito diferentes dos que hoje abraçamos, materializados em práticas como a
relocalização, a agroecologia,
a desindustrialização, o
retorno da ruralização e uma nova concepção dos limites.
No entanto, apesar da urgente necessidade do decrescimento, a colaboração imediata
dos cidadãos não deve ser dada como certa. Pelo contrário. As classes médias do mundo rico,
tendo desfrutado de décadas de Estado
de bem-estar social, após uma longa história de privações, experimentam
profundos medos e resistência em fazer o que podem interpretar como sacrifícios
que façam reviverem o trauma
histórico da pobreza. Em seu inconsciente pessoal, familiar e de classe
subsiste uma memória
intergeracional da pobreza, capaz de induzir o medo ancestral de reviver
aquelas dificuldades históricas que eram consideradas totalmente superadas.
Apesar do necroliberalismo ser a fonte de toda a fragilidade, precariedade e vulnerabilidade dessas classes médias desestruturadas,
paradoxalmente, a segurança e
o bem-estar almejados
podem ser percebidos como ameaçados por propostas de decrescimento, o que desencadeia
respostas de resistência à mudança, alimentadas pela narrativa hegemônica das elites corporativas.
Não se trata tanto de uma falta de vontade de abordar mudanças necessárias
no estilo de vida, mas do impacto emocional dos traumas intergeracionais sobre os
quais parece não haver consciência.
A psicogenealogia permite
entender que o medo popular do decrescimento não
deve ser interpretado como puramente irracional ou politicamente reacionário,
mas como uma resposta psicológica baseada em duras experiências passadas, que
permeiam as árvores genealógicas e
geram respostas puramente defensivas. Só entendendo isso, sem estigmatizar
aqueles que se opõem à dolorosa resistência, pode-se trabalhar na cura, na
transformação de crenças limitantes e no estabelecimento de uma concepção
diferente de abundância. E
é justamente aí que entra o decrescimento como
uma espécie de terapia coletiva.
Se para abordar o trauma é necessário enfrentá-lo,
aceitá-lo e atravessá-lo, como costuma ser comum nas psicoterapias pessoais,
o decrescimento pode
ser uma espécie de terapia em termos sociais. Se considerarmos que o medo
das classes médias em
declínio é “voltar a passar fome”, deve-se explicar com paciência pedagógica
que seu retorno à pobreza só
ocorrerá se persistir a gestão
necroliberal de um colapso
descontrolado.
Na psicoterapia,
muitas vezes, teme-se mais a terapia em si do que ao que ela pretende curar.
Nesse sentido, o decrescimento pode
ser a forma de enfrentar o trauma herdado e superá-lo, pois, como destaca Hickel, implica uma descolonização mental. Só assim é
possível contribuir para diluir o conjunto herdado de pânicos, crenças limitantes, sentimentos
de culpa, insatisfações, frustrações, amarguras e perdas.
Se no âmbito individual a psicogenealogia pode ajudar a
explorar e abordar os efeitos dos traumas familiares para que sejam superados,
no âmbito coletivo, o decrescimento não
apenas seria a principal estratégia para evitar os piores efeitos do colapso e
gerar uma transição ecológica justa,
mas também um remédio necessário para enfrentar e desarticular os enraizados
fantasmas do passado.
No Século
da Grande Prova, para aplainar o caminho rumo a uma sociedade mais
justa, resiliente e em harmonia com a vida, primeiro é necessário desativar os
medos que o sistema se encanta em reforçar e reproduzir. É preciso se atrever a
decrescer materialmente para que também decresçam, e ao final desapareçam,
os lastros geracionais opressivos que
o sistema foi nos fazendo carregar. Quando cada vez mais pessoas descobrem que
o decrescimento é a fórmula
para se desprender daqueles velhos medos, curar-se coletivamente e caminhar
para o bem viver, talvez tudo se torne muito mais fácil.
Fonte: IHU OnLine
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