Carlos Alfredo Lazary: "Países da Amazônia têm capacidade de
preservar a Floresta"
Um edifício de fachadas e esquadrias envelhecidas,
no fim da W3 Norte, parece ser a camuflagem para uma das instalações mais
surpreendentes da capital. No terceiro andar funciona a sede da Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).
A organização está prestes a ganhar projeção, por
ser um dos protagonistas da Cúpula da Amazônia, em Belém, nos dias 8 e 9 de
agosto. Em uma sala de design futurista e grandes telas digitais de alta
definição, especialistas de várias áreas monitoram, em tempo real, as condições
meteorológicas, o nível dos rios, focos de incêndio, desmatamentos, comércio de
plantas e animais e até a saúde indígena na maior floresta equatorial do
planeta.
Às vésperas da reunião de cúpula de presidentes dos
países da Região Amazônica, o diretor-executivo da OTCA, embaixador Carlos
Alfredo Lazary, recebeu o Correio para uma conversa sobre desenvolvimento
sustentável, emergência climática e desafios socioambientais da Amazônia.
Segundo o diplomata, a reunião em Belém deixará claro para as nações do
primeiro mundo preocupadas com a capacidade de preservação da Amazônia que os
países que compõem a OTCA são capazes de levar adiante esta tarefa. A seguir,
leia os principais trechos da entrevista.
• O que
é a OTCA e por que virou um organismo estratégico para a integração dos países
que detém parcelas da Floresta Amazônica?
Esta vai ser a quarta reunião dos presidentes dos
Estados-parte do Tratado de Cooperação Amazônica — ou Cúpula da Amazônia. Toda
a nossa trajetória aqui decorre do tratado, que foi um movimento político e
diplomático da década de 1970, mais especificamente até 1978, quando o tratado
foi assinado. Até 2018, operava de forma intermitente, mas, deste ano para cá,
não houve mais condições políticas de reunir os chanceleres, principalmente em
função da falta de reconhecimento do governo de Nicolás Maduro, na Venezuela,
pelo Grupo de Lima (acordo que uniu governos conservadores da América Latina
para isolar o de Caracas), em que parte (Brasil, Colômbia e Peru) integra a
OTCA. Decidimos manter a operação no nível técnico, o que nos permitiu aprovar
uma série de documentos por unanimidade, como os programas regionais de
biodiversidade, de florestas, memorando de manejo e gestão integrada do fogo.
Tudo assinado pelos oito países, inclusive a Venezuela.
• A
Cúpula é, então, a retomada do protagonismo da OTCA?
Exatamente. O presidente Lula está liderando a
retomada dos níveis políticos da OTCA. Mas nunca deixamos de operar aqui e com
resultados extremamente alentadores. De 2019 para cá, praticamente
quadruplicamos nosso portfólio de programas e projetos. E aumentamos muito os
recursos.
• O que
a OTCA preparou para subsidiar os presidentes, em Belém, nos dias 8 e 9 de
agosto?
Na declaração conjunta dos chefes de Estado haverá
um reconhecimento de todo esse avanço em matéria de projetos e programas. E
sinalizando que serão ampliados.
• Por
exemplo?
Um deles receberá do Fundo Global para o Meio
Ambiente (GEF, um dos maiores financiadores de projetos ambientais do mundo),
de Washington, US$ 15 milhões (cerca de R$ 75 milhões) para mapeamento dos
aquíferos na Amazônia. Para se ter uma ideia, é só multiplicar o tamanho do
Aquífero Guarani por cinco ou seis para ter uma noção aproximada do que é o
Aquífero do Amazonas. Há duas vezes e meia mais água no subsolo da floresta do
que nos rios que a cortam. E, ironicamente, um dos maiores problemas que as populações
da Amazônia enfrentam é o acesso à água de qualidade. O aquífero envolve o
subsolo de todos os oito países.
• Com
relação às populações, o que está sendo feito?
Há projetos envolvendo povos indígenas isolados;
mapeamento de recursos hídricos, da rede hidrológica; controle do comércio das
espécies em extinção; há um projeto importante na área de saneamento básico.
Tudo isso estará em Belém, com os presidentes e na declaração da cúpula.
• A
OTCA vai ser o organismo gestor dessa integração internacional? Como sairá a
OTCA dessa reunião?
A cúpula vai reconhecê-la como a instituição
responsável pela dimensão regional do desenvolvimento sustentável da Amazônia,
em compasso com o que cada país faz nacionalmente. Tendo em conta que a
Amazônia é uma coisa só, não adianta o que um país faz individualmente se não
se cuidar do regional.
• A
OTCA será, então, a ponte que conectará experiências e políticas públicas de
cada país, para que possam ser replicadas ou expandidas aos outros?
Nossa missão será trabalhar para diminuir as
assimetrias que existem entre os países da Região Amazônica por meio do
fortalecimento das políticas públicas, usando como ferramenta a cooperação
Sul-Sul, na qual o Brasil é um país com peso maior.
• Por
ter um peso maior, o Brasil também tem uma responsabilidade maior na
preservação da Amazônia e no seu desenvolvimento sustentável?
O Brasil não tem fugido dessa responsabilidade. O
Brasil é o maior fornecedor da cooperação Sul-Sul, por meio da Fiocruz, do
Inpe, do Ibama, da Embrapa e outros órgãos. Além de dar toda essa cooperação de
graça aos demais países por meio da OTCA, o Brasil tem o compromisso e o
sentido de necessidade estratégica de incluir 20% dos recursos do Fundo
Amazônia para projetos regionais. Nenhum país faz isso, que é pegar um fundo de
US$ 1,2 bilhão (cerca de R$ 6 bilhões), e dizer que um quinto disso pode ser
usado em outros países da região. Não há ninguém que faça isso, só quem tem
visão estratégica.
• O
Fundo Amazônia é dinheiro destinado ao Brasil...
A gestão do fundo é conjunta, dos financiadores
(Alemanha, Noruega e Brasil), mas a palavra final é do Brasil. E o dinheiro cai
na conta do BNDES. O gesto do Brasil não é obrigatório, é unilateral. É dizer
que, para cuidar da Amazônia, é preciso estar junto com os demais países. E são
esses 20% que dão espaço de manobra para OTCA.
• Como
a OTCA sobreviveu ao isolamento político do Brasil no cenário mundial nos
últimos quatro anos, principalmente na agenda ambiental, por causa das posições
ideológicas do então presidente Jair Bolsonaro?
Felizmente, houve uma espécie de cumplicidade dos
níveis intermediários dos oito países, que se juntaram para continuar
trabalhando, cuidando do que é estrutural, pois conjuntural é a política. Isso
se deu com os ministérios setoriais, os Ibamas de cada país, toda uma camada de
gente de nível técnico que vestiu a camisa da resiliência.
• Como
vocês sobreviveram a esses tempos turbulentos, marcados por uma profunda
divisão ideológica não só no Brasil, mas em vários países do subcontinente?
Todos os dias tínhamos que botar aqui um escudo
blindando a OTCA da instrumentalização ideológica, política e partidária.
• Essa
fase passou?
A OTCA mostrou que tem resiliência nesse aspecto,
ao contrário de outras organizações, como a Unasul, que não resistiu. Outras
organizações ficaram paralisadas. A nossa continuou trabalhando, com a visão de
operar abaixo da linha do horizonte. Não seríamos o que somos hoje sem o apoio
do vice-presidente (do governo Bosonaro) Hamilton Mourão e do então chanceler
Carlos França. Eles atuaram para ajudar a gente a nos blindar das questões
ideológicas.
• Houve
muita pressão política?
Às vezes, recebíamos mensagem de alguém dizendo:
“Tem que demitir fulano, porque ele trabalhou com o governo tal”. Negativo. Eu
respondia: “Você quer demitir? Então, vamos juntar os oito países e tirar um
voto unânime”. Como ninguém nunca conseguia... A gente foi tocando o trabalho.
E muita gente não tem ideia de que construímos tudo isso aqui em Brasília, não
tem ideia de termos tudo isso. Estamos chamando a UnB, centros de pesquisa,
outros órgãos públicos para mostrar. Isso é patrimônio da Brasília. Costumo
dizer que, por causa da OTCA, Brasília é a capital da Amazônia em termos de
conhecimento, monitoramento em tempo real. E nós só investimos US$ 1 milhão
(quase R$ 6 milhões) para montar tudo isso. É o que a sala de situação (com
tecnologia fornecida pela Agência Nacional de Águas — ANA), o monitoramento da
rede, custa. Isso inclui salário de consultor, de equipe de projeto. E isso em
oito anos! Se dividir esse valor por ano de operação, é praticamente nada.
• Olhando
para toda essa tecnologia embarcada aqui na OTCA, onde as assimetrias entre
países amazônicos são mais flagrantes?
Na parte de recursos hídricos, por exemplo,
Suriname e Guiana não têm uma agência nacional de águas. Estamos criando nesses
países essa agência, usando como modelo a nossa Ana e a ANA do Peru. Na
Convenção Cites (de monitoramento do comércio de animais e plantas em risco de
extinção), construímos na Colômbia um centro de recepção de informações. Ainda
na Guiana e no Suriname, estamos dotando o serviço florestal deles com drones
para identificar espécimes. Só nesse projeto, o investimento foi de 1 milhão de
euros por país. É um grande negócio fazer parte da OTCA. Para cada dólar que os
países botam aqui como contribuição, o país que menos recebe tem de volta, no
mínimo, US$ 3,7.
• A
OTCA tem acesso a tecnologia de ponta?
No caso dos aquíferos, estamos firmando aliança
estratégica com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), porque vamos
fazer o mapeamento isotópico (identificação de átomos) das águas que permeiam o
solo amazônico e chegam no aquífero. Contratamos um instituto francês para
fazer o mapeamento do mercúrio, nos repassando a tecnologia do DNA ambiental.
• O
senhor recebeu a visita de diretores do Fundo de Desenvolvimento da Bacia do
Prata (Fonplata). Bolívia e Brasil fazem parte dos dois grupos. O que os países
platinos buscam?
Para os países da bacia do Prata (Brasil, Bolívia,
Argentina, Paraguai e Uruguai), todo o clima está sendo influenciado pela Bacia
Amazônica, assim como o regime de águas. É impossível dissociar essa vinculação
geofísica. Esses rios voadores que batem nos Andes e descem em forma de chuva
são a razão do regime de águas. O Pantanal e o Pampa dependem desse regime.
• Qual
a diferença do trabalho da OTCA em relação ao que fazem Inpe, Mapbiomas e
outras instituições que coletam e processam dados desse tipo?
A gente, simplesmente, junta o que eles fazem e
“amazoniza”. Organizamos esse conhecimento voltado à Amazônia com uma grande
novidade: é o único lugar do planeta que reúne conhecimento integral da
Amazônia em tempo real.
• No
caso da Amazônia, o que os países menores têm a oferecer?
A cooperação Sul-Sul pega o que está acontecendo na
Amazônia peruana, na Colômbia, que tem dois institutos de excelência. Na
Venezuela também há centros de excelência, que foram desmontados nos últimos
anos (por causa da crise econômica e política), mas que podem ser recuperados.
Mas a maior massa crítica é mesmo do Brasil.
• Aonde
o tratado de cooperação pode levar os países amazônicos?
Todo esse esforço tem um grande objetivo, que é
mostrar ao mundo que os países amazônicos são capazes de cuidar da Amazônia. Só
isso. Mostrar que são capazes de trabalhar em conjunto para o desenvolvimento
sustentável da região. Até agora, era cada um por si. O que vai sair de Belém é
a mensagem de que é melhor estar todo mundo junto do que separado. É o grande
objetivo que o Brasil persegue desde 1972.
• Essa
união pode dar peso ao papel de liderança regional que Lula tenta resgatar?
Vejo como um grande movimento desencadeado pelo
Brasil, pelo presidente, levar a Belém os oito líderes. Mas com o compromisso
de, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro, todos mencionarem os
compromissos firmados em Belém, de incorporar ao que estão fazendo
regionalmente o que já fazem nacionalmente. Isso vale para a ONU, a reunião do
G20, a COP de Dubai. Com duas vantagens: dilui as críticas entre os oito países
e mostra que todos podem trabalhar em conjunto.
• O
mundo foi alertado pelo secretário-geral da ONU, António Guterrez, que está
derretendo. O aquecimento global não é mais uma ameaça distante. Estamos “em
ebulição”?
Não vou chegar a dizer que o planeta está igual ao
filme Não Olhe para Cima, em que as pessoas estão tão envolvidas com as brigas
do dia a dia que não se atentam ao meteoro prestes a se chocar com a Terra. Mas
é um pouco do eixo fundamental do discurso do Guterrez. Ele diz que, enquanto
ficamos aqui discutindo, o principal é a sobrevivência. Estamos ameaçados. Nós,
da OTCA estamos fazendo a nossa parte, criando um sistema de autoconhecimento
da Amazônia que não havia antes. Os países terão cada vez mais condições de
operar conjuntamente na Amazônia de forma muito mais equilibrada e sustentável
do que antes.
• A
OTCA dialoga com outras organizações multilaterais e instituições que
acompanham os mesmos problemas?
Somos pequeninos, mas estamos ganhando respeito. A
OTCA já é vista como um interlocutor inescapável quando se trata de Amazônia.
• Que
futuro o senhor vê para a Amazônia?
Aprendi a ser pragmático. Mas minha expectativa,
quase que utópica, é ver que os países estão botando a Amazônia no rol de
políticas de Estado. Uma expectativa mais modesta, mais realista, é garantir
que tudo o que a gente está fazendo aqui permaneça no tempo. Se a gente
conseguir manter isso tudo, teremos um instrumento fundamental para o
desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Fonte: Correio Braziliense
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